terça-feira, 10 de setembro de 2019

A FÁBULA DO LEÃO E DOS BÊBADOS - LOURENÇO DIAFÉRIA - COM GABARITO

fábula do leão e dos bêbados
                           Lourenço Diaféria


Decrépito o leão, terror dos bosques, e saudoso de sua antiga fortaleza, espairecia um deles ao entardecer à sombra do parque onde o prenderam.
Assim levava a vida, ou assim esperava a morte.
Sua missão não era valorosa; incumbia-lhe, todos os dias, e de preferência aos sábados e domingos, fingir que era de fato um leão feroz e assustar os visitantes com pálidos rugidos.
Em troca, recebia três fartas refeições ao dia (fora o breakfast), água fresca, sombra, agradável companhia, e o título honorífico de rei das selvas, que na verdade era o que mais o comovia.
Mas não era de fato um leão de verdade; faltavam-lhe a certeza de sua intrepidez, o horizonte aberto, a liberdade, que não ia além do arame farpado entre as sebes disfarçado.
Tratava-se de um jogo previamente combinado: em troca do alimento e da tranquilidade, o mísero leão, rugindo apenas, aceitava digerir todas as afrontas.
Um belo dia aconteceu, porém, que três bebuns, enganando-se de boteco, erraram o atalho e foram cair, por puro acaso, nos domínios reservados ao leão domesticado. E tão bebuns estavam os três-loucados que nem se deram fé do risco que corriam: a moita onde dormiam desmaiados nada mais era que a juba da fera enjaulada.
Surpreendeu-se o leão com tamanha audácia, que não constava nas cláusulas contratuais que assinara com o empresário-empregador. E logo lhe veio à mente, num impulso atávico, o justo desejo de provar daquele banquete que se oferecia assim de mão-beijada. De fato, há muito o leão não saboreava um prato humano, como nos velhos tempos de antanho.
Já se lambia o bicho, com sua língua áspera e salivada.
Mas a civilização também cobra os seus tributos - e o leão, que conhecia algo de Direito, antes de se lançar ao ataque, resolveu reler o seu contrato, a ver se nas entrelinhas (sábio leão!) não constava algo que o prejudicasse: pois não queria o rei das selvas perder o emprego por justa causa. Pra tanto procurou um leão mais velho - e presumidamente mais experiente - e lhe propôs a delicada questão: se era lícito, naquela conjuntura, devorar os três bebuns incautos, que haviam invadido o parque e ali dormiam.

O velho leão examinou o contrato, verificou se não era falso, e concluiu que, pelo escrito, nada impedia legalmente que o leão mais novo os devorasse. Mas enquanto consultavam a lei, corria o tempo, de sorte que, por sorte, os três bebuns, passada a carraspana despertaram para a vida. Sobressaltados, antes que o leão, apoiado na lei, voltasse e os atacasse, trataram os três de fazer o que a situação impunha: mandar-se.
E foi desta maneira que o leão perdeu o acepipe, frustrando-se o ensejo de fartar-se com carne de primeira, tenra e fresquinha (ainda por cima regada a canjebrina). 
Amuado, foi novamente ao leão mais velho (e mais experiente) queixar-se de que o excesso de escrúpulo contratual o havia feito perder o nobre prato. 
Ao que o mais velho respondeu, com a sabedoria própria dos leões fabulosos:
- Queixas-te de barriga cheia, o que é um mal. Se de fato estivesses com fome, certamente primeiro os teria devorado, e só depois te lembrarias do contrato. Mas não te lastimes: quem faz o bem sempre o tem. Nenhum leão está livre neste mundo de, amanhã, por acaso, adormecer num parque e ser comido de surpresa por três bebuns esfomeados. A vida não está difícil só para os animais, rapaz.

Vocabulário:
decrépito: velho, caduco
espairecer: entreter-se
honorífico: honroso
intrepidez: coragem
sebe: arbusto
juba: crina
audácia: coragem
cláusula: artigo; preceito
atávico: reaparecimento de uma característica dos ascendentes
antanho: antigamente
incauto: imprudente
carraspana: bebedeira
acepipe: guloseima
ensejo: oportunidade
canjebrina: cachaça
escrúpulo: cuidado

  Trabalhando com o texto

1. O texto que você acabou de ler apresenta os elementos essenciais da narrativa: personagens, fato, tempo, lugar (espaço), narrador.

a)   Quem são as personagens?
O leão, o leão mais velho e três bêbados.

b)   O que acontece?
Um leão pensa em devorar três bêbados que, desavisados, vão parar em seu domínio. Mas acaba deixando-os escapar.

c)   Onde acontece a história?
Num parque.

d)   Quando ocorrem os fatos?
Tempo indeterminado (“Um belo dia...”)

e)   Quem narra a história: um narrador-personagem ou um narrador-observador? Justifique.
Narrador-observador. Narra em terceira pessoa, não participa dos acontecimentos narrados (“Surpreendeu-se o leão...”).

2. O que seria necessário para que o animal desta fábula fosse “um autêntico leão”?
    Ser feroz, estar em liberdade, entregue a seus próprios instintos.

3. Por que o leão não devorou os bêbados? Marque a alternativa correta.

(A) Porque as cláusulas contratuais o proibiam.

(B) Porque, enquanto ele e o leão mais velho consultavam o contrato, os três bêbados, conscientes do risco que corriam, fugiram.

(C) Porque, além de não querer perder o emprego, não estava faminto.



4. Explique o uso da expressão destacada na frase:

“E tão bebuns estavam os três-loucados que nem se deram fé do risco que corriam [...]”.
O autor brinca com a palavra tresloucados (loucos, desvairados): como eram três os bêbados incautos, usou “três-loucados”.

5. Inverossimilhante é tudo aquilo que não tem aparência de verdadeiro. Releia o último parágrafo e transcreva um trecho inverossímil.
“Nenhum leão está livre neste mundo de, amanhã, por acaso, adormecer num parque e ser comido de surpresa por três bebuns esfomeados”.

6. De onde provém a comicidade do texto? Escolha a alternativa correta.

(A) Do fato de um leão estar preso.

(B) Do fato de dois leões conversarem com humanos.

(C) Da presença de um animal renegar seus instintos em nome de um contrato.

(D) Do fato de um leão pedir ajuda a um amigo mais velho.


7. No texto alteram-se termos próprios de uma linguagem formal e termos característicos de uma linguagem bem coloquial (informal).

a) Procure alguns exemplos de uso mais formal da linguagem.
     Vocabulário cuidado e pouco comum (atávico, antanho, honorífico, conjuntura, acepipe...).

b) Procure exemplos de uso coloquial.
     Uso de gírias e expressões populares (bebuns, carraspana, boteco, mão-beijada, mandar-se).

8. Para reproduzir as falas das personagens, o autor utiliza dois tipos de discurso: o discurso direto e o discurso indireto.
Localize trechos em que aparecem exemplos desses dois tipos de discurso. Justifique sua resposta.

Discurso direto: “Ao que o mais velho respondeu(...):
- Queixas-te de barriga cheia (...). A vida não está difícil só para os animais, rapaz.” O autor reproduz as palavras da personagem. Aparece travessão introduzindo a fala.

Discurso indireto: “Amuado, foi novamente ao leão mais velho (...) queixar-se de que o excesso de escrúpulo contratual o havia feito perder o nobre prato”. O narrador conta com suas próprias palavras o que o leão teria dito ao amigo.


4 comentários: