domingo, 29 de dezembro de 2024

CONTO: A DANÇA DOS OSSOS CAP. III - (FRAGMENTO) - BERNARDO GUIMARÃES - COM GABARITO

 Conto: A dança dos ossos cap. III – Fragmento

            Bernardo Guimarães

        [...]

        -- Eu te conto um caso que me aconteceu.

        Eu ia viajando sozinho — por onde não importa — de noite, por um caminho estreito, em cerradão fechado, e vejo ir, andando a alguma distância diante de mim, qualquer coisa, que na escuridão não pude distinguir. Aperto um pouco o passo para reconhecer o que era, e vi clara e perfeitamente dois pretos carregando um defunto dentro de uma rede.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjN-XFLdVaphCl9E5oBILewR3HJAAmlhKDcBpjxhfjfjGMSuGQp5CeWIOtgy_YUBA2b4PZwlFxVI77tLNxy2JkV3wbfJSORuRQm0NkToJ6WlNVeSvdHKBdh93ycJ8u2yBBVc-GQsBclsNVHPdQ17MQHxfGM2JFBUYhGDYZOcxYUcJtTqwOllz0n_nQwaPM/s320/DAN%C3%87A.jpg


        Bem poderia ser também qualquer criatura viva, que estivesse doente ou mesmo em perfeita saúde; mas, nessas ocasiões, a imaginação, não sei por quê, não nos representa senão defuntos. Uma aparição daquelas, em lugar tão ermo e longe de povoação, não deixou de me causar terror.

        Contudo o caso não era extraordinário; carregar um cadáver em rede, para ir sepultá-lo em algum cemitério vizinho, é coisa que se vê muito nesses sertões, ainda que àquelas horas o negócio não deixasse de tornar bastante suspeito.

        Piquei o cavalo para passar adiante daquela sinistra visão que me estava incomodando o espirito, mas os condutores da rede também apressaram o passo, e se conservavam sempre na mesma distância.

        Pus o cavalo a trote; os pretos começaram também a correr com a rede. O negócio ia-se tornando mais feio. Retardei o passo para deixá-los adiantarem-se: também foram indo mais devagar. Parei; também pararam. De novo marchei para eles; também se puseram a caminho.

        Assim andei por mais de meia hora, cada vez mais aterrado, tendo sempre diante dos olhos aquela sinistra aparição que parecia apostada em não me querer deixar, até que, exasperado, gritei-lhes que me deixassem passar ou ficar atrás, que eu não estava disposto a fazer-lhes companhia. Nada de resposta!... o meu terror subiu de ponto, e confesso que estive por um nada a dar de rédea para trás a bom fugir.

        Mas negócios urgentes me chamavam para diante: revesti-me de um pouco de coragem que ainda me restava, cravei as esporas no cavalo e investi para o sinistro vulto a todo galope. Em poucos instantes o alcancei de perto e vi... adivinhem o que era?... nem que deem volta ao miolo um ano inteiro, não são capazes de atinar com o que era. Pois era uma vaca!...

        — Uma vaca!... como!...

        — Sim, senhores, uma vaca malhada, que tinha a barriga toda branca — era a rede, — e os quartos traseiros e dianteiros inteiramente pretos; era os dois negros que a carregavam. Pilhada por mim naquela caminho estreito, sem poder desviar nem para uma banda nem para outra, porque o mato era um cerradão tapado o pobre animal ia fugindo diante de mim, se eu parava, também parava, porque não tinha necessidade de viajar; se eu apertava o passo lá ia ela também para diante, fugindo de mim. Entretanto se eu não fosse reconhecer de perto o que era aquilo, ainda hoje havia de jurar que tinha visto naquela noite dois pretos carregando um defunto em uma rede, tão completa era a ilusão. E depois se quisesse indagar mais do negócio, como era natural, sabendo que nenhum cadáver se tinha enterrado em toda aquela redondeza, havia de ficar acreditando de duas uma: ou que aquilo era coisa do outro mundo, ou, o que era mais natural, que algum assassinato horrível e misterioso tinha sido cometido por aquelas criaturas. [...]

GUIMARÃESS, Bernardo. A dança dos ossos. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua000038.pdf. Acesso em: 31 jan. 2022.

Fonte: Língua Portuguesa. Linguagens – Séries finais, caderno 1. 8º ano – Larissa G. Paris & Maria C. Pina – 1ª ed. 2ª impressão – FGV – MAXI – São Paulo, 2023. p. 43-44.

Entendendo o conto:

01 – Qual a principal sensação do narrador ao encontrar a "coisa" no caminho?

a) Curiosidade.

b) Terror.

c) Alegria.

d) Indiferença.

02 – O que o narrador imagina que a "coisa" seja inicialmente?

a) Dois viajantes.

b) Dois animais.

c) Dois ladrões.

d) Dois homens carregando um defunto.

03 – Por que a imaginação do narrador o leva a pensar em um defunto?

a) Por causa do local ermo e da hora da noite.

b) Porque ele já havia tido experiências sobrenaturais antes.

c) Porque ele tinha medo de ser assaltado.

d) Porque ele era uma pessoa muito supersticiosa.

04 – Qual a reação dos "carregadores" da rede quando o narrador tenta ultrapassá-los?

a) Aceleram o passo.

b) Param e o atacam.

c) Desaparecem misteriosamente.

d) Mantêm a mesma velocidade.

05 – O que o narrador descobre que a "coisa" realmente era?

a) Uma carroça.

b) Uma vaca.

c) Um grupo de pessoas.

d) Um monstro.

