Texto: Chuva
Edson Gabriel
Garcia
A primeira meia dúzia de pingos de
chuva caiu de manso, apesar do escuro que o céu prometia desabar sobre o pedaço
da cidade.
À saída da escola, nos portões abertos
para a pequena multidão de alunos alegres com o final das aulas, misturavam-se
chuva, gritos, guarda-chuvas, mais gritos, buzinas, olhares, corre-corre.
Dali, de onde eu estava, escondido sob
a laje do pavimento de cima, podia vê-la mexendo na mala escolar, à procura de
alguma coisa. Um guarda-chuva, certamente.
Quando ela viu que ele a olhava,
desviou o verde de seus olhos e continuou, embaraçada, procurando o
guarda-chuva. Até encontrá-lo.
Ele foi aproximando dela. Parecia pouco
à vontade, mas decidido. Havia tempo ele a paquerava, de longe. Até achava ser
correspondido.
Ela, desajeitada, abriu o guarda-chuva
e preparou-se para enfrentar a água que agora caía bem mais forte.
-- Vou lá perto de sua casa, me dá uma
carona no guarda-chuva?
O preto dos olhos dele fazendo a
pergunta corajosa para os olhos verdes dela, quase vermelhos de vergonha.
-- Se você
quiser...
-- Claro que quero. Não trouxe
guarda-chuva, e se entrar nessa me molho todo.
-- Então vamos.
O guarda-chuva aberto acolheu os dois.
Próximos, emparelhados, roçando roupa com roupa, o coração dando pulos de
contentamento.
-- Que
chuva, né?
-- Inda
mais sem esperar!
Um passo mal dado, uma poça d'água
recém nascida, e os ombros se tocaram num primeiro encontro, quase ingênuo.
-- Desculpe.
-- Não foi
nada!
A chuva aumentou a intensidade. Caía
mais forte e escorria, danada e zombeteira, pelas abas do guarda-chuva.
-- Você
está se molhando.
-- Você
também.
-- Não faz mal. Me dê sua mala, deixe
que eu levo. Assim você fica livre para segurar o guarda-chuva.
-- Obrigado.
Na passagem da mala, dela para ele, as
mãos molhadas se tocaram levemente. O coração acelerou o ritmo e o rosto
avermelhou-se.
A chuva
ficou mais forte.
-- Estamos nos
molhando muito, vamos parar?
-- Não, chuva é gostoso. Faz bem. É
banho diferente. Lava tudo!
-- Por
minha culpa você está se molhando...
-- Que nada, de qualquer jeito, nessa chuva,
eu ficaria molhada... o guarda-chuva é pequeno...
-- É...
Instintivamente ele passou o material
para a mão direita e pôs seu braço esquerdo sobre o ombro dela.
-- Se a gente se aperta um pouquinho
debaixo do guarda-chuva, se molha menos.
-- Acho que
sim...
O braço puxou o corpo dela para junto
do corpo dele. O coração bateu mais depressa, o rosto queimava fogo, os corpos
molhados vibravam.
-- Já estou quase chegando. Minha casa
é aquela de muro vermelho...
-- Poxa,
foi tão rápido...
Ele estreitou ainda mais o braço
molhado. Não sentiu resistência. Ela soltava sua emoção, esparramada pelo
corpo, para o braço do parceiro.
Apenas o cabo do guarda-chuva separava
o desejo dos dois. Que engraçado: apenas um pedaço roliço de madeira limitando
a geografia quente dos corpos. Em cima, embaixo, por todos os lados, a chuva
forte derramava água farta, festejando o encontro juvenil.
-- Posso
falar com você outra vez?
-- Na
escola?
-- Também.
Ela tingiu de brilho novo o verde dos
olhos e respondeu com voz úmida, porém firme:
-- Pode...
-- Amanhã?
-- Pode...
Eles selaram o acordo com o estreitamento
maior das roupas molhadas.
-- Faz
tempo que eu queria falar com você.
Ela sorriu
e deixou escapar:
-- Eu
também.
A casa de
muro vermelho chegou perto deles.
-- Cheguei.
-- Que pena!
-- Você quer
ficar com meu guarda-chuva?
-- Não, já
estou todo molhado.
-- Leva...
-- Não...
-- ...
-- ...
O coração a mil, bateria louca de
escola de samba em dia de desfile, o corpo molhado, a boca seca, o rosto
pegando fogo. Estavam um em frente ao outro, debaixo da chuva forte.
De onde eu estava, protegido pela
chuva, eu vi o guarda-chuva inclinar- se levemente para trás, cobrindo minha
visão. Imaginei que esta manobra acidental me impediu de ver um beijo, tamanha
foi a pressa com que ela entrou em casa e tamanha a alegria com que ele
enfrentou a chuva, atirando para cima alguns cadernos, pulando poças e
esticando braços e pernas numa sinfonia encharcada.
