quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

NOTÍCIA: NÃO PUDE ESTAR COMPARECENDO - FRAGMENTO - PASQUALE CIPRO NETO - COM GABARITO

 Notícia: Não pude estar comparecendo – Fragmento

                 PASQUALE CIPRO NETO – Colunista da Folha

        [...]

        O fato é que de repente surgiu no Brasil a esquisita mania de usar o verbo “estar” seguido de outro verbo no gerúndio. Essa dupla na verdade é um trio, porque antes vem outro verbo. Algo como “o economista vai estar realizando uma série de palestras.” O que na verdade já poderia ser dito com apenas um verbo (realizará), ou com dois (vai realizar), acaba se transformando numa perífrase (rodeio de palavras) enfadonha.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgir3nvHJcw4CRs7TKT5Y_w6fLf6n3CXnR8UY2wnmchxeRGfDE4o5H940_DGTUjCsu3aUNtO65ju5RvtIHBz1omMcPuu7_k1nks23-7aBlyLnJamds0ieunX0tI6Z3qeHa9pPLYGUFIEYCK06tkuI69MFdiqDOPIndj1aoTzO5ZMCWZ0gtmI2nkPDY2hG0/s320/PERIFRASE.jpg


        O grande problema é que isso parece chique, tem uma cara de coisa da língua formal, culta, mas não passa de uma grande chatice.

        Uma amiga telefonou para a central de atendimento a clientes de um cartão de crédito. Depois de intermináveis "a gente vai estar tentando resolver o seu problema", "a senhora vai estar recebendo um extrato", "uma funcionária vai estar verificando", "a gente vai estar mandando uma cópia para a senhora", a funcionária perguntou: "A senhora pode estar enviando uma cópia do último pagamento?".

        Irônica, mordaz, minha amiga respondeu: "Estar enviando eu não posso, mas enviar eu posso". Inútil. Pelo que disse em seguida, parece que a funcionária não entendeu a ironia.

        Há alguns dias, um jogador do Santos deu entrevista à rádio Jovem Pan. Trata-se de rapaz letrado, bem falante, de classe média alta, que estudou em bons colégios. Feliz com sua atuação, o jovem atleta ofereceu os gols à mãe. "Mande-lhe uma mensagem", propôs o radialista. O jogador declarou seu amor à genitora e disse: "Desculpe, mãe. Seu aniversário foi ontem, mas eu não pude estar comparecendo à festa".

        "Não pude estar comparecendo" é de lascar. Que tal "Não pude comparecer"? Simples e indolor, não?

        É isso. Cuidado com modismos linguísticos. Esse cacoete já passou da fala e já frequenta a língua escrita, com ares de coisa boa. Fuja disso!

Folha de São Paulo, São Paulo, 19 fev. 1998. Fragmento.

Fonte: Português – Literatura, Gramática e Produção de texto – Leila Lauar Sarmento & Douglas Tufano – vol. 2 – Moderna – 1ª edição – São Paulo, 2010, p. 451-452.

Entendendo a notícia:

01 – Qual é a principal crítica do autor ao uso do gerúndio na construção "estar + gerúndio"?

      O autor critica o uso excessivo e inadequado da construção "estar + gerúndio", considerando-a uma "perífrase enfadonha" que torna a linguagem mais complexa e menos clara do que o necessário. Ele argumenta que essa construção, muitas vezes, é utilizada de forma artificial para dar um ar de formalidade à linguagem, mas que acaba soando artificial e inadequada.

02 – Quais são os exemplos utilizados pelo autor para ilustrar o uso inadequado do gerúndio?

      O autor apresenta diversos exemplos de uso inadequado do gerúndio, como em diálogos com atendentes de telemarketing e em entrevistas com jogadores de futebol. Nesses exemplos, a construção "estar + gerúndio" é utilizada de forma repetitiva e desnecessária, tornando a comunicação mais difícil e menos eficaz.

03 – Qual é a principal consequência do uso excessivo dessa construção?

      O uso excessivo da construção "estar + gerúndio" pode levar a uma linguagem rebuscada e artificial, dificultando a compreensão da mensagem. Além disso, essa construção pode transmitir uma impressão de falta de espontaneidade e naturalidade na comunicação.

04 – Qual é a alternativa sugerida pelo autor para evitar o uso inadequado do gerúndio?

      O autor sugere o uso de construções mais simples e diretas, como a substituição da construção "estar + gerúndio" por um verbo no infinitivo ou no futuro do presente. Por exemplo, em vez de dizer "vou estar realizando", pode-se dizer "vou realizar" ou "realizarei".

05 – Qual é a mensagem principal do texto?

      A mensagem principal do texto é um alerta sobre o uso inadequado do gerúndio na língua portuguesa. O autor defende a importância de uma linguagem clara, objetiva e natural, evitando construções complexas e artificiais que dificultam a comunicação. Ele convida os leitores a refletirem sobre a importância da escolha das palavras e a evitarem modismos linguísticos que podem prejudicar a qualidade da comunicação.

 



CRÔNICA: MENINO DE ILHA - FRAGMENTO - VINÍCIUS DE MORAES - COM GABARITO

 Crônica: MENINO DE ILHA – Fragmento

              Vinícius de Moraes

        Às vezes, no calor mais forte, eu pulava de noite a janela com pés de gato e ia deitar-me junto ao mar. Acomodava-me na areia como numa cama fofa e abria as pernas aos alíseos e ao luar; e em breve as frescas mãos da maré cheia vinham coçar meus pés com seus dedos de água.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEimLly9qLLgbDyP1Jr3ZBpWgXRSh54Yi0afcFMs5f_Rs9SkNSvuJ-7SKw_UjvDbo2jXxJW-S_W-F8Y3xkdS9YUnWQ4nuR7X_0aPuQPTHun4ryfWJzOvOojd6SvbnoEkQaebk1if79v6XxSlnrD60c4kRxFM63fSbUHJvbHFxrUrcgFjdK0XCw-BqiZWBUs/s1600/ILHA.jpg

        Era indizivelmente bom. Com um simples olhar podia vigiar a casa, cuja janela deixava apenas encostada; mas por mero escrúpulo. Ninguém nos viria nunca fazer mal. Éramos gente querida na ilha, e a afeição daquela comunidade pobre manifestava-se constantemente em peixe fresco, cestas de caju, sacos de manga-espada. E em breve perdia-me naquela doce confusão de ruídos... [...].

