Crônica: Meu reino por um pente
Paulo
Mendes Campos
Filhos – diz o poeta – melhor não
tê-los.
Já o Professor Aníbal Machado me
confiou gravemente que a vida pode ter muito sofrimento, o mundo pode não ter
explicação alguma, mas, filhos, era melhor tê-los. A conclusão parece simples,
mas não era; Aníbal tinha ido às raízes da vida, e de lá arrancara a certeza
imperativa de que a procriação é uma verdade animal, uma coisa que não se
discute, fora de alcance do radar filosófico.
"Eu não sei por que, Paulo, mas
fazer filhos é o que há de mais importante."
Engraçado é que depois dessa conversa
fui descobrindo devagar a melancólica impostura daquelas palavras corrosivas do
final de Memórias Póstumas: "não transmiti a nenhuma criatura o legado de
nossa miséria". Filhos, melhor tê-los, aliás, o mesmo poeta corrige
antiteticamente o pessimismo daquele verso, quando pergunta: mas, se não os
temos, como sabê-lo? Resumindo: filhos, melhor não tê-los, mas é de todo indispensável
tê-los para sabê-lo; logo, melhor tê-los.
Você vai se rir de mim ao saber que
comecei a crônica desse jeito depois de procurar em vão meu bloco de papel.
Pois se ria a valer: o desaparecimento de certos objetos tem o dom de
conclamar, por um rápido edital, todas as brigadas neuróticas alojadas nas
províncias de meu corpo. Sobretudo instrumentos de trabalho. Vai-se-me por água
a baixo o comedimento quando não acho minha caneta, meu lápis-tinta, meu papel,
minha cola... Quando isso acontece (sempre) até taquicardia costumo ter; vem-me
a tentação de demitir-me do emprego, de ir para uma praia deserta, de voltar
para Minas Gerais, renunciar... Ridículo? Sim, ridículo, mas nada posso fazer.
Creio que seria capaz (talvez seja presunção) de aguentar com relativa
indiferença uma hecatombe que destruísse de vez todos os meus pertences.
O que não suporto é a repetição
indefinida do desaparecimento desses objetos sem nenhum valor, mas, sem os
quais, a gente não pode seguir adiante, tem de parar, tem de resolver primeiro.
Stanislaw Ponte Preta andou espalhando que eu usava ventilador para pentear os
cabelos. Calúnia. Sou o maior comprador de pentes do Estado da Guanabara.
Compro-os em quantidades industriais pelo menos duas vezes por mês, de todos os
tamanhos, de todas as cores. Sou quase amigo de infância do vendedor de pentes
que estaciona ali na esquina de Pedro Lessa e Rua México.
A princípio, pensou que eu estava
substabelecendo o comércio dele, comprando para vender mais caro, mas um dia eu
lhe contei minha tragédia familiar, e ele sorriu e confessou: "Lá em casa
é a mesma coisa". Chego em casa com os meus pentes e os distribuo a
mancheias. Dois para você, quatro para você - segundo o temperamento e a
distração de cada um. Aviso a todos que vou colocar um no armário do quarto, um
no banheiro, um em cada mesa de cabeceira, dois na minha gaveta. Terminada essa
operação ostensiva, fico malicioso e furtivo; secretamente, vou escondendo
outros pentes por todos os cantos e recantos, debaixo do colchão, no alto de um
móvel, atrás do exemplar dos Suspiros Poéticos e Saudades. Em seguida, reúno
solenemente toda a família, inclusive o Poppy, tiro do bolso um pente singular,
o mais ordinário encontrável na praça, e digo: "Este é o meu pente; este
ninguém usa; neste, sob pretexto algum, ninguém toca! Estão todos de acordo? Ou
algum dos presentes deseja fazer alguma objeção?" Estão todos de acordo.
A sinceridade do meu clã nesses
momentos é de tal qualidade que, por um dia ou dois, tenho a ilusão de que,
afinal, venci, de que descobri o approach certo para a família incerta. Mas,
meu São Luís de Camões, ó caminhos da vida, sempre errados! Os dias passam, o
vento passa a descabelar-nos, e os meus pentes, os meus pentes também passam.
Misteriosamente, inexplicavelmente, eles desaparecem, pouco a pouco, com certa
malícia, um a um, dois a dois, até chegar o momento dramático no qual, depois
de vasculhar todos os meus esconderijos, fico em cabelos no meio da sala e,
como Ricardo III em plena batalha, exclamo patético: "Um pente, um pente,
meu reino por um pente!".
Eu não fui – diz o primeiro; – eu não
fui – diz o segundo; – eu não fui – diz o terceiro. Poppy, cuja especialidade é
comer meias e sapatos, não diz nada, mas abana o rabo negativamente.
Não foi ninguém, foi Mr. Nobody, foi o
diabo, foi a minha sina.
A minha mansão tem apenas três quartos
e uma sala. Pois é inacreditável a quantidade de objetos que estão
desaparecidos aqui dentro. Um dia, quando me mudar, a gente vai achar tudo. E
sorrir um para o outro com uma nostalgia imprecisa, e dizer em silêncio que,
filhos, e pais, melhor tê-los.
Paulo Mendes Campos.
“Meu reino por um pente”. In: Balé do pato e outras crônicas. São Paulo, Ática,
1998. p. 25-8.
Fonte:
Livro- Português – Série – Novo Ensino Médio – Vol. único. Ed. Ática – 2000- p.
30-1.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto, qual o significado das
palavras abaixo:
·
Conclamar: Chamar.
·
Edital: Aviso oficial que se coloca em lugares públicos ou se anuncia
na imprensa.
·
Estado
da Guanabara: Antigo nome do
estado do Rio de Janeiro.
·
Singular: Notável, único; particular.
·
Mr.
Nobody: Em inglês, “Sr. Ninguém”.
02 – Por que o cronista
introduz a discussão sobre ter ou não ter filhos?
Porque seus
filhos somem com os seus objetos pessoais.
03 – O que o cronista
pretende dizer quando usa a expressão “vai-se-me por água abaixo o
comedimento”?
Quer dizer que
fica nervoso, irritadiço, destemperado.
04 – Você já ouviu as
expressões “a mancheias” e “ficar em cabelos”? Pesquise num dicionário seus
significados.
A mancheias: Em
grande quantidade.
Ficar em cabelos: Ficar despenteado,
descabelado; ou aturdido, perdido no meio da sala.
05 – Na frase: “A minha
mansão tem apenas três quartos e uma sala”, a palavra mansão está empregada no
seu sentido real ou subjetivo? Por quê?
Subjetivo. Usa-se
“mansão” em referência à residência de grandes dimensões e luxo requintado.
06 – O que você pensa a
respeito da responsabilidade de ser pai/mãe? Por que se pode afirmar que não é
fácil educar os filhos? Existe um momento apropriado para a
paternidade/maternidade?
Resposta pessoal
do aluno.
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