Foi mais ou menos assim que eu vi esse
primeiro encontro dos dois. Foi mais ou menos assim que ele me contou.
Foi assim,
sem dúvida, que perdi minha primeira namorada.
Edson
Gabriel Garcia. Pedaços de paixão.
6. ed. São Paulo: Moderna, 1989.
Entendendo o texto:
01 – Dê o significado das palavras abaixo:
·
Acolheu: abrigou.
·
Vibraram: estremeciam.
·
Ingênuo: puro,
inocente.
·
Roliço: arredondado.
·
Instintivamente: sem
pensar.
·
Selaram: firmaram.
02 – Reescreva as frases,
substituindo as palavras destacadas por sinônimos:
a)
O guarda-chuva aberto acolheu os dois.
O guarda-chuva aberto abrigou os dois.
b)
Havia tempo que ele a paquerava, de longe.
Havia tempo que ele a namorava, a distância.
03 – Explique, a seu modo, o
sentido das expressões em destaque:
a)
“O coração a mil, bateria louca de escola de samba em dia de desfile, o
corpo molhado, a boca seca, o rosto
pegando fogo.”
A mil: acelerado como louco.
O rosto pegando fogo: o rosto vermelho, quente.
b)
“... a chuva forte derramava água farta.”
Água farta: muita água.
c)
“... apenas um pedaço roliço de madeira
limitando a geografia quente dos
corpos.”
A geografia quente dos corpos: o contorno dos corpos quentes pela
emoção.
04 – “Instintivamente ele
passou o material escolar para mão direita e pôs seu braço sobre o ombro
dela."
a) ( ) espontaneamente.
b) (X) delicadamente
c) ( ) ajeitadamente.
a) (X) fortemente.
b) ( )
debochada
c) ( )
brincalhona
06 – “A chuva forte
derramava água farta, festejando o encontro juvenil".
a) ( ) de idosos.
b) ( ) clube de futebol de adolescentes
c) (X) de adolescentes.
07 – Uma característica física da garota e do garoto.
Da garota: Os olhos verdes.
Do
garoto; Os olhos preto.
08 – A frase que comprova a
presença do narrador observando todo o encontro das personagens.
Foi mais ou menos
assim que eu vi esse primeiro encontro dos dois.
09 – De acordo com a
descrição do 2º parágrafo, podemos perceber que há:
a) (X) muito barulho, algazarra devido ao final das aulas.
b) ( ) desespero por causa da chuva.
c) ( ) alegria dos estudantes por ser um dia
especial.
10 – Dê o antônimo
(significado contrário) das palavras sublinhadas na frase abaixo:
“A chuva aumentou a intensidade. Caía mais forte e escorria, danada e zombeteira.”
A chuva diminuiu a intensidade. Caía mais
fraco e escorria, bondosa e brincalhona.
11 – Nesse conto "Chuva",
o narrador mostra que, à medida que a chuva aumenta, os dois jovens também se
aproximam. Para perceber isso melhor, numere as frases, ordenando-as na
sequência em que aparecem no texto, comprovando o aumento gradativo da
chuva e a aproximação do casal.
a) (4) "a
chuva aumentou de intensidade".
b) (1) "a
primeira meia dúzia de pingos de chuva caiu de manso"
c) (6) "em cima, embaixo, por todos os
lados, a chuva forte derramava água farta, festejando o encontro juvenil."
d) (5) "apenas
o cabo do guarda-chuva separava o desejo dos dois"
e) (2) "ele
foi se aproximando"
f) (3) "um passo mal dado, uma poça d'água
recém nascida, e os ombros se tocaram num primeiro encontro, quase
ingênuo."
12 – Assinale as opções onde ocorrem os fatos.
a) (X) saída da escola.
b) ( ) na sala da aula
c) (X) na rua indo para casa
dela
d) (X) no portão da casa dela
e) ( ) no shopping.
13 – No início do texto o
autor diz: "A primeira meia dúzia de pingos da chuva caiu de
manso". Com isso ele afirma:
a) ( ) que ele contou os pingos da chuva.
b)
(X) que a chuva ainda estava fraca.
c) ( ) que a chuva estava muito forte.
14 – Em que fase da vida das personagens acontecem os
fatos?
Na adolescência.
15 – Qual é o assunto do texto?
O primeiro encontro de dois jovens que se gostam.
16 – Você acha que já
existia alguma coisa entre o menino e a menina? Justifique.
Resposta pessoal
do aluno.
17 – O que ficamos sabendo sobre o narrador, no final da
história?
Que ele gostava da menina também.