MORAES, Vinícius de. In: BUENO, Alexei (org.). Vinícius de Moraes: poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998. p. 914. Fragmento.

Fonte: Português – Literatura, Gramática e Produção de texto – Leila Lauar Sarmento & Douglas Tufano – vol. 2 – Moderna – 1ª edição – São Paulo, 2010, p. 397-398.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a sensação principal transmitida pelo fragmento?

      O fragmento transmite uma sensação de liberdade, de conexão com a natureza e de paz interior. A descrição da noite, do mar e da areia evoca uma atmosfera tranquila e prazerosa, representando uma experiência única e intensa da infância.

02 – Que relação o menino estabelece com o mar?

      O menino estabelece uma relação íntima e quase simbiótica com o mar. Ele o vê como um companheiro, um elemento da natureza que o acolhe e o acalma. A descrição da maré tocando seus pés e a sensação de se perder nos ruídos do mar evidenciam essa conexão profunda.

03 – Qual a importância da comunidade para o menino?

      A comunidade da ilha é descrita como acolhedora e generosa. A afeição dos moradores, manifestada através de presentes e cuidados, cria um ambiente seguro e familiar para o menino. Essa sensação de pertencimento à comunidade contribui para a sua felicidade e bem-estar.

04 – Que elementos da natureza são destacados no fragmento?

      O fragmento destaca elementos como o mar, a areia, o luar e o vento. Esses elementos naturais são descritos de forma poética e sensível, criando uma atmosfera mágica e evocando os sentidos do leitor.

05 – Qual o significado da frase "Era indizivelmente bom"?

      A frase "Era indizivelmente bom" expressa a dificuldade de descrever em palavras a intensidade da experiência vivida pelo menino. É um momento de puro prazer e felicidade, uma sensação tão intensa que transcende as palavras.

 

 

NOTÍCIA: EU, CIBORGUE - FRAGMENTO - RITA LOIOLA - COM GABARITO

 Notícia: Eu, Ciborgue – Fragmento

             Rita Loiola

        Um cientista inglês quer iniciar a nova etapa da evolução: criar corpos feitos de pele, osso e circuitos

        Em 1988, o inglês Kevin Warwick se tornou um robô. O cientista implantou um chip no braço para controlar mecanismos em seu laboratório. Assim: com o aparato instalado debaixo da pele, conseguia, por exemplo, abrir portas apenas ao se aproximar. “Virei um controle remoto ambulante”, diz.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiA8E5iAg4t4_rkCSXCevaOBNeOAa9M-6-a0CsqUv15hzuWa3r7f0CuGOVUqQ5X1EdlSGuZIaLZIxlRO6W2dBlTusZy5HbZigTVtDXaI1QHoCscWQP5UT1mkmxQsFKheDl_JdQudL6EFM7vkpN0icFPhTF3uOpR8BKb7oVZJMIs03HgCgg7JEHGILOXPUc/s320/CIBORGUE.jpg


        O pesquisador está convencido de que o próximo passo da evolução humana serão os ciborgues. “Em menos de 30 anos, qualquer um poderá ter uma parte robótica.” Imagine um mundo em que será possível guardar arquivos no próprio cérebro? Ou conversar sem abrir a boca, usando apenas a mente? E se conectar à internet utilizando um dedo como pen drive ou dirigir um carro sem se mexer? Chip a chip, Kevin vem construindo essa realidade.

      Hoje, aos 55 anos, o professor de cibernética da Universidade de Reading, na Inglaterra, pretende provar que o corpo humano pode tudo. “Por que devemos nos limitar aos cinco sentidos? Por que não tentar a comunicação pelo pensamento? Por que não sermos super-homens?”

        Por enquanto, o cientista precisa contentar-se em ser apenas... humano. Mas não por muito tempo. Warwick está em contagem regressiva. Antes de seu 60º aniversário, ele pretende criar um cérebro biológico para computadores e prepara uma técnica para o momento crucial de sua carreira: instalar um chip no próprio crânio. O implante o tornará um novo tipo de ser: parte humano, parte máquina.

        [...]

LOIOLA, Rita. Galileu, São Paulo, n. 220, p. 67, nov. 2009. Fragmento.

Fonte: Português – Literatura, Gramática e Produção de texto – Leila Lauar Sarmento & Douglas Tufano – vol. 2 – Moderna – 1ª edição – São Paulo, 2010, p. 450-451.

Entendendo a notícia:

01 – Qual foi a primeira experiência de Kevin Warwick com a cibernética?

      A primeira experiência de Kevin Warwick com a cibernética foi a implantação de um chip em seu braço em 1988. Esse chip permitia que ele controlasse mecanismos em seu laboratório, como abrir portas, apenas com a aproximação do braço.

02 – Qual a visão de futuro de Kevin Warwick para a humanidade?

      A visão de futuro de Kevin Warwick é a criação de ciborgues, seres humanos com partes robóticas. Ele acredita que em menos de 30 anos, será comum ter partes do corpo substituídas por componentes eletrônicos, permitindo habilidades como guardar informações no cérebro, se comunicar por telepatia e controlar dispositivos com a mente.

