Conto: Emília na casa do Verbo Ser – Emília no país da gramática
Monteiro Lobato
Emília teve uma grande ideia: visitar o
Verbo Ser, que era o mais velho e graduado de todos os Verbos. Para isso
imaginou um estratagema: apresentar-se no palácio em que ele vivia, na
qualidade de repórter dum jornal imaginário. — O Grito do Pica-Pau Amarelo.

— Meu caro senhor — disse ela ao
porteiro do palácio —, eu sou redatora do Grito do Pica-Pau Amarelo, o mais
importante jornal do sítio de Dona Benta, e vim cá especialmente para obter uma
entrevista do grande e ilustre Verbo Ser. Será possível?
O porteiro mostrou-se atrapalhado,
porque era a primeira vez que aparecia por ali uma repórter daquela marca. A
cidade da língua costumava ser visitada apenas por uns velhos carrancas,
chamados filólogos, ou então por gramáticos e dicionaristas, gente que ganha a
vida mexericando com as palavras, levantando o inventário delas, etc. Mas uma
jornalista, e jornalista daquele tamanho, isso era novidade absoluta.
— Vou ver se ele recebe a senhorita —
respondeu o guarda.
— Pois vá, e interesse-se pelo meu
caso, que não perderá o tempo — disse Emília. — Mando-lhe lá do sítio uns
bolinhos de Tia Nastácia, que são excelentes.
O venerando Verbo Ser ouviu o guarda e
estranhou o pedido de entrevista; mas como tivesse muito medo da imprensa, não
pôde recusar-se a receber aquela repórter.
Emília foi levada à presença dele e
entrou muito tesa, com um bloquinho de papel debaixo do braço e um lápis sem
ponta atrás da orelha. O venerando ancião estava sentado num trono, tendo em
redor de si os seus sessenta e oito filhos — ou Pessoas dos seus Modos e
Tempos. Parecia um velho de mil anos, com aquela cabeleira branca de Papai
Noel.
—
Salve, Serência! — exclamou Emília, curvando-se diante dele, com os
braços espichados, à moda do Oriente. — O que me traz à vossa augusta presença
é o desejo de bem servir aos milhares de leitores do Grito do Pica-Pau Amarelo,
o jornal de maior tiragem do sítio de Dona Benta. Os coitados estão ansiosos
por conhecer as ideias de Vossa Serência sobre mil coisas.
— Suba, menina! — respondeu o Verbo Ser
com voz trêmula.
Emília subiu os degraus do trono,
abrindo caminho a cotoveladas por entre a soldadesca atônita, e foi postar-se
bem defronte do venerável ancião.
— Fale, Serência, enquanto eu tomo
notas — disse ela, e começou a fazer ponta no lápis com os dentes.
O Verbo Ser tossiu o pigarro dos séculos
e começou:
— Eu sou o Verbo dos Verbos, porque sou
o que faz tudo quanto existe ser. Se você existe, bonequinha, é por minha
causa. Se eu não existisse, como poderia você existir ou ser?
— Está claro — disse Emília escrevendo
uns garranchos. — Vá falando.
Ser tossiu outro pigarro e continuou:
— Muitos gramáticos me chamam VERBO
SUBSTANTIVO, como quem diz que eu sou a substância de todos os demais Verbos. E
isso é verdade. Sou a Substância! Sou o Pai dos Verbos! Sou o Pai de Tudo! Sou
o Pai do Mundo! Como poderia o mundo existir, ou ser, se não fosse eu?
Responda!
— Não tem resposta, Serência. É isso
mesmo — disse Emília, escrevendo. — Os leitores do Grito vão ficar tontos com a
minha reportagem. O diabo é este lápis sem ponta. Não haverá por aí algum
canivete ou faca que não seja de mesa, Serência?
Não havia canivete, nem faca, nem
nenhum instrumento cortante naquela cidade de palavras, de modo que Emília só
podia contar com os seus dentes. Mas tanto roeu o lápis, sem conseguir boa
ponta, que ele foi diminuindo, diminuindo, até virar um toquinho inútil.
Acabou-se o lápis — e foi essa a verdadeira causa de o Grito do Pica-Pau
Amarelo (jornal que aliás nunca existiu) não haver publicado a mais sensacional
reportagem que ainda foi feita no mundo.
O Verbo Ser falou muita coisa de si,
contando toda a sua vida desde o começo dos começos. Disse que já havia morado
na cidade das palavras latinas, hoje morta.
— Naquele tempo eu me chamava Esse.
Depois que a cidade latina começou a decair, mudei-me para as cidades novas que
se foram formando por perto, e em cada uma assumi forma especial. Aqui nesta
tomei esta forma que você está vendo e que se escreve apenas com três letras.
Na cidade de Galópolis virei Ètre. Em Italópolis virei Essere. Em Castelópolis
sou como aqui mesmo.
— Então foi em Roma que Vossa Serência
nasceu?
— Não, menina. Sou muito mais velho que
Roma. Antes de mudar-me para lá eu já existia na cidade das palavras
sânscritas; e antes de ir para a cidade das palavras sânscritas, eu já vinha
não sei de onde. Perdi a memória do lugar e do tempo em que nasci, embora
esteja convencido de que nasci junto com o mundo.
