Crônica: Emigração Clandestina –
Fragmento
Vera Duarte
Nos últimos tempos, o drama da
imigração clandestina tem aberto telejornais, tem sido manchete de rádios e
jornais, tem objetivado a realização de inúmeras reuniões a nível nacional,
regional e internacional em vários países mas, sobretudo, tem levado a morte, o
sofrimento e a precariedade a um número demasiado elevado de seres humanos,
oriundos, na sua grande maioria, desta nossa África, continente de condenados
da terra no dizer impressivo de Franz Fanon.
Quem não viu as fotos dilacerantes de
dezenas, senão centenas, de seres humanos amontoados em precárias embarcações,
tornados navios negreiros da modernidade, que, de olhar perdido e rostos
esquálidos, procuram desembarcar nas “terras da promissão”, quando essas mesmas
embarcações não se transformam em cemitérios flutuantes, sem sequer um ponto
aonde ancorar?
Na origem do problema, estão fatores já
identificados, como as guerras e outros conflitos armados, a má governação, a
fome, a doença e a pobreza, a corrupção nas instituições públicas e privadas, a
intolerância política e religiosa, os desastres naturais, todos geradores de miséria
e de falta de oportunidades de emprego nos países de origem. Os imigrantes são,
então, atraídos pelos eldorados, onde supostamente irão encontrar salários mais
altos, melhores oportunidades de emprego, saúde e educação, melhor
comportamento entre as pessoas, estabilidade política, tolerância religiosa,
relativa liberdade, características normalmente encontradas em países que gozam
de boa reputação.
Do muito que já se disse, sem se
conseguir encontrar a solução do problema, que é extremamente complexo, importa
reter que os imigrantes são, em primeiro lugar e acima de tudo, seres humanos
com direitos humanos. Além disso, há duas ou três ideias que cabe realçar, pela
justeza do raciocínio que lhes está subjacente: a primeira é que há que criar
condições para que as pessoas não tenham de deixar a sua Terra Natal em busca
de poder trabalhar e viver com um mínimo de dignidade; a segunda é que há que
garantir o direito de ir e vir a todos e que os países que são demandados pelos
imigrantes não podem simplesmente “barricar” as suas fronteiras, mas sim definir
políticas migratórias corretas que correspondam aos interesses económicos, mas
salvaguardem os Direitos Humanos dos imigrantes; e a terceira é que há que
reprimir o crime transnacional organizado e o tráfico de pessoas, que fomentam
as redes de imigração clandestina, aproveitando da vulnerabilidade das vítimas.
A intensificação dos fluxos
migratórios, que tem ocorrido por razões diversas, quer econômicas, políticas,
humanitárias, religiosas, tem também levantado preocupações do ponto de vista
dos Direitos Humanos, em especial a migração clandestina ou irregular, pelas
violações e abusos aos Direitos Humanos desse grupo vulnerável a que dá azo.
Muito haveria para dizer sobre este
flagelo que se exponenciou no dealbar do século XXI, mas a reflexão que eu
gostaria de fazer é absolutamente outra e, dando um salto no futuro, questionar
se estes desesperados que procuram por todos os meios deixar os seus países de
origem para chegar às terras prometidas da Europa e da América, não serão,
afinal, os pioneiros de uma nova ordem universal, em que a mobilidade, enfim
erigida em direito inalienável, irá determinar uma emergente comunidade mundial
de maior mestiçagem, de maior tolerância, que possa promover uma distribuição
mais equitativa da riqueza dentro e entre as nações e resultar na erradicação
da pobreza como um imperativo ético.
Mais africanos na Europa, mais latinos
em África, mais americanos na Ásia, mais asiáticos em África, mais europeus na
Austrália, ou seja, cada continente terá uma maior percentagem de gente oriunda
de outros continentes, o que irá gerar, necessariamente, um novo diálogo entre
culturas e a tal nova geografia humana universal mais tolerante que ativamente
desejamos.
[...]
Não
seria a primeira vez que a África e os africanos protagonizariam movimentos do
tipo. Relatos históricos dão-nos conta de que a África tem como singularidade
absoluta o facto de os seus povos autóctones terem sido os progenitores de
todas as populações humanas do planeta, o que faz do continente africano o
berço da espécie humana.
Segundo alguns historiadores, a
população humana ancestral que deixou o continente africano pela primeira vez,
há aproximadamente cem mil anos, tinha apenas dois mil indivíduos e migrou
progressivamente para os outros continentes atingindo a Ásia e a Austrália há
quarenta mil anos, a Europa há cerca de trinta e cinco mil anos e, finalmente,
a América há dezoito mil anos.