06 – Qual a lição que o narrador aprende com essa experiência?

a) Que não se deve viajar sozinho à noite.

b) Que a imaginação pode nos pregar peças.

c) Que é importante ter fé em Deus.

d) Que os animais são perigosos.

07 – Qual o gênero literário ao qual pertence o conto "A Dança dos Ossos"?

a) Romance histórico.

b) Crônica.

c) Conto de terror.

d) Fábula.

 

POEMA: PROFISSÃO DE FÉ - (FRAGMENTO) - VICTOR HUGO - COM GABARITO

 Poema: Profissão de Fé – Fragmento

Le poète est ciseleur,

Le ciseleur est poète.

(Victor Hugo)

[...]

Invejo o ourives quando escrevo:

Imito o amor

Com que ele, em ouro, o alto relevo

Faz de uma flor. Imito-o.




[...]

Por isso, corre, por servir-me,

Sobre o papel

A pena, como em prata firme

Corre o cinzel.

Corre; desenha, enfeita a imagem,

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7Yc5K9ocoz3_vPVhmmLcCCGCcM8UFlpOxSmD5BRwqhgFtBwl0QoysMQCNoscjXwv9gsR7DfPDgBCV7PwnZGqThyPF77depKI4LFO-K_okLp18QBvnQSrMMPFBUs0t2Fu__SzrG_ydte521eCSwWkdl5WcmD-5rVwqpiVYWM5CfnXZfBIYGlOJL6HVl1M/s320/PENA.jpg


A ideia veste:

Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem

Azul-celeste.

Torce, aprimora, alteia, lima

A frase; e, enfim,

No verso de ouro engasta a rima,

Como um rubim.

Quero que a estrofe cristalina,

Dobrada ao jeito

Do ourives, saia da oficina

Sem um defeito:

[...]

E horas sem conto passo, mudo,

O olhar atento,

A trabalhar, longe de tudo

O pensamento.

[...]

BILAC, Olavo. In: BUENO, Alexei (org.). Olavo Bilac: obra reunida. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p. 89-90. Fragmento.

Fonte: Português – Literatura, Gramática e Produção de texto – Leila Lauar Sarmento & Douglas Tufano – vol. 2 – Moderna – 1ª edição – São Paulo, 2010, p. 194-195.

Entendendo o poema:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Alto-relevo: figura ou ornato que se esculpe sobre uma superfície e da qual se destaca em acentuado relevo.

·        Cinge-lhe: envolve-lhe.

·        Alteia: eleva.

·        Engasta: escrava, encaixa.

·        Rubim: rubi, certo tipo de pedra preciosa de cor vermelha.

02 – Qual a principal comparação estabelecida pelo poeta neste fragmento?

      A principal comparação estabelecida é entre o trabalho do poeta e o trabalho do ourives. O poeta se vê como um artesão das palavras, assim como o ourives é um artesão dos metais preciosos. Ambos buscam a perfeição em suas criações, utilizando suas ferramentas (pena e cinzel) para moldar e transformar a matéria-prima (palavras e metais) em obras de arte.

03 – Que qualidades do trabalho do ourives o poeta busca imitar em sua poesia?

      O poeta busca imitar a precisão, o cuidado com os detalhes e o amor à perfeição que o ourives demonstra em seu trabalho. Ele deseja que seus versos sejam tão bem trabalhados e preciosos quanto as joias criadas pelo ourives. A comparação com o ouro e as pedras preciosas reforça essa ideia de valor e beleza.

04 – Qual o significado da expressão "verso de ouro engasta a rima, como um rubim"?

      Essa expressão significa que a rima, elemento fundamental da poesia, é comparada a um rubim engastado em um verso de ouro. O rubim, uma pedra preciosa de grande valor, simboliza a perfeição e a beleza da rima, enquanto o verso de ouro representa a estrutura e a forma do poema. A imagem evocada é a de uma joia, onde a rima é o elemento central que dá valor e brilho ao verso.

05 – Qual a importância do trabalho árduo e paciente para o poeta?

      O trabalho árduo e paciente é fundamental para o poeta, assim como para o ourives. O poeta passa horas trabalhando em seus versos, buscando a perfeição formal e a expressão exata de suas ideias. A imagem do poeta "trabalhando, longe de tudo / O pensamento" evidencia a concentração e o esforço dedicados à criação poética.

06 – Qual a visão do poeta sobre a criação artística?

      A visão do poeta sobre a criação artística é a de um processo meticuloso e artesanal. O poeta se vê como um artesão que molda a linguagem para criar obras de arte. A comparação com o ourives reforça a ideia de que a poesia é uma atividade que exige habilidade, técnica e dedicação. A criação poética é vista como um ato de transformação, em que o poeta, a partir de ideias e sentimentos, cria algo novo e belo.

 

POEMA: INANIA VERBA - OLAVO BILAC - COM GABARITO

 Poema: Inania verba

             Olavo Bilac

Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,
O que a boca não diz, o que a mão não escreve?
– Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,
Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava…

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhWVvBDz1lTyhRwnZbDZNNu70C5elZcKZSUzYpQvgMalfG1hBjhl6Pe_EzviHgEBQ50d1WhzG_B6SGJJI8JXB0AskF5hNsMvJSLdgPxqY_AIyWwg3mJQFMatRKR3J8QlYMN5xRVCmukLjjTDKODV9KGlcW7dZqJmzaZnrmUBaVCNbXy_psFdQ-JggirPck/s1600/OLAVO.jpg


O pensamento ferve, e é um turbilhão de lava:
A forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve…
E a Palavra pesada abafa a Ideia leve,
Que, perfume e clarão, refulgia e voava.