— Pois olhe — disse Emília —, está bem
rijinho para a idade... Dona Benta, com sessenta e oito anos apenas, não chega
aos pés de Vossa Serência.
— Nós, palavras, vivemos muito mais do
que as criaturas humanas.
— Mas também morrem — observou Emília,
apontando para o cemitério que se avistava através da janela.
— Sim. Morrem certas palavras que não
são de boa raça. Um Verbo como eu não morre nunca. Muda de aspecto apenas, e
emigra duma cidade para outra. Eu nunca hei de morrer.
— Assim seja, Serência! — disse Emília.
— Porque se Vossa Serência cai na asneira de morrer, como iremos nós nos
arranjar lá tiú mundo? Ninguém mais poderá ser coisa nenhuma...
Pela janela aberta via-se um trecho de
rua, onde o Visconde estava a passear de braço dado a uma palavra esquisita.
— Quem é aquele figurão? — perguntou
Ser, franzindo os sobrolhos.
— Pois é o nosso grande Visconde de
Sabugosa, um verdadeiro sábio da Grécia. Gosta muito de Arcaísmos e outras
velharias. Juro que a palavra que está com ele é coroca.
— Não é, não. Já foi coroca; hoje está
remoçada. Aquela palavra é a tal Paredro, que em Roma conheci sob a forma
latina Paredrus. Emigrou para cá comigo, mais ninguém quis saber dela. Os
homens não a chamavam nunca para coisa alguma, e por fim a coitada teve de
desocupar o beco e ir viver no bairro dos Arcaísmos. Pois sabe o que aconteceu?
Um belo dia um deputado brasileiro, que era o grande romancista Coelho Neto,
teve a ideia de requisitá-la para a meter num discurso. Já lhe mandamos a
palavra requisitada, ainda cheia de pó e teias de aranha como se achava.
Paredro entrou no discurso do deputado, fez sucesso e voltou rejuvenescida.
Desde então passou a receber frequentes chamados e acabou vindo morar de novo
aqui no centro, em companhia das palavras vivas. Casos como esse, porém, são
raríssimos. Em geral, quando uma palavra morre, morre duma vez.
A conversa de Emília com o Verbo Ser
durou bastante tempo. Um velho velhíssimo como aquele tem muito que contar. Por
fim acabaram amigos, e Emília pediu-lhe que a acompanhasse numa visitinha aos
Advérbios, espécie de palavras que ela ainda não conhecia.
— Pois não. Com muito prazer — disse o
venerável velho, e tomando-lhe a mãozinha saiu com ela do palácio.
OBRA INFANTO-JUVENIL DE
MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.
Entendendo o conto:
01 – Qual foi o estratagema
que Emília usou para conseguir uma entrevista com o Verbo Ser?
Ela se apresentou
no palácio na qualidade de repórter do jornal imaginário "O Grito do
Pica-Pau Amarelo", o suposto "mais importante jornal do sítio de Dona
Benta".
02 – Por que a visita de
Emília foi considerada uma "novidade absoluta" pelo porteiro do
palácio?
Porque a cidade
da língua costumava ser visitada apenas por velhos filólogos, gramáticos e
dicionaristas (gente que "mexerica com as palavras"), e nunca por uma
jornalista, muito menos uma "jornalista daquele tamanho" (uma
boneca).
03 – Por que o Verbo Ser é
chamado de "o Verbo dos Verbos" e "Verbo Substantivo"?
Ele é chamado
assim porque é o que faz tudo quanto existe ser (a substância de todos os demais
Verbos). Ele se autoproclama "a Substância" e "o Pai dos
Verbos" (e do Mundo).
04 – Qual foi o motivo real
que fez com que a reportagem sensacional de Emília para o "Grito do
Pica-Pau Amarelo" não fosse publicada?
O motivo foi a
falta de ponta no lápis. Emília tanto roeu o lápis com os dentes, sem conseguir
uma boa ponta, que ele diminuiu até virar um "toquinho inútil",
acabando com o instrumento de trabalho da repórter.
05 – Qual era a forma do Verbo
Ser na antiga cidade das palavras latinas, e quais formas ele assumiu em
Galópolis (francês) e Italópolis (italiano)?
Na cidade das
palavras latinas (hoje morta), ele se chamava Esse. Em Galópolis, virou Être, e
em Italópolis, virou Essere.
06 – Qual foi a história da
palavra Paredro, e como ela conseguiu "rejuvenescer" e retornar ao
convívio das palavras vivas, depois de morar no bairro dos Arcaísmos?
Paredro era uma
palavra antiga (latina Paredrus) que foi esquecida e se mudou para o bairro dos
Arcaísmos. Ela foi "requisitada" por um deputado brasileiro, o
romancista Coelho Neto, para ser usada em um discurso. O sucesso no discurso a
fez rejuvenescer e voltar a receber chamados no centro da cidade.
07 – O que Emília pediu ao
Verbo Ser no final da conversa, e para onde eles foram juntos?
Emília pediu que
ele a acompanhasse numa visitinha aos Advérbios (uma espécie de palavra que ela
ainda não conhecia). O Verbo Ser, o ancião venerável, aceitou e saiu do palácio
de braço dado com a boneca.
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