03 – Quais as principais motivações de Warwick para suas pesquisas?

      Warwick é motivado pela curiosidade de explorar os limites da biologia e da tecnologia. Ele questiona por que nos limitar aos cinco sentidos e busca expandir as capacidades humanas, tornando-nos seres mais avançados e conectados.

04 – Qual o próximo passo de Warwick em suas pesquisas?

      O próximo passo de Warwick é criar um cérebro biológico para computadores e implantar um chip em seu próprio crânio. Esse implante o transformará em um ciborgue, unindo o biológico e o tecnológico.

05 – Quais as implicações éticas e sociais da pesquisa de Warwick?

      A pesquisa de Warwick levanta diversas questões éticas e sociais, como os limites da intervenção humana no corpo, as possíveis consequências da fusão entre homem e máquina e a desigualdade social que pode surgir com o acesso diferenciado a essas tecnologias. Além disso, há preocupações com a privacidade e a segurança dos dados armazenados no cérebro.

 

 

CONTO: UMA ESTRANGEIRA DA NOSSA RUA - FRAGMENTO - MILTON HATOUM - COM GABARITO

 Conto: Uma estrangeira da nossa rua – Fragmento

            Milton Hatoum.

        No caminho do aeroporto para casa, eu observava os lugares da cidade agora irreconhecível. Quase toda a floresta em torno da área urbana havia degenerado em aglomerações de barracos ou edifícios horrorosos. Em casa, tia Mira me recebeu com entusiasmo e contou uma ou outra novidade que, para mim, já não faziam sentido. Deixei a mala no quarto e quase sem querer perguntei pelos Doherty.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhwMBpQ9Y1SfQQs_r3H0n4JNFhYChqU1z7BGE4MYng17n5LrB5FD2BNmdE_PKpUEl9Z-0xf7LaxfBchEf6Dt10sysPVZEdzzKFuZrWJuyariGSfLYOfClnkPiDqe43JWjwwMbHjN4TfeGuCV8ZdCTJkUJsaY4jDHvn9GB7-Ubxicv2J_t9ju1BfQmbDGqI/s320/TURISTA.png


        Nunca mais voltaram, disse tia Mira. O pai ainda passou uns meses aqui, vendeu o bangalô e foi embora. O comprador derrubou o muro, a casa, a acácia. Tudo.

        Para onde foram?

        E quem pode saber? Aquela família vivia em outro mundo.

        Eu tinha acabado de chegar à cidade, e notara com tristeza a ausência da casa azul na nossa rua. Era um bangalô bonito, cercado por um muro de pedras vermelhas que uma trepadeira cobria; no pátio dos fundos uma acácia solitária floria nos meses de chuva e sombreava o quarto das duas irmãs. Agora um monte de escombros enchia o terreno na rua em declive.

        Na varanda de casa, ao olhar as ruínas do bangalô, me lembrei de Lyris, mais alta e também menos arredia que a irmã. O cabelo quase ruivo, o rosto anguloso e os olhos verdes e um pouco puxados embaralhavam traços do pai e da mãe. Só me dei conta dessa beleza estranha e misturada no fim da infância, quando senti alguma coisa terrível e ansiosa parecida com a paixão.

        Lyris devia ter uns dezoito anos, e a irmã era quase da minha idade: quinze.

        [...]

HATOUM, Milton. A cidade ilhada: contos. São Paulo: Companhia da Letras, 2009. p. 15-16. Fragmento.

Fonte: Português – Literatura, Gramática e Produção de texto – Leila Lauar Sarmento & Douglas Tufano – vol. 2 – Moderna – 1ª edição – São Paulo, 2010, p. 449.

Entendendo o conto:

01 – Qual a principal mudança ocorrida na cidade e no entorno da casa do narrador?

      A principal mudança é a devastação da natureza e a urbanização desenfreada. A floresta que antes rodeava a cidade foi substituída por aglomerações de barracos e edifícios, e a casa dos Doherty, com seu jardim e árvores, foi demolida, dando lugar a um terreno baldio. Essa transformação reflete uma perda da identidade e da história do lugar.

02 – Qual o significado da ausência da casa dos Doherty para o narrador?

      A ausência da casa dos Doherty representa a perda de um ponto de referência e de uma figura feminina que despertou nele sentimentos de paixão e admiração. A casa e seus habitantes simbolizavam um mundo diferente, mais livre e misterioso, que contrasta com a realidade da cidade transformada.

03 – Como o narrador descreve Lyris?

      O narrador descreve Lyris como uma jovem bela e enigmática, com traços físicos que misturam a herança de seus pais. Ele destaca a beleza de seus olhos verdes e a sua altura, contrastando-a com a irmã mais nova. A descrição de Lyris é marcada por um tom de admiração e desejo.

04 – Qual a importância da figura de Lyris para o narrador?

      Lyris representa o despertar da sexualidade e dos primeiros amores do narrador. Ela é uma figura idealizada, que desperta nele sentimentos complexos e contraditórios, como admiração, desejo e um pouco de medo. A figura de Lyris marca um momento importante na formação da identidade do narrador.

05 – Qual a atmosfera geral criada no fragmento?

      A atmosfera geral do fragmento é marcada por um sentimento de nostalgia e perda. O narrador expressa tristeza pela transformação da cidade e pela ausência da família Doherty. A descrição da casa demolida e a lembrança de Lyris evocam um passado idealizado e irrevogavelmente perdido.

 

 

CONTO: UMA EMBAIXADA - ARTUR AZEVEDO - COM GABARITO

Conto: UMA EMBAIXADA

            Artur Azevedo

        Minervino ouviu um toque de campainha, levantou-se do canapé, atirou para o lado o livro que estava lendo, e foi abrir a porta ao seu amigo Salema.