Quem o molde achará para a expressão de tudo?
Ai! quem há de dizer as ânsias infinitas
Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta?

E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?
E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?

BILAC, Olavo. In: BUENO, Alexei (Org.). Olavo Bilac: obra reunida. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p. 166.

Fonte: Português – Literatura, Gramática e Produção de texto – Leila Lauar Sarmento & Douglas Tufano – vol. 2 – Moderna – 1ª edição – São Paulo, 2010, p. 198.

Entendendo o poema:

01 – De acordo com o texto, o que significa a palavra refulgia?

      Brilhava intensamente.

02 – Qual a principal temática abordada no poema "Inania verba"?

      A principal temática do poema é a limitação da linguagem para expressar a complexidade da experiência humana. Bilac explora a frustração do indivíduo diante da impossibilidade de comunicar integralmente seus sentimentos e pensamentos mais profundos.

03 – Que sentimentos o poeta expressa através da metáfora da "cruz"?

      A metáfora da "cruz" evoca a ideia de sofrimento, martírio e a sensação de estar preso a algo que causa dor. O poeta se compara a alguém pregado à cruz, expressando a angústia de não poder se libertar de seus sentimentos e pensamentos conflituosos.

04 – Qual a relação entre a "forma" e a "ideia" no poema?

      A "forma" representa a linguagem, as palavras, que são vistas como um "sepulcro de neve", ou seja, algo frio e rígido que aprisiona a "ideia", que é comparada a um "perfume e clarão". A ideia é a essência, o sentimento puro, enquanto a forma é a expressão externa, muitas vezes insuficiente para capturar a totalidade da experiência.

05 – O que significa a expressão "as palavras de fé que nunca foram ditas"?

      Essa expressão representa as crenças e convicções mais profundas do indivíduo, que muitas vezes permanecem inexpressivas, aprisionadas no interior. É a impossibilidade de encontrar as palavras adequadas para expressar a fé e a esperança.

06 – Qual a sensação de impotência transmitida pelo poema?

      O poema transmite uma profunda sensação de impotência diante da linguagem. O poeta se sente incapaz de encontrar as palavras certas para dar forma aos seus sentimentos e pensamentos mais complexos. A repetição de "quem há de dizer" reforça essa ideia de incapacidade de encontrar a expressão adequada.

 

 

 

POEMA: NESTE SONETO - PAULO MENDES CAMPOS - COM GABARITO

 Poema: NESTE SONETO

             Paulo Mendes Campos

Neste soneto, meu amor, eu digo,
Um pouco à moda de Tomás Gonzaga,
Que muita coisa bela o verso indaga
Mas poucos belos versos eu consigo.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhJ3w_PtJXS0r8_7jDppf9nCXXWHJWIa-U9xS8zJvFVkbYSzMUfmpAO4bsEXp_wLbMyBgvATZlvTPmpgH-jZNLADPbO7fvvdEP8GpiFaxGUYQyPS0Xu4hgBAdFVTpQMFeirDcO3GHT0TL5BAJa-NWnYMHw6GXlIv98CuM4ZI6Yhe5ig_8hi1hbUZN3Wm18/s320/Paulo-Mendes-Campos1964_Foto-Alecio-de-Andrade_Acervo-IMS_AA_6470_1920px.jpg


Igual à fonte escassa no deserto,
Minha emoção é muita, a forma, pouca.
Se o verso errado sempre vem-me à boca,
Só no meu peito vive o verso certo.

Ouço uma voz soprar à frase dura
Umas palavras brandas, entretanto,
Não sei caber as falas de meu canto

Dentro da forma fácil e segura.
E louvo aqui aqueles grandes mestres
Das emoções do céu e das terrestres.

Paulo Mendes Campos. Testamento do Brasil e O domingo azul do mar. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966. p. 27.

Fonte: Português – Literatura, Gramática e Produção de texto – Leila Lauar Sarmento & Douglas Tufano – vol. 2 – Moderna – 1ª edição – São Paulo, 2010, p. 199.

Entendendo o poema:

01 – Qual a principal dificuldade que o poeta expressa em relação à sua poesia?

      A principal dificuldade do poeta reside na tentativa de conciliar a intensidade de suas emoções com a forma rígida e tradicional do soneto. Ele sente que suas emoções são vastas e profundas, mas não encontra as palavras adequadas para expressá-las de forma concisa e elegante dentro dos parâmetros do soneto.

02 – Que comparação o poeta faz entre sua poesia e uma fonte?

       O poeta compara sua poesia a uma fonte escassa no deserto. Assim como a água da fonte é preciosa e limitada, suas emoções são intensas, mas a capacidade de expressá-las de forma poética é restrita. A imagem da fonte ressalta a dificuldade de encontrar as palavras certas para dar vazão aos sentimentos.

03 – Qual a relação entre a forma e o conteúdo na poesia de Paulo Mendes Campos?

      Para o poeta, a forma poética, especialmente a forma rígida do soneto, limita a expressão livre e espontânea de suas emoções. Ele busca uma forma mais flexível e natural para dar vazão à sua sensibilidade, mas reconhece a importância dos grandes mestres da poesia que dominaram as formas tradicionais.

04 – O que o poeta significa quando diz que "só no meu peito vive o verso certo"?

