A fábula do leão e
dos bêbados
Lourenço Diaféria
Decrépito o leão,
terror dos bosques, e saudoso de sua antiga fortaleza, espairecia um deles ao
entardecer à sombra do parque onde o prenderam.
Assim levava a
vida, ou assim esperava a morte.
Sua missão não era
valorosa; incumbia-lhe, todos os dias, e de preferência aos sábados e domingos,
fingir que era de fato um leão feroz e assustar os visitantes com pálidos
rugidos.
Em troca, recebia
três fartas refeições ao dia (fora o breakfast), água fresca,
sombra, agradável companhia, e o título honorífico de rei das selvas, que na
verdade era o que mais o comovia.
Mas não era de fato
um leão de verdade; faltavam-lhe a certeza de sua intrepidez, o horizonte
aberto, a liberdade, que não ia além do arame farpado entre as sebes disfarçado.
Tratava-se de um
jogo previamente combinado: em troca do alimento e da tranquilidade, o mísero
leão, rugindo apenas, aceitava digerir todas as afrontas.
Um belo dia
aconteceu, porém, que três bebuns, enganando-se de boteco, erraram o atalho e
foram cair, por puro acaso, nos domínios reservados ao leão domesticado. E tão
bebuns estavam os três-loucados que nem se deram fé do risco que corriam: a
moita onde dormiam desmaiados nada mais era que a juba da fera enjaulada.
Surpreendeu-se o
leão com tamanha audácia, que não constava nas cláusulas contratuais que
assinara com o empresário-empregador. E logo lhe veio à mente, num impulso
atávico, o justo desejo de provar daquele banquete que se oferecia assim de
mão-beijada. De fato, há muito o leão não saboreava um prato humano, como nos
velhos tempos de antanho.
Já se lambia o
bicho, com sua língua áspera e salivada.
Mas a civilização
também cobra os seus tributos - e o leão, que conhecia algo de Direito, antes
de se lançar ao ataque, resolveu reler o seu contrato, a ver se nas entrelinhas
(sábio leão!) não constava algo que o prejudicasse: pois não queria o rei das
selvas perder o emprego por justa causa. Pra tanto procurou um leão mais velho
- e presumidamente mais experiente - e lhe propôs a delicada questão: se era
lícito, naquela conjuntura, devorar os três bebuns incautos, que haviam
invadido o parque e ali dormiam.
O velho leão
examinou o contrato, verificou se não era falso, e concluiu que, pelo escrito,
nada impedia legalmente que o leão mais novo os devorasse. Mas enquanto
consultavam a lei, corria o tempo, de sorte que, por sorte, os três
bebuns, passada a carraspana despertaram para a vida. Sobressaltados, antes que
o leão, apoiado na lei, voltasse e os atacasse, trataram os três de fazer o que
a situação impunha: mandar-se.
E foi desta maneira
que o leão perdeu o acepipe, frustrando-se o ensejo de fartar-se com carne de
primeira, tenra e fresquinha (ainda por cima regada a canjebrina).
Amuado, foi
novamente ao leão mais velho (e mais experiente) queixar-se de que o excesso de
escrúpulo contratual o havia feito perder o nobre prato.
Ao que o mais velho
respondeu, com a sabedoria própria dos leões fabulosos:
- Queixas-te de
barriga cheia, o que é um mal. Se de fato estivesses com fome, certamente primeiro
os teria devorado, e só depois te lembrarias do contrato. Mas não te lastimes:
quem faz o bem sempre o tem. Nenhum leão está livre neste mundo de, amanhã, por
acaso, adormecer num parque e ser comido de surpresa por três bebuns
esfomeados. A vida não está difícil só para os animais, rapaz.