        -- Entra. Estava ansioso.

        -- Vim, mal recebi o teu bilhete. Que deseja de mim?

        -- Um grande serviço!

        -- Oh, diabo! Trata-se de algum duelo?

        -- Trata-se simplesmente de amor. Senta-te.

        Sentaram-se ambos.

        Eram dois rapagões de vinte e cinco anos, oficiais da mesma Secretaria do Estado; dois colegas, dois companheiros, dois amigos, entre os quais nunca houvera a menor divergência de opinião ou sentimentos. Estimavam-se muito, estimavam-se deveras.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhgYa3creiZ3dIo6Ar-A5ffsdR4x07ULdSufDzmWc6Zd2bIHoJDTgcbWeHjiif8-YdIFbElAi3_qP8litHwhx6XtqCiV7wOFvgwsbVK-KWGhn3wrrMxyPcx6HgRp9czsI8wwNn3CH0ZbErWB9moHer5dzSIWwHYlLoNRmkzwemb564YINtHf0bThpSKErc/s320/EMBAIXADA.jpg 


        -- Mandei-te chamar – continuou Minervino – porque aqui podemos falar mais à vontade; lá em tua casa seríamos interrompidos por teus sobrinhos. Ter-me-ia guardado para amanhã, na Secretaria, se não se tratasse de uma coisa inadiável. Há de ser hoje por força!

        -- Estou às tuas ordens.

        -- Bom. Lembras-te de um dia ter te falado de uma viúva bonita, minha vizinha, por quem andava muito apaixonado?

        -- Sim, lembro-me. Um namoro...

        -- Namoro que se converteu em amor, amor que se transformou em paixão!

        -- Quê! Tu estás apaixonado?!...

        -- Apaixonadíssimo... E é preciso acabar com isto!

        -- De que modo?

        -- Casando-me; és tu que hás de pedi-la!

        -- Eu?!...

        -- Sim, meu amigo. Bens sabes como sou tímido... Apenas me atrevo a fixá-la durante alguns momentos, quando chego à janela, ou a cumprimentá-la, quando entro ou saio. Se eu mesmo fosse falar-lhe, era capaz de não articular três palavras. Lembras-te daquela ocasião em que fui pedir ao ministro que me nomeasse para a vaga do Florêncio? Pus-me a tremer diante dele, e a muito custo consegui expor o que desejava. E quando o ministro me disse: – Vá descansado, hei de fazer justiça – eu respondi-lhe: – Vossa excelência, se me nomear, não chove no molhado! – Ora, se sou assim com os ministros, que fará com as viúvas.

        -- Mas tu a conheces?

        -- Estou perfeitamente informado: é uma senhora digna e respeitável, viúva do Senhor Perkins, negociante americano. Mora ali defronte, no número 37. Peço-te que a procures imediatamente e lhe faças o pedido da minha parte. És tão desembaraçado como eu sou tímido; estou certo que serás bem sucedido. Dize-lhe de mim o melhor que puderes dizer; advoga a minha causa com a tua eloquência habitual, e a gratidão do teu amigo será eterna.

        -- Mas que diabo! – observou Salema. – Isto não é sangria desatada! Por que há de ser hoje e não outro dia? Não vim preparado!

        -- Não pode deixar de ser hoje. A viúva Perkins vai amanhã para a fazenda da irmã, perto de Vassouras, e eu não queria que partisse sem deixar lavrada a minha sentença.

        -- Mas, se lhe não falas, como sabes que ela vai partir?

        -- Ah! Como todos os namorados, tenho a minha polícia... Mas vai, vai, não te demores; ela está em casa e está sozinha; mora com um irmão empregado no comércio, mas o irmão saiu... Deve estar também em casa a dama de companhia, uma americana velha, que naturalmente não aparecerá na sala, nem estorvará a conversa.

        E Minervino empurrava Salema para a porta, repetindo sempre:

        -- Vai! Vai! Não te demores!

        Salema, saiu, atravessou a rua, e entrou em casa da viúva Perkins.

        No corredor pôs-se a pensar na esquisitice da embaixada que o amigo lhe confiara.

        -- Que diabo! – refletiu ele. – Não sei quem é esta senhora; vou falar-lhe pela primeira vez... Não seria mais natural que o Minervino procurasse alguém que a conhecesse e o apresentasse?... Mas, ora adeus!... Eles namoram-se; é de esperar que o embaixador seja recebido de braços abertos.

        Alguns minutos depois, Salema achava-se na sala da viúva Perkins, uma sala mobiliada sem luxo, mas com um certo gosto, cheia de quadros e outros objetos de arte. Na parede, por cima do divã de repes, o retrato de um homem novo ainda, muito louro, barbado, de olhos azuis, lânguidos e tristes. Provavelmente o americano defunto.

        Salema esperou uns dez minutos.

        Quando a viúva Perkins entrou na sala, ele agarrou-se a um móvel para não cair; paralisaram-se os movimentos, e não pôde reter uma exclamação de surpresa.

        Era ela! Ela!... A misteriosa mulher que encontrara, havia muitos meses, num bonde das Laranjeiras, e meigamente lhe sorrira, e o impressionara tanto, e desaparecera, deixando-lhe no coração um sentimento indizível, que nunca soubera classificar direito.

        Durante muitos dias e muitas noites a imagem daquela mulher perseguiu-o obstinadamente, e ele debalde procurou tornar a vê-la nos bondes, na rua do Ouvidor, nos teatros, nos bailes, nos passeios, nas festas. Debalde!...

        -- Oh! – disse a viúva, estendendo-lhe a mão muito naturalmente, como se fizesse a um velho amigo. – Era o senhor?

        -- Conhece-me? – balbuciou Salema.

        -- Ora essa! Que mulher poderia esquecer-se de um homem a quem sorriu? Quando aquele dia nos encontramos no bonde das Laranjeiras, já eu o conhecia. Tinha-o visto uma noite no teatro e, não sei por quê... por simpatia, creio... perguntei quem o senhor era, não me lembro a quem... Lembra-me que o puseram nas nuvens. Porque nunca mais tornei a vê-lo?

        Diante do desembaraço da viúva Perkins, Salema sentiu-se ainda mais tímido que Minervino – mas cobrou ânimo, e respondeu:

        -- Não foi porque não a procurasse por toda a parte...

        -- Não sabia onde eu morava?

        -- Não, supus que nas Laranjeiras. Vi-a entrar naquele sobrado... e debalde passei por lá um milhão de vezes, na esperança de tornar a vê-la.

        -- Era impossível; aquela é a casa de minha irmã; só abre quando ela vem da fazenda. O sobrado está fechado há oito meses. Mas sente-se... aqui... mais perto de mim... Sente-se, e diga o motivo da sua visita.

        De repente, e só então, Salema lembrou-se do Minervino.

        -- O motivo de minha visita é muito delicado; eu...

        -- Fale! Diga sem rebuço o que deseja! Seja franco! Imite-me!... Não vê como sou desembaraçada? Fui educada por meu marido...

        E apontou para o retrato.

        -- Era americano; educou-me à americana. Não há, creia, não há educação como esta para salvaguardar uma senhora. Vamos fale!...

        -- Minha senhora, eu sou...

        Ela interrompeu:

        -- É o Senhor Nuno Salema, órfão, solteiro, empregado público, literato nas horas vagas, que vem pedir a minha mão em casamento.

        Ela estendeu-lhe a mão, que ele apertou.

        -- É sua! Sou a viúva Perkins, honesta como a mais honesta, senhora das suas ações, e quase rica. Não tenho filho nem outros parentes por meu marido, e uma irmã fazendeira, igualmente viúva. Não percamos tempo!

        Salema quis dizer alguma coisa ela não o deixou falar.

        -- Amanhã parto para a fazenda da minha irmã. Venha comigo, à americana, para lhe ser apresentado.

        Nisto entrou na sala, vindo da rua, apressado, o irmão da viúva Perkins, um moço de vinte anos, muito correto, muito bem trajado.

        -- Mano, apresento-lhe o Senhor Nuno Salema, meu noivo.

        O rapaz inclinou-se, apertou fortemente a mão do futuro cunhado, e disse:

        -- All rigth!...

        Depois inclinou-se de novo e saiu da sala, sempre apressado.

        -- Mas, minha senhora – tartamudeou o noivo muito confundido – imagine que o meu colega Minervino, que mora ali defronte...

        A viúva aproximou-se da janela. Minervino estava na dele, defronte, e, assim que a viu deu um pulo para trás e sumiu-se.

        -- Ah! Aquele moço?... Coitado! Não posso deixar de sorrir quando olho para ele... É tão ridículo com o seu namoro à brasileira!...

        -- Mas... ele... tinha-me encarregado de pedi-la em casamento, e eu entrei aqui sem saber quem vinha encontrar...

        -- Deveras?! – exclamou a viúva Perkins.

        E ei-la acometida de um ataque de riso:

        -- Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!...

        E deixou-se cair no divã:

        -- Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!...

        Salema aproximou-se da viúva, tomou-lhe as mãozinhas, beijou-as, e perguntou:

        -- Que hei de dizer ao meu amigo?

        Ela ficou muito séria, e respondeu:

        -- Diga-lhe que quem tem boca não manda soprar.

AZEVEDO, Artur. Contos. São Paulo: Ed. Três, 1973. p. 131-136.

Fonte: Português – Literatura, Gramática e Produção de texto – Leila Lauar Sarmento & Douglas Tufano – vol. 2 – Moderna – 1ª edição – São Paulo, 2010, p. 239-241.

Entendendo o conto:

01 – Qual a principal situação cômica do conto?

      A principal situação cômica reside no mal entendido e na reviravolta inesperada da história. Minervino, por ser tímido, pede a Salema que o represente em um pedido de casamento, sem saber que Salema já tinha se apaixonado pela mesma mulher em outra ocasião.

02 – Quais os personagens principais do conto e quais suas características?

      Os personagens principais são Minervino e Salema, dois amigos e colegas de trabalho. Minervino é tímido e apaixonado pela vizinha viúva, enquanto Salema é mais extrovertido e já havia se encantado pela mesma mulher em outra ocasião. A viúva Perkins é descrita como uma mulher decidida, inteligente e com um passado interessante.

03 – Qual o papel do humor na história?

      O humor é fundamental para a construção da narrativa, criando situações inusitadas e diálogos engraçados. As reações dos personagens, os mal-entendidos e as reviravoltas inesperadas geram o riso do leitor.

04 – Qual a crítica social presente no conto?

        O conto critica sutilmente a rigidez dos costumes da época, especialmente no que diz respeito aos relacionamentos amorosos. A figura da viúva americana, moderna e independente, contrasta com os costumes mais tradicionais da sociedade brasileira.

05 – Qual o papel da linguagem na construção do humor?

      A linguagem utilizada por Artur Azevedo é simples e direta, com um tom coloquial que aproxima o leitor dos personagens. O humor é construído através de diálogos rápidos e espirituosos, além do uso de expressões populares e gírias da época.

06 – Qual a importância da personagem da viúva Perkins na história?

      A viúva Perkins é uma personagem fundamental para a resolução da trama. Sua personalidade forte e decidida contrasta com a timidez de Minervino e a surpresa de Salema. Ela é a responsável por desvendar o mal-entendido e por propor uma solução inesperada para a situação.

07 – Qual a mensagem principal do conto?

      A mensagem principal do conto é a importância da comunicação e da espontaneidade nos relacionamentos. A timidez de Minervino e o mal-entendido com Salema demonstram como a falta de comunicação pode gerar situações cômicas e até mesmo trágicas. A figura da viúva Perkins representa a mulher moderna e independente, que rompe com os padrões sociais e busca a felicidade de forma autônoma.

08 – Como o conto se encaixa no contexto histórico e social da época em que foi escrito?

      O conto reflete os costumes e valores da sociedade brasileira da época, com suas convenções sociais e expectativas em relação ao casamento e às relações amorosas. A figura da viúva americana representa uma quebra com esses padrões, mostrando uma mulher moderna e independente.

09 – Quais os elementos que tornam "Uma Embaixada" um conto clássico da literatura brasileira?

      A simplicidade da linguagem, a construção de personagens caricatos e a abordagem humorística de temas como o amor e o casamento tornam "Uma Embaixada" um conto clássico da literatura brasileira. A obra de Artur Azevedo continua a divertir e a emocionar os leitores, mesmo após tantos anos de sua publicação.

10 – Qual a importância da leitura de contos como "Uma Embaixada" na atualidade?

      A leitura de contos como "Uma Embaixada" permite que o leitor entre em contato com a cultura e os costumes de uma época passada. Além disso, a obra de Artur Azevedo continua relevante por abordar temas universais como o amor, a amizade e a comunicação, que são importantes para qualquer época. A leitura de contos clássicos enriquece o repertório cultural e contribui para o desenvolvimento da capacidade crítica do leitor.

 

 

  

CRÔNICA: A INVENÇÃO DA LARANJA - FRAGMENTO - FERNANDO SABINO - COM GABARITO

 Crônica: A INVENÇÃO DA LARANJA – Fragmento

              Fernando Sabino

        Nem todos sabem que a laranja, fruta cítrica, suculenta e saborosa, foi inventada por um grande industrial americano, cujo nome prefiro calar, mas em circunstâncias que merecem ser contadas.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhDhAMjZsld8U2vRTTnM1n3jUuO7fRgg6Dmg7fQhQ09jqIyB0MsuFlJnA7t1CsZlx1_UJYSGii7tHxkeSJlOkKESuP4RYs1Ccpj1zj8UtGYXffHXN-uugtHOgFZB97f0NxfRMjCZWaLWULlGdvS5lo8XMwMUXRaKTVS_JdPyEep3APYHfJkrx-2rAs7Ysc/s320/LARANJA.jpg


        Começou sendo chupada às dúzias por este senhor, então um simples molecote de fazenda no interior da Califórnia. Com o correr dos anos o molecote virou moleque e o moleque virou homem, passando por todas as fases lírico-vegetativas a que se sujeita uma juventude transcorrida à sombra dos laranjais: apaixonou-se pela filha do dono da fazenda, meteu-se em peripécias amorosas que já inspiraram dois filmes em Hollywood e que culminaram nas indefectíveis flores de laranjeiras, até que um dia, para encurtar, viu-se ele próprio casado, com uma filha que outros moleques cobiçavam, e dono absoluto da plantação.

        [...]

SABINO, Fernando. Obra reunida. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p. 244. Fragmento.

Fonte: Português – Literatura, Gramática e Produção de texto – Leila Lauar Sarmento & Douglas Tufano – vol. 2 – Moderna – 1ª edição – São Paulo, 2010, p. 430-431.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a principal ironia presente no conto?

      A principal ironia reside na ideia de que a laranja, um fruto tão natural e antigo, tenha sido "inventada" por um homem. Essa afirmação subverte a noção de que a natureza é algo estático e imutável, sugerindo que a realidade pode ser moldada pela imaginação e pelas experiências humanas.

02 – Qual o papel do protagonista na "invenção" da laranja?

      O protagonista não inventa a laranja no sentido literal, mas sim transforma a sua relação com a fruta. Ao longo de sua vida, ele estabelece uma conexão profunda com os laranjais, vivenciando diversas experiências que o fazem apreciar ainda mais o sabor e o significado da laranja. Sua história pessoal se entrelaça com a história da fruta, criando uma nova perspectiva sobre ela.

03 – Que elementos da narrativa contribuem para o humor da crônica?

      O humor da crônica é construído através da exageração, da ironia e da subversão de expectativas. A ideia de que um homem tenha inventado a laranja, a descrição das peripécias amorosas do protagonista e a relação entre a fruta e as fases da vida são elementos que contribuem para a criação de um efeito cômico.

04 – Qual a importância da natureza na crônica?

      A natureza, representada pelos laranjais, desempenha um papel fundamental na crônica. Ela serve como pano de fundo para a história do protagonista, influenciando suas emoções e moldando sua personalidade. A laranja, em particular, é um símbolo da vida, da fertilidade e da renovação.

05 – Qual a mensagem principal da crônica?

      A mensagem principal da crônica é que a realidade é construída a partir de nossas experiências e percepções. A laranja, que para muitos é apenas uma fruta, adquire um significado especial para o protagonista, tornando-se um símbolo de sua vida e de suas memórias. A crônica nos convida a olhar para o mundo com mais atenção e a encontrar significado nas coisas mais simples.

 

REPORTAGEM: O ALUNO DEPENDE DEMAIS DO GOOGLE - REVISTA ÉPOCA - COM GABARITO

 Reportagem: O ALUNO DEPENDE DEMAIS DO GOOGLE

        Para o historiador, o desafio é educar a nova geração a usar a “máquina” chamada livro.