      Essa frase revela a existência de uma dicotomia entre o verso idealizado e o verso realizado. O poeta sente que a poesia perfeita reside em sua mente, mas ao tentar expressá-la no papel, o resultado final não corresponde à sua visão inicial.

05 – Qual a atitude do poeta em relação aos grandes mestres da poesia?

      O poeta demonstra grande admiração pelos grandes mestres da poesia, que dominaram as formas tradicionais e conseguiram expressar emoções complexas de forma elegante e concisa. Ao mesmo tempo, ele reconhece a dificuldade de seguir seus passos e a necessidade de encontrar uma voz própria.

 

 

sábado, 28 de dezembro de 2024

POEMA: OUVIR ESTRELAS - OLAVO BILAC - COM GABARITO

 Poema: Ouvir Estrelas

             Olavo Bilac

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo,
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgPOJ9WOlcwhF4s7jVPjOi_CBtqM_HRCy6TNERj_PkvEV09_FFo40wJa8NMpMe4_wkiZvxk6hevlntQfG9aYUw9MLIadJFD9UqsJ5vwbPiNNn9tU9gOJScl6AzKPZyRHSNDhLd6SaAXr_okN0inntG1aBekoCOAxDEsECXiqK8WyirvJEC7NYEH27EchOc/s320/ESTRELA.jpg



E conversamos toda a noite,
enquanto a Via-Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.”

BILAC, Olavo. Via Láctea. In: BUENO, Alexei (Org.). Olavo Bilac: obra reunida. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p. 117.

Fonte: Português – Literatura, Gramática e Produção de texto – Leila Lauar Sarmento & Douglas Tufano – vol. 2 – Moderna – 1ª edição – São Paulo, 2010, p. 199.

Entendendo o poema:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Pálio: manto, capa.

·        Inda: ainda.

02 – Qual a principal ideia transmitida pelo poema "Ouvir Estrelas"?

      O poema transmite a ideia de que a poesia é uma forma de comunicação profunda e íntima com o universo. O ato de "ouvir estrelas" é uma metáfora para a capacidade humana de se conectar com a natureza e com o infinito, transcendendo os limites da realidade material.

03 – Qual a reação das pessoas ao saber que o poeta "ouve estrelas"?

      As pessoas reagem com incredulidade e até mesmo com zombaria ao saberem que o poeta "ouve estrelas". Elas o consideram louco ou desprovido de senso por dedicar tempo a uma atividade tão aparentemente absurda.

04 – Qual a importância da noite e da solidão para a experiência poética do eu lírico?

      A noite e a solidão são elementos essenciais para a experiência poética do eu lírico. É durante a noite, em contato com a vastidão do céu estrelado, que o poeta se sente mais próximo da natureza e mais aberto à inspiração. A solidão o permite se conectar com seus próprios pensamentos e sentimentos, aprofundando sua relação com o universo.

05 – Qual o significado da frase "Amai para entendê-las"?

      A frase "Amai para entendê-las" significa que o amor é a chave para compreender a beleza e a profundidade do universo. Ao amar, o ser humano se torna mais sensível e receptivo às mensagens que vêm do cosmos. O amor permite que o indivíduo transcenda os limites da razão e se conecte com a espiritualidade.

06 – Qual a relação entre a poesia e a ciência no poema?

      O poema "Ouvir Estrelas" coloca em diálogo a poesia e a ciência. Por um lado, a poesia permite ao indivíduo transcender os limites da razão e se conectar com a beleza e o mistério do universo. Por outro lado, a ciência busca compreender os fenômenos naturais através da observação e da experimentação. O poema sugere que a poesia e a ciência não são necessariamente opostas, mas complementares, pois ambas buscam desvendar os mistérios do mundo.

 

ROMANCE: O MISSIONÁRIO CAP. XII - FRAGMENTO - INGLÊS DE SOUSA - COM GABARITO

 Romance: O missionário Cap. XII – Fragmento

                 Inglês de Sousa

        [...]

        Entregara-se, corpo e alma, à sedução da linda rapariga que lhe ocupara o coração. A sua natureza ardente e apaixonada, extremamente sensual, mal contida até então pela disciplina do Seminário e pelo ascetismo que lhe dera a crença na sua predestinação, quisera saciar-se do gozo por muito tempo desejado, e sempre impedido. Não seria filho de Pedro Ribeiro de Morais, o devasso fazendeiro do Igarapé-mirim, se o seu cérebro não fosse dominado por instintos egoísticos, que a privação de prazeres açulava e que uma educação superficial não soubera subjugar. E como os senhores padres do Seminário haviam pretendido destruir ou, ao menos, regular e conter a ação determinante da hereditariedade psicofisiológica sobre o cérebro do seminarista? Dando-lhe uma grande cultura de espírito, mas sob um ponto de vista acanhado e restrito, que lhe excitara o instinto da própria conservação, o interesse individual, pondo-lhe diante dos olhos, como supremo bem, a salvação da alma, e como meio único, o cuidado dessa mesma salvação. Que acontecera? 

