Conto: A Senhora Etimologia – Emília no país da gramática
Monteiro Lobato
Depois que se despediu do Verbo Ser,
Emília foi correndo em procura dos companheiros. Encontrou-os na Praça da
ANALOGIA, rodeados de várias palavras. O Visconde conversava com duas
absolutamente iguais na forma, embora de sentido diferente — as palavras Pena
(dó) e Pena (de escrever).
— Não acho isso direito — dizia o
Visconde para a primeira Pena —, se a senhora significa uma coisa tão diversa
da significação da sua companheira por que não muda, para evitar confusões?
— Sim — disse Emília, chegando e
metendo a sua colherzinha torta na conversa. — Por que não usa um sinal — uma
cruz na testa ou uma peninha de papagaio na cabeça, por exemplo?
— Nós, palavras, não temos a liberdade
de nos mudar a nós mesmas — respondeu Pena (dó). — Unicamente o uso lá entre os
homens é que nos muda, como acaba de suceder a esta minha HOMÔNIMA, a Senhora
Pena (de escrever.) Ela já teve dois NN e agora tem um só.
— Pare! — gritou Emília. — Que
"Homônima" é essa, que apareceu sem mais nem menos?
— Pena (de escrever) é minha Homônima.
Homônima quer dizer uma palavra que tem a mesma forma de outra, embora de
significado diverso. Nós duas aqui somos Homônimas, do mesmo modo que grande
número de outras palavras desta cidade. Cesta (balaio) e Sexta (número), por
exemplo; Cela (quartinho) e Sela (de cavalo), Bucho (estômago) e Buxo (árvore),
Cartucho (de espingarda) e Cartuxo (frade) são palavras Homônimas.
E há ainda outras diferencinhas. Se
somos iguais unicamente no som, os gramáticos nos chamam HOMÓFONAS, como essas
que citei. E se somos iguais na forma escrita, eles nos chamam HOMÓGRAFAS.
— Então você, Pena (dó), é Homônima,
Homófona e Homógrafa de Pena (de escrever) — disse Emília, que tinha prestado
toda a atenção. — Que judiaria! Tão pequenininha e xingada pelos gramáticos de
tantos nomes esquisitos.
— Mas isso de vocês terem a mesma forma
ou o mesmo som — observou Narizinho — há de atrapalhar muito aos homens. Quando
eles se encontram diante de palavras Homônimas, Homófonas e Homógrafas devem
ficar tontos.
— Puro engano — respondeu Pena (dó). —
Seria assim se os homens nos encontrassem soltas como andamos aqui. Mas lá
entre eles só aparecemos metidas em frases, e então é pelo Sentido que os
homens nos distinguem. Quem ouve a frase: Estou escrevendo com uma pena de bico
chato, vê logo que se trata da minha amiga Pena de escrever. Mas quem ouve
exclamar: Que pena tenho dela! percebe imediatamente que se trata de mim. É
pelo sentido da frase que se conhecem as palavras.
— Muito bem — disse Emília. — A senhora
é uma grande sabidinha. E quem são aquelas que ali estão de prosa, duas a duas?
— Oh, aquelas são as palavras SINÔNIMAS
e ANTÔNIMAS.
— Explique-nos isso — pediu a menina.
—
Palavras Sinônimas — disse Pena (dó) — são as que significam a mesma coisa, ou
quase a mesma coisa, embora tenham forma diferente. Lábio e Beiço, por exemplo;
Habitar e Morar; Cavalo e Corcel; Olhar e Ver; são palavras Sinônimas.
— E as Antônimas?
—
Palavras Antônimas — respondeu Pena (dó) — são as que têm sentido
oposto, como Noite e Dia; Sim e Não; Com e Sem; Ódio e Amor; Bom e Mau.
— Engraçado! — berrou Emília. — Então
Dona Benta é Antônima de Tia Nastácia!...
— Que absurdo é esse, Emília! —
exclamou Narizinho.
— Sim, sim — insistiu a boneca —,
porque uma é branca, e outra é preta.
— As cores delas é que são Antônimas,
boba, e não elas...
Durante toda a conversa o rinoceronte
manteve-se afastado, de beiço caído, refletindo distraidamente. Emília deu-lhe
um beliscão.
— Acorde, boi sonso! Que nostalgia é
essa?
— Estou pensando em coisas passadas —
respondeu o excelente paquiderme. — Estou pensando na velhice destas palavras.
Vieram de muito longe, sofreram grandes mudanças e continuam a transformar-se,
como essa Pena de escrever, que acaba de perder um N. A maioria delas já morou
na antiga Roma, dois mil anos atrás. Depois espalharam-se pelas terras
conquistadas pelos romanos e misturaram-se às palavras que existiam nessas
terras. E vieram vindo, e vieram vindo, até chegarem ao que hoje são.
Enquanto vocês estavam de prosa com
Pena (dó), eu pus-me a recordar a forma dessa palavra no tempo dos romanos.
Escrevia-se Poene. E antes ainda de escrever-se assim, escrevia-se Poine, no
tempo ainda mais antigo em que ela morava na Grécia.
— Que divertimento interessante não
deve ser o estudo de cada palavra! — exclamou Pedrinho. — Hão de ter cada uma o
seu romance, como acontece com a gente...
— E assim é — confirmou o rinoceronte.
— Esse estudo chama-se Etimologia.
— Quem está falando aí em Etimologia? — gritou
Pena (dó), que estivera distraída a ouvir a boneca narrar as aventuras da
viagem ao céu; e vendo que era o rinoceronte, acrescentou: — A Senhora
Etimologia reside aqui perto. Por que não dão um pulinho até lá, para
visitá-la?
— Boa ideia! — exclamou Pedrinho. — Mas
não é muito rabugenta, essa dama?
— Nada! — respondeu Pena (dó). — É até
uma excelente criatura — e sabidíssima, upa!... Conhece a vida de todas nós,
uma por uma, nos menores detalhes. Sabe onde nascemos, de quem somos filhas e
de que modo vimos mudando através dos séculos. Constantemente aparecem por aqui
filólogos, gramáticos e fazedores de dicionários para consultar Dona Etimologia
a propósito de mil coisinhas.
— Pois vamos vê-la — propôs o Visconde,
já assanhado. Velhas eram com ele, que também já estava velho e embolorado. Só
Emília discordou. Preferia visitar a Senhora PROSÓDIA, que ensina o modo de
pronunciar as palavras. Emília errava muito na pronúncia e queria aprender.
— Prefiro saber como é que se pronuncia
uma palavra a saber onde, como e quando ela apareceu. Sou "prática"...
Mas Narizinho empacou.
— Agora, não, Emília. Depois. Depois
visitaremos Dona Prosódia. Neste momento eu resolvo que se visite a Etimologia.
Você não manda.
E como o caso fosse assim
despoticamente resolvido, dirigiram-se todos para a residência da Senhora
Etimologia.
Encontraram lá uma velha coroca, de
nariz recurvo e uma papeira — a papeira da sabedoria. Encontraram-na com a casa
entupida de filólogos, gramáticos e dicionaristas. Foi o que disse a criada que
os atendeu da janela.
Pedrinho espiou pelo buraco da
fechadura.
— Xi!... — exclamou. — Está
"assim" de carrancas lá dentro. Impossível que ela nos receba hoje.
Os carrancas estão de óculos na ponta do nariz e lápis na mão, tomando notas.
Até que ela atenda a todos...
Puseram-se a escutar. A velha explicava
a um daqueles homens como é que certa palavra havia passado do grego para o
latim.
— Ché!... — exclamou Emília. — Ainda
estão no grego e no latim, imaginem! O melhor é espantarmos esses gramáticos e
tomarmos conta da velha só para nós.
E voltando-se para o rinoceronte:
— Vamos, Quindim! Bote o focinho aqui
no buraco da fechadura e solte um daqueles berros que os paquidermes dão nas
"plagas africanas", quando o leão aparece na "fímbria do
horizonte".
O rinoceronte não quis obedecer,
achando aquilo impróprio e nada gramatical; mas Emília resolveu o caso dizendo
que um berro era uma Interjeição e, portanto, uma coisa perfeitamente
gramatical. Quindim então obedeceu. Ajustou o focinho ao buraco da fechadura e
desferiu uma formidável Interjeição que abalou a casa:
— Muuu!
OBRA
INFANTO-JUVENIL DE MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País
da Gramática. As
figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.
Entendendo o conto:
01 – Qual é a definição de uma
palavra Homônima, de acordo com a explicação da palavra Pena (dó) para o
Visconde e Emília?
Homônima é uma
palavra que tem a mesma forma de outra, embora possua um significado diverso.
02 – Segundo a palavra Pena
(dó), de que forma os homens conseguem distinguir palavras Homônimas (que têm a
mesma forma) quando as encontram no dia a dia?
Os homens conseguem distinguir as
palavras pelo Sentido (significado) da frase em que elas estão inseridas.
03 – Além de serem Homônimas,
a palavra Pena (dó) explica outras duas classificações dadas pelos gramáticos.
Quais são os nomes dados às palavras que são iguais unicamente no som e às que
são iguais na forma escrita?
Se são iguais
unicamente no som, são chamadas Homófonas. Se são iguais na forma escrita, são
chamadas Homógrafas.
04 – O que são palavras Sinônimas
e o que são palavras Antônimas, e qual exemplo é dado para cada uma delas no
texto?
Sinônimas são as
que significam a mesma coisa ou quase a mesma coisa, como "Lábio e
Beiço". Antônimas são as que têm sentido oposto, como "Noite e Dia".
05 – Qual é o nome do estudo
que o rinoceronte Quindim menciona, que examina a origem, a história e as
transformações de cada palavra ao longo do tempo (como ele fez com a palavra
"Pena")?
Esse estudo
chama-se Etimologia.
06 – Qual é a descrição física
da Senhora Etimologia que Pedrinho consegue observar pelo buraco da fechadura?
Ela é descrita
como uma "velha coroca, de nariz recurvo e uma papeira — a papeira da
sabedoria".
07 – Para que Quindim ajude a
espantar os filólogos da casa da Senhora Etimologia, Emília pede que ele solte
um berro. Que ação ele realiza, e que parte da gramática Emília usa para
justificar que a ação era "perfeitamente gramatical"?
Quindim solta uma
formidável Interjeição (o berro "Muu!"). Emília justifica a ação
dizendo que "um berro era uma Interjeição e, portanto, uma coisa
perfeitamente gramatical".
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