Vocabulário:
decrépito: velho, caduco
espairecer: entreter-se
honorífico: honroso
intrepidez: coragem
sebe: arbusto
juba: crina
audácia: coragem
cláusula: artigo; preceito
atávico: reaparecimento de
uma característica dos ascendentes
antanho: antigamente
incauto: imprudente
carraspana: bebedeira
acepipe: guloseima
ensejo: oportunidade
canjebrina: cachaça
escrúpulo: cuidado
1. O texto que você acabou de ler
apresenta os elementos essenciais da narrativa: personagens, fato, tempo, lugar
(espaço), narrador.
a) Quem são as
personagens?
O
leão, o leão mais velho e três bêbados.
b) O que acontece?
Um
leão pensa em devorar três bêbados que, desavisados, vão parar em seu domínio.
Mas acaba deixando-os escapar.
c) Onde acontece a
história?
Num
parque.
d) Quando ocorrem os
fatos?
Tempo
indeterminado (“Um belo dia...”)
e) Quem narra a
história: um narrador-personagem ou um narrador-observador? Justifique.
Narrador-observador.
Narra em terceira pessoa, não participa dos acontecimentos narrados
(“Surpreendeu-se o leão...”).
2. O que seria necessário para que o
animal desta fábula fosse “um autêntico leão”?
Ser feroz, estar em liberdade, entregue a
seus próprios instintos.
3. Por que o leão não devorou os bêbados?
Marque a alternativa correta.
(A) Porque as cláusulas contratuais o
proibiam.
(B) Porque, enquanto ele e o leão mais
velho consultavam o contrato, os três bêbados, conscientes do risco que
corriam, fugiram.
(C) Porque, além de não querer perder
o emprego, não estava faminto.
4. Explique o uso da expressão
destacada na frase:
“E tão bebuns estavam os
três-loucados que nem se deram fé do risco que corriam [...]”.
O
autor brinca com a palavra tresloucados (loucos, desvairados): como eram três
os bêbados incautos, usou “três-loucados”.
5. Inverossimilhante é tudo aquilo que não tem aparência de
verdadeiro. Releia o último parágrafo e transcreva um trecho inverossímil.
“Nenhum
leão está livre neste mundo de, amanhã, por acaso, adormecer num parque e ser
comido de surpresa por três bebuns esfomeados”.
6. De onde provém a comicidade do
texto? Escolha a alternativa correta.
(A) Do fato de um leão estar preso.
(B) Do fato de dois leões conversarem
com humanos.
(C) Da presença de um animal renegar seus
instintos em nome de um contrato.
(D) Do fato de um leão pedir ajuda a
um amigo mais velho.
7. No texto alteram-se termos
próprios de uma linguagem formal e termos característicos de uma linguagem bem
coloquial (informal).
a) Procure alguns exemplos de uso
mais formal da linguagem.
Vocabulário cuidado e pouco comum
(atávico, antanho, honorífico, conjuntura, acepipe...).
b) Procure exemplos de uso coloquial.
Uso de gírias e expressões populares (bebuns, carraspana, boteco,
mão-beijada, mandar-se).
8. Para reproduzir as falas das
personagens, o autor utiliza dois tipos de discurso: o discurso direto e o
discurso indireto.
Localize trechos em que aparecem
exemplos desses dois tipos de discurso. Justifique sua resposta.
Discurso direto: “Ao que o mais
velho respondeu(...):
- Queixas-te de barriga cheia (...). A vida não
está difícil só para os animais, rapaz.” O autor reproduz as palavras da
personagem. Aparece travessão introduzindo a fala.
Discurso indireto: “Amuado, foi
novamente ao leão mais velho (...) queixar-se de que o excesso de escrúpulo
contratual o havia feito perder o nobre prato”. O narrador conta com suas
próprias palavras o que o leão teria dito ao amigo.
Ótimo!
ResponderExcluirPerfeito 👏
ResponderExcluirAiii!!! Con ração meus alunos respondem as mesma pregunta 😒😡
ResponderExcluirProfessora essa foram as melhores reposta 😂😂
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