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjzXHKXULO_rheKj8bir5dD-05JzihyvreTFv83jIthoDp52lAoMotaMQngh0qN36HR3Lv6Sh_osDRh6GcYYqU0edGImwYr7gXOVszBH0Oa_wPUMgjnH6KQmv01piDP6SnGItiLLR-hxH3WdK9WNRuhLYAHXiZERvFH8jYTneT-rAK0140M5zvHMOJ6nWk/s320/MISSIONARIO.jpg


No momento dado, impotente o freio moral para conter a. rebelião dos apetites, o instinto mais forte, o menos nobre, assenhoreara-se daquele temperamento de matuto, disfarçado em padre de S. Sulpício, Em outras circunstâncias, colocado em meio diverso, talvez que padre Antônio de Morais viesse a ser um santo, no sentido puramente católico da palavra, talvez que viesse a realizar a aspiração da sua mocidade, deslumbrando o mundo com o fulgor das suas virtudes ascéticas e dos seus sacrifícios inauditos. Mas nos sertões do Amazonas, numa sociedade quase rudimentar, sem moral, sem educação... vivendo no meio da mais completa liberdade de costumes, sem a coação da opinião pública, sem a disciplina duma autoridade espiritual fortemente constituída... sem estímulos e sem apoio... devia cair na regra geral dos seus colegas de sacerdócio, sob a influência enervante e corruptora do isolamento, e entregara-se ao vício e à depravação, perdendo o senso moral e rebaixando-se ao nível dos indivíduos que fora chamado a dirigir.

        Esquecera o seu caráter sacerdotal, a sua missão e a reputação do seu nome, para mergulhar-se nas ardentes sensualidades dum amor físico, porque a formosa Clarinha não podia oferecer-lhe outros atrativos além dos seus frescos lábios vermelhos, tentação demoníaca, e das suas formas esculturais, assombro dos sertões de Guaranatuba.

        Dera-se tão bem com aquele modo de viver no sítio da Sapucaia, que o futuro não o preocupava um só instante naqueles rápidos três meses. Passaria naturalmente o resto da existência ao lado da neta gentil de João Pimenta, gozando os inesgotáveis deleites duma vida livre de convenções sociais, em plena natureza, embalado pelo canto mavioso dos rouxinóis e acariciado pelo doce calor dos beijos da sertaneja.

        Se alguma vez, no meio daquele torpor delicioso, um sobressalto o apanhava de repente, acordando a ideia do inferno, que lhe atravessava o cérebro como um relâmpago, logo recaia na apática tranquilidade que era a sua situação normal, adiando - com o movimento impaciente de quem enxota um inseto importuno - o arrependimento que lhe devia remir as culpas, e que reservava para ocasião própria, como o mergulhador que se aventura às profundezas do abismo, confiando na corda que o há de chamar à tona da água na ocasião do perigo.

        [...]

SOUSA, Inglês de. O missionário. São Paulo: Ática, 1991. Fragmento.

Fonte: Português – Literatura, Gramática e Produção de texto – Leila Lauar Sarmento & Douglas Tufano – vol. 2 – Moderna – 1ª edição – São Paulo, 2010, p. 136-137.

Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Ascetismo: doutrina que considera a disciplina e o autocontrole indispensáveis ao desenvolvimento espiritual.

·        Açulava: provocava, incitava.

·        Subjugar: dominar.

·        Padre de São Sulpício: padre pertencente à Sociedade de São Sulpício, ordem religiosa fundada na França em 1645.

·        Fulgor: resplendor, luminosidade.

·        Inauditos: de que nunca se ouviu falar, fora do comum, extraordinários.

·        Coação: pressão, constrangimento.

·        Apática: sem ação, indiferente.

·        Remir: expiar, reparar.

02 – Qual a principal motivação para a queda moral do Padre Antônio de Morais?

      A principal motivação é a natureza ardente e apaixonada do padre, que, reprimida pela disciplina do seminário, encontra na jovem Clarinha uma oportunidade de saciar seus desejos. Além disso, a falta de uma sociedade com valores sólidos e a influência do meio em que vive contribuem para sua queda.

03 – Que papel a hereditariedade e a educação desempenham na formação do caráter do padre?

      A hereditariedade é vista como um fator determinante, com a influência do pai devasso e da educação superficial do seminário moldando o caráter do padre. A educação, embora extensa, é considerada restrita e incapaz de controlar os instintos mais básicos.

04 – Qual a crítica social presente nesse fragmento?

      O fragmento critica a hipocrisia da sociedade, a falta de valores morais e a influência do meio sobre o indivíduo. A figura do padre, que deveria ser um exemplo de virtude, acaba sucumbindo aos prazeres carnais, revelando a fragilidade da moralidade humana.

05 – Como a natureza influencia o comportamento do padre?

      A natureza exuberante e selvagem dos sertões do Amazonas, com sua beleza e sensualidade, exerce um fascínio sobre o padre, contribuindo para sua perda de valores e sua entrega aos prazeres carnais.

06 – Qual a visão do autor sobre o livre-arbítrio e a responsabilidade individual?

      O autor parece apresentar uma visão complexa sobre o livre-arbítrio. Por um lado, ele mostra como a hereditariedade e o meio influenciam as escolhas do indivíduo. Por outro lado, ele sugere que o padre tem a capacidade de resistir às tentações e escolher um caminho diferente.

07 – Que papel a religião desempenha na vida do padre?

      A religião, inicialmente um guia moral, torna-se um fardo para o padre, que se sente conflito entre seus desejos e os preceitos religiosos. A culpa e o arrependimento demonstram a força da fé, mesmo que momentaneamente abalada.

08 – Qual o significado da imagem do mergulhador no final do fragmento?

      A imagem do mergulhador simboliza a decisão do padre de adiar o arrependimento e mergulhar nos prazeres carnais. A corda que o puxará de volta representa a esperança de redenção, mas também a consciência de que um dia terá que enfrentar as consequências de seus atos.