Outra singularidade haveria de marcar o
continente africano com tremendas repercussões no seu destino e determinando a
África com as vulnerabilidades que tem hoje: trata-se da escravidão racial e do
tráfico transoceânico de seres humanos em grande escala.
Efetivamente, durante cerca de um
milénio, o continente africano foi transformado em verdadeiro terreno de caça
humana, e as deportações massivas de africanos foram metodicamente organizadas
desde o século VIII, primeiro pelos árabes do Oriente Médio e, a partir do
século XV, pelos povos da Europa Ocidental que realizaram, através do Oceano
Atlântico, um horrendo, devastador e humilhante tráfico negreiro.
O impacto negativo da escravidão e do
tráfico negreiro sobre o desenvolvimento do continente foi catastrófico e está
na gênese de grande parte dos males com que a África se debate atualmente, máxime
o drama da imigração clandestina.
Seria, no mínimo, desejável que, ao
menos por uma vez, se pudesse encontrar a solução para um problema que aflige a
humanidade com um pouco menos de sofrimento e dor para uma parcela já muito
maltratada dessa mesma Humanidade, na circunstância, a africana.
Assim, ao mesmo tempo em que
propugnamos por uma justa, rápida e equitativa solução do problema da imigração
clandestina, formulamos ativamente votos de que o continente africano, pátria
de Leopoldo Sedar Senghor, Amílcar Cabral, Joseph Ki-Zerbo, Mariana Bá, Wangari
Maathai, Nelson Mandela e Wole Soynka, entre tantos outros seres humanos de
exceção, possa um dia vir a ser a terra de promissão para todos... os
africanos.
DUARTE, Vera. A
palavra e os dias. Belo Horizonte: Nandyala, 2013. p. 92-5.
Fonte: Língua
Portuguesa – Estações – Ensino Médio – Volume Único. 1ª edição, São Paulo, 2020
– editora Ática – p. 166-8.
Entendendo a crônica:
01 – Se a emigração é uma
constante no país da autora, nesta crônica, ela questiona o deslocamento humano
no sentido contrário: a imigração – mais especificamente, a clandestina.
Consulte um dicionário, verifique e registre no caderno o significado de cada
um destes termos: migração, imigração e
emigração.
·
Migração: 1. Movimentação de entrada ou
saída de indivíduo ou grupo de indivíduos, ger. Em busca de melhores condições
de vida.
·
Imigração: ato ou efeito de imigrar. 1.
Entrada de indivíduo ou grupo de indivíduos estrangeiros em determinado país,
para trabalhar e/ou para fixar residência, permanentemente ou não.
·
Emigração: ato ou efeito de emigrar. 1. Saída
espontânea de um país; expatriação. 2. Movimentação de uma para outra região
dentro de um mesmo país.
02 – Em mais de uma parte do
texto, Vera Duarte faz questão de frisar as relações entre as situações de
imigração irregular e os Direitos Humanos. Discuta com os colegas essas
relações, destacando do texto exemplos que mostram como esses direitos são
violados.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão:
Quando são barrados nas fronteiras, quando são vítimas do tráfico de pessoas,
quando não são reconhecidas suas vulnerabilidades.
03 – Qual é a sua opinião
sobre a reflexão da autora no sexto e no sétimo parágrafos? Você acredita que a
perspectiva dela é possível? Comente seu ponto de vista com os colegas.
Resposta pessoal
do aluno.
04 – Conforme a autora, há
muito tempo a África é a origem de muitos movimentos migratórios. Ela pontua,
além da atualidade, outros dois contextos em que esse fluxo aconteceu
intensamente.
a)
Explique por que um desses contextos fez com
que a África passasse a ser conhecida como o “berço da Humanidade”.
Segundo alguns historiadores, os primeiros humanos a povoarem a
Terra por meio da migração eram originários do continente africano.
b)
Outro desses contextos marcou o continente
africano com tremendas repercussões no seu destino e determinou muitas das
vulnerabilidades que ele apresenta hoje. Que contexto histórico foi esse?
A escravidão.
05 – Na sua família ou entre
as pessoas que você conhece, há ou houve imigrantes? E emigrantes?
Resposta pessoal do aluno.
06 – Você já pensou em morar
em outros países ou em outras regiões do Brasil? Em qual(is) e por quê?
Resposta pessoal do aluno.