        Ele é um rato de biblioteca. Robert Darnton ama os livros. Especialmente se forem antigos, com mais de 200 anos. Darnton é um dos maiores historiadores americanos. Por quatro décadas, explorou os meandros das grandes bibliotecas da Europa à caça de volumes perdidos de romances amorais do antigo Regime ou da única cópia de um folhetim subversivo da França pré-revolucionária. Darnton, de 69 anos, se aposentou da Universidade Princeton em 2007 e assumiu a direção da Biblioteca da Universidade Harvard. Tomou a missão de digitalizar e tornar acessível gratuitamente pela Internet o conjunto da produção intelectual de Harvard. Defensor d nova tecnologia, Darnton detecta nos alunos a perda de intimidade com uma tecnologia mais antiga – o livro.

 
Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhpK_MoD0ylEv9YMRxEiIS8iwYcJLTvWZW8-bE8QsCSEt6UYQxet67P32l51j1PRb17_B8Lab2oeBFpxUUjPPbTV-e3LGnj_ouhNbMYnZNoDO9nPVgZXTiUs3-Eical5-C9TvuM9YOiBQbVXm9Yj0g-rQD-8A1_63V3nxEKAN2mw9CBl6fuDEoTvsyai-0/s1600/LIVRO.jpg

        Época – O livro tem futuro?

        Robert Darnton – O livro é uma grande invenção. É agradável de manusear e ler. Não desaparecerá. Mas crianças e adolescentes têm hoje pouco contato com ele. Sua fonte de entretenimento é o computador. Os jovens são fascinados pelas pequenas doses de informação a que têm acesso pelos diferentes tipos de máquina e não desenvolvem o hábito das longas horas de leitura. Para eles, o livro é menos convidativo, confortável e familiar que para nós. Isso me preocupa. Creio que veremos surgir diversas formas de leitura e toda uma variedade de meios de comunicação. Os livros acadêmicos serão híbridos, publicados em parte na forma convencional, em parte on-line, com dados, links e material suplementar em áudio, vídeo e imagem. No caso dos livros de não ficção, que escrevo para o público leigo, acho ótimo poder exibir aspectos do passado graças à nova tecnologia. 

        Época – Seus alunos ainda leem livros?

        Robert Darnton – Meus alunos em Harvard são ávidos pela leitura. Mas não conhecem suas convenções, não sabem usar uma biblioteca, não sabem fazer pesquisas nem acompanhar as notas de rodapé. Eles dependem demais do Google. Ele é uma ferramenta fantástica, mas não é adequada para oferecer ao leitor o tipo de experiência, de degustação, que só o livro possibilita, como quando usamos o sumário para nos orientar ou folheamos capítulos aleatoriamente. O Google não permite isso. Haverá uma perda se dependermos demais desses mecanismos. Nesse sentido, sou pessimista. Devemos educar a nova geração a usar essa “máquina”, o livro, do modo como foi criada para ser usada.

        Época – Existe a impressão de que as bibliotecas estão se tornando obsoletas.

        Robert Darnton – Há diversos tipos de biblioteca. É possível que as pequenas bibliotecas públicas se tornem cada vez mais dependentes da Internet e adquiram menos livros. Elas podem se transformar em pontos de encontro da comunidade, como acontece nas bibliotecas de bairro em Nova York. Podem também funcionar como um tipo de creche, onde os pais deixam seus filhos de tarde.

        Época – E as grandes bibliotecas?

        Robert Darnton – As grandes bibliotecas acadêmicas têm outra função. No caso de Harvard, ela é de longe a maior biblioteca de pesquisa do mundo. São cerca de cem bibliotecas com mais de 16 milhões de volumes. Somos responsáveis pela conservação de nossas coleções, mas também por liderar o caminho na direção do mundo digital. Temos dezenas de especialistas pesquisando como preservar os livros que nasceram digitais. Assim como compramos coleções particulares, passamos a adquirir bancos de dados. A Faculdade de Artes e Ciências decidiu digitalizar todos os seus artigos acadêmicos e torna-los acessíveis a qualquer pessoa no planeta. Toda a produção científica de Harvard estará disponível de graça na internet a partir de outubro – e para sempre. O papel da biblioteca não é mais servir apenas aos professores e estudantes de Harvard, mas compartilhar nossa riqueza intelectual. Não quero dizer que devemos parar de comprar livros. O encantamento com a digitalização traz risco de negligenciar as coleções tradicionais.

        Época – O Google quer digitalizar todos os livros já impressos. É factível?

        Robert Darnton – As coleções de Harvard são tão vastas que não creio que algum dia sejam inteiramente digitalizadas, nem mesmo pelo Google Book Search (http://books.google.com/). O grande problema é o direito autoral. Nos Estados Unidos, qualquer coisa publicada desde 11923 está protegida por lei e nem sempre pode ser digitalizada. Como fazer para oferecer essa enorme quantidade de conhecimento protegida por copyright? O Google queria digitalizar tudo, mas foi processado pelos sindicatos dos autores e das editoras. Isso o obrigou a parar em 1923. Temo que interesses comerciais tentem monopolizar o acesso à informação, à medida que os livros forem digitalizados.

        Época – O Google emprega milhares de engenheiros, mas nenhum bibliotecário.

        Robert Darnton – Sim, é verdade. isso mostra que eles não estão interessados nos livros enquanto fonte de conhecimento, mas como fonte de dados. Não lhes interessa qual edição colocarão on-line. Um exemplo é a primeira edição das obras de Shakespeare, publicada por várias editoras londrinas a partir de 1623, sete anos após a morte do autor. Como nenhum manuscrito original de Shakespeare sobreviveu, estudiosos tiveram de estabelecer o texto original de cada uma das peças, pois o texto de uma impressão era radicalmente diferente do de outra. Se o Google Book Search jogar na web a primeira versão que lhe cair nas mãos, estará sendo irresponsável.