 

 

CONTO: O CORAÇÃO DELATOR - EDGAR ALLAN POE - COM GABARITO

 Conto: O Coração Delator

            Edgar Allan Poe

        — Verdade! – sou muito nervoso – terrivelmente nervoso – sempre fui e serei. Mas, por que dirão vocês que sou louco? A doença aguçara-me os sentidos – não os destruíra nem os anestesiara. Acima de tudo minha audição tornara-se agudíssima. Ouvia todas as coisas, as do céu e as da terra. Ouvia muitas coisas do inferno. Como então podem dizer que sou louco? Escutem-me! E observem com quanta lucidez, com quanta serenidade lhes conto toda a história.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjyPPGD3jEFQwTaQG2pQ-X8Dw5t0qi6kbdiuQhUFstSYw9AnYoIxrFy_GigMWIz245GNxXPVtFoLNowcnjm60yDIh6CBLu_ym0OB2BIQJurRCKElHTrZMJ4TQ7yHCHiF__2Fye32K9CG_mWJSgVethGHiZQoJzJ9mLZJGIzLUB3jPqPeJSA1NrF9iyQQlM/s320/coracao-delator-e-outros-contos-edgar-allan-poe-1050536.jpg


        É impossível dizer como a ideia me surgiu na mente, mas uma vez concebida perseguia-me noite e dia. Objetivo, não havia nenhum. Nem paixão havia. Eu até gostava do velho. Nunca me fizera mal algum. Jamais me maltratara. E eu também não lhe cobiçava o ouro. Creio que foi por causa daquele seu olho! Sim, foi por isso! Um de seus olhos assemelhava-se ao de um abutre – um olho de cor azul pálido encoberto por uma película. Sempre que o velho o pousava em mim, gelava-me o sangue, e, pouco a pouco, muito gradualmente, acabei decidindo tirar-lhe a vida e assim livrar-me daquele olhar de uma vez por todas.

        Agora a questão é a seguinte: vocês me imaginam louco. Os loucos nada sabem. Vocês deviam ter-me visto a mim. Deveriam ter visto com quanta sabedoria procedi – com que cautela e antevisão – com que dissimulação pus-me ao trabalho!

        Nunca fora tão bondoso com o velho como na semana antes de matá-lo. E todas os dias, por volta da meia-noite, girava o trinco da porta de seu quarto e a abria-a – ah, tão delicadamente! E, então, quando já a afastara por uns dois palmos, ia aos poucos enfiando no quarto uma lanterna escura, fechada, totalmente fechada de modo a não deixar escapar a mínima luz e só depois é que enfiava a minha cabeça. Ah! Vocês teriam rido muito se tivessem visto a astúcia com que eu realizava esse gesto. Movia minha cabeça bem devagar – muito devagarinho a fim de não perturbar o sono do velho. Levava uma hora inteira até fazer minha cabeça atravessar completamente a abertura e colocar-me a uma distância suficiente para poder vê-lo deitado no leito. Ah! Um louco teria agido assim tão sabiamente? E, depois, quando minha cabeça já estava completamente dentro do quarto, girava o obstruidor da lanterna com o máximo cuidado – com todo o cuidado! Muitíssimo cuidado (pois poderia fazer barulho) – girava-o o mínimo possível de forma que somente um único e finíssimo raio de luz fosse pousar sobre aquele olho de abutre. E fiz isso durante sete longas noites – todas as noites exatamente à meia-noite – mas descobria que o olho estava sempre fechado, era impossível realizar minha tarefa, já que não era o velho que me exasperava, e sim o seu Olho Maligno. E todas as manhãs, ao raiar do dia, estava no aposento corajosamente e falava-lhe sem nenhum temor, chamando-o pelo nome em tom animado e perguntando-lhe como passara a noite. Portanto, como vocês mesmos bem podem ver, ele teria de ser um homem muitíssimo sagaz para suspeitar que todas as noites, exatamente à meia-noite, eu punha-me a vigiá-lo enquanto dormia.

        Na oitava noite, fui ainda mais cauteloso ao abrir a porta. Os ponteiros dos minutos de um relógio podiam se mover mais rápidos que minhas mãos. Até essa noite, nunca havia sentido o alcance de meus poderes, da minha astúcia. Mal podia conter a sensação de triunfo. Pensar que lá estava eu abrindo a porta pouco a pouco, sem que ele sequer sonhasse com os meus atos ou com os meus pensamentos secretos. Cheguei mesma a rir-me de tal ideia... e talvez ele tivesse me ouvido pois mexeu-se na cama repentinamente, como se acordasse assustado. Vocês devem estar pensando então que eu recuei – mas não! O aposento estava negro como breu (as pesadas janelas estavam bem trancadas por causa do medo de ladrões) e, sabendo muito bem que ele não poderia ver a porta se abrir, continuei a empurrá-la milimetricamente, mais e mais.

        Já havia enfiado minha cabeça na abertura e estava prestes a abrir o obstruidor da lanterna, quando meu polegar escorregou no fecho de lata. O velho se ergueu na cama sobressaltado, gritando: "Quem está aí?"

        Fiquei imóvel e nada disse. Por uma hora inteira não movi sequer um músculo e durante todo esse tempo não o ouvi deitar-se novamente. Ainda devia estar sentado na cama procurando ouvir qualquer coisa... tal como eu fizera, noite após noite, ouvindo a morte rondar por ali.

        Não muito depois, escutei um leve gemido e sabia que era produto de um pânico mortal. Não se tratava de um gemido de dor ou sofrimento... Ah não!... Era o som grave e contido que brota de dor ou sofrimento... Ah não!... Era o som grave e contido que brota do fundo da alma quando o mundo ela está saturada de terror. Eu conhecia muito bem esse som. Muitos foram as noites nas quais á meia-noite em ponto, hora em que o mundo inteiro dorme, esse mesmo som emergia de meu próprio peito e com seus ecos horripilantes aguçava ainda mais os terrores que me aturdiam. Digo-lhes que o conhecia muito bem. Sabia como o velho devia estar se sentindo e tinha pena dele, se bem que no fundo me risse. Bem sabia que ele estivera acordado na cama desde o momento do primeiro ruído leve que o despertara. Desde então os temores se agigantavam dentro dele. Havia tentado se convencer de que eram improcedentes, mas era impossível. Havia repetido a si mesmo: "Não é nada... apenas o barulho do vento pela chaminé...", ou "é apenas um rato a correr pelo quarto...", ou ainda "Deve ter sido um grilo que cricrilou uma única vez". Sim, certamente tentara se consolar com tais suposições, mas tudo em vão. Tudo em vão, porque para dele se aproximar a Morte, viera sub-repticiamente, oculta no seu manto negro com o qual capturava a vítima. E foi a funesta influência desse manto invisível que o fez sentir — embora não pudesse ver ou ouvir — que o fez sentir a presença de minha cabeça no interior do quarto.

        Depois de ter esperado por muito tempo com infinita paciência sem tê-lo ouvido deitar-se, decidi abrir uma pequenina fresta – uma fresta mínima – no obstruidor da lanterna. E assim o fiz, e vocês não podem nem imaginar com que lentidão fui girando-o, até que, por fim, um único raio de luz, fino como o fio de uma teia de aranha, projetou-se da pequena fresta e foi pousar-lhe  diretamente no olho de abutre.

        Estava aberto – bem aberto e arregalado – e ao vê-lo fui tomando de fúria. Via-o com perfeita nitidez – todo de um azul aguado, coberto por aquela película horrenda que me gelava até a medula dos ossos. No entanto, era só o que eu podia ver da face e do corpo do velho, pois, como que por instinto, apontara o raio de luz exatamente sobre aquele maldito ponto.

        Mas então já não lhes disse que aquilo que vocês tomam por loucura nada mais é que uma hiperagudeza dos sentidos? Pois digo-lhes que nesse momento ouvi um ruído, baixo e abafado, como o tique-taque de um relógio enrolado num pano. Também conhecia muito bem esse som. Eram as batidas do coração do velho. Assim como o rufar dos tambores de guerra incita o soldado à luta, esse barulho deixava-me cada vez mais furioso.

        Contudo, mesmo nessa hora ainda me contive, permanecendo imóvel. Mal podia respirar. Segurava a lanterna inerte. Com o máximo de firmeza possível tentei manter o raio de luz sobre o olho do velho. Enquanto isso, o som diabólico daquele coração ia crescendo. Tornava-se cada vez mais rápido e aumentava de volume a cada instante. O terror que se apossou do velho deve ter sido extremo! Batia mais e mais, asseguro-lhes eu, cada vez mais alto!... Estão compreendendo bem o que lhes digo? Já lhes disse que sou nervoso... é assim que sou. E então na calada da noite, em meio ao terrível silêncio daquela casa velha, um ruído tão estranho quanto aquele punha-se na excitação de um incontrolável pavor. Entretanto... por mais alguns segundos... contive-me e permaneci imóvel. Mais as batidas se tornavam mais altas! Pensei que o coração fosse explodir. E então outra angústia tomou conta de mim – o ruído poderia ser ouvido por algum vizinho! Chegara a hora do velho! Com um grito incontido, escancarei a lanterna e saltei para dentro do quarto. Ele soltou um grito – um só e estridente como o de uma ave – uma única vez! Em um instante arrastei-o para o chão e empurrei a cama pesada sobre ele. Então sorri de satisfação ao ver o ato consumado. Porém por vários minutos o coração continuou a bater com aquele som abafado. Mas isso não me perturbava; não poderia ser ouvido através da parede. Por fim cessou. O velho estava morto. Removi a cama e examinei o cadáver. Sim, estava morto, morto como uma pedra. Coloquei minha mão sobre o coração e ali a deixei ficar por alguns minutos. Não havia pulsação. Morto como pedra. Aquele seu olho nunca mais me incomodaria.

        Se vocês ainda me acham louco, mudarão de opinião quando eu lhes descrever as sábias precauções que tomei para esconder o corpo. A noite findava e pus-me a trabalhar apressadamente, mas sempre em silêncio. Em primeiro lugar, desmembrei o corpo. Decepei-lhe a cabeça, os braços e as pernas.

        E então arranquei depois três tábuas do assoalho do quarto e depositei tudo entre as fendas. Recoloquei as tábuas com tanta habilidade, com tanta astúcia, que nenhum olho humano, – nem mesmo o dele – poderia detectar algo de errado. Não havia nada para ser lavado – nenhuma mancha de qualquer tipo – nem sequer um único pingo de sangue. Eu tinha sido extremamente cuidadoso para evitar a isso acontecesse: a banheira recolhera tudo... Ah! Ah! Ah!

        Quando acabei essas tarefas eram quatro horas, mas ainda estava escuro como se fosse meia-noite. Quando o sino deu as horas, ouvi batidas na porta que dava para a rua. Desci para abri-la despreocupado... O que havia para temer agora? Entraram três homens e, com a maior palidez, identificaram-se como sendo da polícia. Um grito estridente fora ouvido por um vizinho durante a noite; levantara-se a suspeita de crime; a delegacia de polícia fora notificada e eles receberam a incumbência de investigar.