        Época – Com a rápida obsolescência das tecnologias digitais, o Google não corre o risco de sumir antes das bibliotecas?

        Robert Darnton – Esse risco existe. Ninguém solucionou o problema de como preservar textos digitais. Para conservá-los, temos de migrar os arquivos de uma máquina para outra e atualizar os programas. Se o Google desaparecer, quem gastará milhões de dólares para manter o acervo? Desde que a Microsoft abandonou seu projeto de digitalização, o Google não tem concorrentes. Caso seu acervo virtual desapareça, será uma perda terrível, quanto mais se as bibliotecas deixarem de guardar os originais.

        Época – E quanto aos jornais e revistas, também não é o caso de digitaliza-los?

        Robert Darnton – Espero que esse seja o próximo passo do Google. Até o momento, não fizeram nada. Apesar das minhas críticas, sou um entusiasta do Google Book Search. Só temo que as pessoas comecem a achar que ele é a solução para tudo e que não precisamos manter bibliotecas. No caso dos jornais, sua digitalização é urgente. Como são impressos em papel de qualidade inferior, desaparecem rápido. O mesmo se dá com a literatura popular. No caso do cinema mudo, metade dos filmes desapareceu. Muitos eram obras-primas, um patrimônio perdido.

        Época – O livro eletrônico parece ter deslanchado com o Kindle, da Amazon.

        Robert Darnton – Nunca usei um Kindle, mas é uma questão de tempo até termos livros eletrônicos muito bons. Outra tecnologia que observo com atenção é a impressão sob demanda, onde o leitor escolhe, compra e copia um livro da web, para imprimi-lo e encaderná-lo em casa a um custo muito baixo.

        Época – Ninguém mais escreve cartas. Enviamos e-mail. Como preservá-los?

        Robert Darnton – É um grande desafio. Em Harvard, estamos armazenando todo o correio eletrônico tocado na universidade. É um volume imenso. O projeto inclui preservar as informações em sites e blogues. Até o momento, esse acervo estava irremediavelmente perdido.

Época, São Paulo, n. 537, p. 129-130, 1 set. 2008.

Fonte: Português – Literatura, Gramática e Produção de texto – Leila Lauar Sarmento & Douglas Tufano – vol. 2 – Moderna – 1ª edição – São Paulo, 2010, p. 453-455.

Entendendo a reportagem:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

Meandros: caminhos difíceis.

Híbridos: compostos de diferentes elementos.

Ávidos: ansiosos.

Degustação: apreciação.

Factível: que pode ser realizado.

Obsolescência: condição do que está próximo de se tornar obsoleto, ultrapassado.

02 – Qual a principal preocupação de Robert Darnton em relação à nova geração e a leitura?

      Darnton teme que a nova geração esteja perdendo a intimidade com o livro e o hábito da leitura profunda, substituindo-os por um consumo rápido e superficial de informações através de dispositivos eletrônicos.

03 – Como a tecnologia digital pode complementar a experiência de leitura?

      A tecnologia pode enriquecer a experiência de leitura, permitindo o acesso a materiais suplementares, como imagens, vídeos e áudios, e facilitando a pesquisa e a interação com o texto. No entanto, Darnton alerta para o risco de que a tecnologia se torne uma distração e substitua a leitura profunda.

04 – Qual o papel das bibliotecas no mundo digital?

      As bibliotecas estão se adaptando ao mundo digital, digitalizando seus acervos e oferecendo novos serviços. As grandes bibliotecas acadêmicas, como a de Harvard, assumem um papel central na preservação do conhecimento e na disponibilização gratuita de informações.

05 – Quais os desafios da digitalização de livros e outros materiais?

      A digitalização de livros enfrenta desafios como o direito autoral, a preservação dos arquivos digitais e a garantia da qualidade da digitalização. Além disso, existe o risco de que as empresas que digitalizam os livros monopolizem o acesso à informação.

06 – Qual a diferença entre a abordagem do Google e a das bibliotecas em relação à digitalização de livros?

      O Google busca digitalizar livros em grande escala, mas prioriza a quantidade em detrimento da qualidade e da preservação do contexto histórico. As bibliotecas, por sua vez, se preocupam em preservar a integridade dos textos e em oferecer acesso a informações contextuais.

07 – Como a digitalização pode impactar a preservação do conhecimento?

      A digitalização pode garantir a preservação de materiais que estão se deteriorando, como jornais e filmes. No entanto, a preservação de arquivos digitais exige investimentos contínuos e pode ser comprometida pela obsolescência tecnológica.

08 – Quais as perspectivas para o futuro do livro impresso?

      Darnton acredita que o livro impresso não desaparecerá, mas que coexistirá com os formatos digitais. Ele destaca a importância do livro como objeto físico e a experiência única que ele proporciona ao leitor.

09 – Como preservar a correspondência eletrônica e outras formas de comunicação digital?

      A preservação da correspondência eletrônica e de outros materiais digitais é um grande desafio. As instituições estão buscando soluções para armazenar e preservar esses dados a longo prazo.

10 – Qual o papel das pequenas bibliotecas públicas no mundo digital?

      As pequenas bibliotecas públicas podem se adaptar ao mundo digital, oferecendo serviços como acesso à internet e atividades culturais. No entanto, elas podem enfrentar dificuldades para manter seus acervos físicos.

11 – Qual a importância de ensinar as novas gerações a utilizar o livro de forma eficaz?

      Ensinar as novas gerações a utilizar o livro de forma eficaz é fundamental para garantir que elas desenvolvam habilidades de leitura crítica e analítica. O livro oferece uma experiência de leitura mais profunda e completa do que os dispositivos eletrônicos.