        Sorri, pois que havia a temer? Dei as boas-vindas aos cavalheiros. O grito, disse-lhes, eu mesmo o dera durante um sonho. O velho, informei, estava fora, no interior. Levei os meus visitantes a todas as partes da casa. Sugeri que investigassem tudo e que investigassem muito bem. Por fim, eu os conduzi ao quarto dele. Mostrei-lhes os seus bens, totalmente seguros e intocados. Movido pelo entusiasmo de minha autoconfiança, levei cadeiras para o quarto e sugeri que descansassem ali, enquanto eu mesmo, na louca audácia de meu triunfo absoluto, colocava minha cadeira justamente sobre o local onde repousava o cadáver.

        Os policiais ficaram satisfeitos. O modo como me portara convencera-os. Eu estava muito à vontade. Sentaram-se e enquanto eu ia-lhes respondendo animadamente, conversaram sobre assuntos corriqueiros. Porém, logo senti que começava a empalidecer e sejei que já tivessem ido embora. A cabeça me doía e imaginei estar ouvindo um zumbido nos ouvidos. Mas eles permaneciam sentados e continuavam a conversar. O zumbido ficou mais distinto; prosseguia e tornava-se mais nítido. Pus-me a falar com mais eloquência a fim de me livrar daquela sensação, mas o ruído continuava, cada vez mais nítido, até que, por fim, descobri que o som não estava em meus ouvidos.

        Sem dúvida, nesse momento, fiquei lívido... mas falava mais, num tom mais alto. Contudo, o barulho também aumentava... e o que é que eu podia fazer? Era um ruído rápido, baixo e abafado... muito parecido com o som de um relógio enrolado num pano. Faltava-me o fôlego e, no entanto, os policiais nada ouviam. Comecei a falar mais depressa e com veemência; mas o som não parava de aumentar. Pus-me de pé e comecei a discutir sobre ninharias, com voz muito alterada e gestos violentos, mas o ruído continuava aumentando. Por que eles não iam embora? Andava de um lado para outro do quarto, com passadas largas e pesadas, como se o fato de ser assim observado por eles me levasse à loucura – e o ruído não parava de aumentar. Ah! Meu Deus! O que é que eu podia fazer? Esbravejei, vociferei, praguejei! Peguei a cadeira em que estivera sentado e pus-me a raspá-la nas tábuas do assoalho, mas o ruído excedia a tudo e aumentava mais e mais e mais. Tornou-se mais alto... mais alto... mais alto! E ainda assim os homens conversavam placidamente e sorriam. Seria possível que não estivessem ouvindo? Santíssimo Deus! Não e não! Estavam ouvindo, sim! Suspeitavam de mim! Sabiam de tudo! E zombavam do pavor que eu sentia! Foi isso que pensei, e é o que penso ainda. Mas qualquer coisa seria preferível a essa agonia! Qualquer coisa seria mais suportável que esse escárnio! Eu não podia suportar aqueles sorrisos hipócritas por nem mais um segundo! Senti que tinha de gritar ou então morreria!... E então, outra vez!... ouçam! Mais alto... Mais alto... Mais alto!...

        “Canalhas!”, gritei, “parem com esse fingimento! Confesso o crime! Arranquem logo as tábuas!... Está aqui! aqui!... está aqui o bater desse coração hediondo!”

POE, Edgar Allan. O coração delator. Trad. de Eliana Rossi para esta obra. Disponível em: http://www.eapoe.org/works/reading/pt043r1.htm. Acesso em: 17 abr. 2010.

Fonte: Português – Literatura, Gramática e Produção de texto – Leila Lauar Sarmento & Douglas Tufano – vol. 2 – Moderna – 1ª edição – São Paulo, 2010, p. 188-192.

Entendendo o conto:

01 – Qual a principal motivação do narrador para matar o velho?

a) A cobiça pelo ouro do velho.

b) A necessidade de vingança por um mal passado.

c) A obsessão pelo olho do velho.

d) A vontade de testar seus próprios limites.

02 – Qual a característica mais marcante do narrador?

a) Calma e racionalidade.

b) Loucura e instabilidade emocional.

c) Bondade e compaixão.

d) Inteligência e astúcia.

03 – Qual o papel do som do coração batendo na história?

a) É um símbolo da consciência culpada do narrador.

b) Representa o ritmo frenético da vida na cidade.

c) É uma alucinação causada pela loucura do narrador.

d) É um som natural da casa antiga.

04 – Por que o narrador confessa o crime para os policiais?

a) Porque sente remorso e deseja ser punido.

b) Porque acredita que eles já sabem a verdade.

c) Porque a culpa o tortura e ele não aguenta mais esconder o crime.

d) Porque quer provocar medo e confusão nos policiais.

05 – Qual o significado do título "O Coração Delator"?

a) Refere-se ao coração físico do velho.

b) Simboliza a consciência culpada do narrador.

c) Representa a loucura que domina o narrador.

d) É uma metáfora para a cidade onde se passa a história.

06 – Qual a principal lição que podemos tirar da história?

a) A loucura é uma doença incurável.

b) A culpa pode levar à destruição.

c) A obsessão pode cegar as pessoas.

d) A justiça sempre prevalece.

07 – Qual o gênero literário ao qual pertence "O Coração Delator"?

a) Romance histórico.

b) Conto de fadas.

c) Conto de terror gótico.

d) Crônica policial.