segunda-feira, 11 de outubro de 2021

CONTO: EXERCÍCIO PARA - NATHALIE LOURENÇO - COM GABARITO

 Conto: Exercício para

           Nathalie Lourenço

        Existe uma foto que sempre me fazia chorar. São duas crianças de etnias inimigas, mas quase não se vê qual é qual, pois as duas estão cobertas de fuligem, sentadas sobre uns escombros e vestidas apenas com fraldas e sapatinhos. Quem tirou essa foto fui eu. Depois, ela estamparia capas de jornais do mundo todo, ganharia prêmios, me tiraria do nada e me levaria a ser uma das fotógrafas mais procuradas do meio. Nunca foi nada disso que fazia despertar tremores e inundações dentro de mim, e sim a mesma coisa indefinível que me levou a fazer o clique. Uma penugem de cinzas cobrindo os cílios das crianças. A forma que suas mãozinhas se entrelaçavam, sem saber que tinham nascido para se odiar. A vida que continua no meio de um mundo destroçado.

        Essa foto (chama-se Castor e Pólux) foi impressa em um painel de 3 metros de altura. Eu fiquei de frente para ela na exposição em minha homenagem organizado pela fundação de Janus e, pela primeira vez em mais de 30 anos, os meus olhos permaneceram secos. Doutor Kobayashi disse que a perda gradual da emotividade é um sintoma comum de quem usa há muito tempo o CyberCortex: o cérebro artificial tem dificuldade para sinalizar a produção de endorfinas. Assim, pediu que eu fizesse alguns exercícios.

        Exercício para tristeza
        Fa
ça um prato de comida. Assista enquanto ele esfria.
        Ao esquent
á-lo novamente, imagine se o sabor é o mesmo ou se algo se perdeu.
        Pense sobre isso por dois minutos.

        Hoje vou tomar um café com Janus. Impossível não associar sua figura barbuda a um acampamento, uma mochila surrada e uma câmera no pescoço. Ninguém entende melhor as zonas de guerra do que ele.

        O medo nunca passa nas zonas de guerra. Mesmo depois de muitos anos e muitas guerras diferentes. Você precisa se concentrar no que está a sua frente, no visor da câmera, e pode não perceber algo importante, como um estilhaço ou uma bala vindo em direção à sua cabeça. Graças ao medo, fui uma das primeiras a fazer o download de memórias para a tecnologia do CyberCortex, em uma época em que isso ainda era considerado excêntrico e antinatural. Hoje, apenas um louco faria o que eu e Janus fazíamos sem antes fazer um upload cerebral completo. Hoje, apenas Janus continua a fazê-lo. Eu não. E quando o estilhaço veio, morte cerebral não significava mais morte. Na volta, foi difícil me acostumar. Caía muito. A maior diferença é o peso da cabeça. Um chip não pesa muito, mesmo com a espuma de alta densidade que é usada para que a cabeça não fique – literalmente – oca.

        Era perigoso, e eu era inconsequente. Janus arranjou trabalhos freelance para mim em revistas de notícia e de moda, mas não era isso que eu queria fazer. Em pouco tempo estava de volta às trincheiras. Sei que perdi o equilíbrio perto de um campo minado por causa das pernas cibernéticas que uso hoje. Mandei que deletassem a memória do meu HD, por causa do stress pós-traumático. Assim, a única lembrança que tenho desse momento é uma foto tirada sem querer, por um dedo crispado de dor, um borrão 85% terra e 15% céu.

        Meus arquivos saltam diretamente para o momento que acordei na ala de BioTech do hospital. Janus está lá, o que me preocupou de imediato. Seu contrato previa ainda 2 meses no campo de refugiados. Ele explicou sobre o funcionamento dos joelhos mecânicos, primeiro receoso, mas logo voltou a ser ele mesmo, brincando que eu sempre tive umas belas dumas pernas e que agora elas seriam eternas. Se gabou de ter feito com que fossem modeladas a partir de umas fotos de quando eu tinha 25 anos. As duas longas traquitanas se dobram de forma involuntária quando eu começo a rir.

        Exercício para amor
        Escolha uma parte pequena de uma pessoa
à sua escolha.
        Observe detalhes como: uma dobra da orelha, a forma que as cores se alteram na borda das pupilas. N
ão pare até encontrar a beleza insuportável que há nisto.

        Janus está atrasado para nosso café. Peço mais um duplo, correndo o risco de desregular o PH do meu estômago químico. Passam-se duas horas, e nada de Janus. Envio mensagens para seu aparelho pessoal e para o serviço de nanomensagens. É desagradável, mas faço uma ligação para sua casa, torcendo que sua nova esposa não atenda, e sim um Janus esquecido e de pijamas. Segundo Vivian, ele saiu há mais de duas horas. Saio do café e caminho no ar gelado da rua. De costas, algumas pessoas se parecem com ele, mas apenas de costas. De frente, vemos os vidros e as chapas metálicas, os braços mecânicos e unhas microchipadas. Apenas Janus é todo carne e obsolescência. Recebo uma ligação de Lóris, da exposição, pedindo que eu vá para lá o quanto antes.

        É dia de semana, e às 17h, há quase ninguém no hall. Distingo logo a figura de Janus, pequeno contra a gigantesca reprodução de Castor e Pólux. Lóris está ao seu lado e diz em voz tranquilizadora Está Vendo, Cali Chegou, Cali Está Aqui, e ele se cala e me mede com os olhos gelatinosos, os mesmos olhos com que nasceu, e pelo modo que abre e fecha boca, vejo que não sabe quem eu sou. Abana a cabeça e, sem dizer palavra, ergue os olhos para as duas crianças titânicas, cobertas de cinza e desamparo.

        Ainda não consigo chorar.

LOURENÇO, Nathalie. Exercício para. In: Raimundo – Revista de nova literatura brasileira. Disponível em: http://www.revistaraimundo.com.br/9/nl1_c.php. Acesso em: 27 fev. 2019.

Fonte: Língua Portuguesa – Programa mais MT – Ensino fundamental anos finais – 9° ano – Moderna – Thaís Ginícolo Cabral. p. 34-40.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Endorfinas: neurotransmissor produzido pelo corpo humano cuja elevação reduz a ansiedade, os sintomas de depressão e o apetite.

·        Titânica: adjetivo utilizado para caracterizar algo grande e forte; relativo a titãs, divindades clássicas que enfrentaram Zeus.

·        Traquitanas: engrenagem; módulo móvel de ferro para sustentação e deslocamento.

02 – Retorne o que pensou a respeito do título da narrativa e responda por que o título parece estar incompleto?

      Resposta pessoal do aluno.

03 – Antes de ler o texto, você levantou hipóteses sobre os exercícios mencionados. O que você havia imaginado se confirmou após a leitura do texto?

      Resposta pessoal do aluno.

04 – No início do conto, a personagem descreve uma fotografia que retrata uma questão social.

a)   Qual é a questão social retratada?

A imagem retrata duas crianças, de etnias inimigas, cobertas por poeira de escombros.

b)   Em que cenário a foto tirada por Cali foi ambientada?

Provavelmente em uma guerra entre duas etnias num futuro não datado.

c)   O retrato fotográfico criado pela narradora tem um nome e faz referência a uma figura mítica. Qual?

A foto recebe o título de “Castor e Pólux” e faz referência aos irmãos por parte de mãe Castor e Pólux, personagens da mitologia grega, mas apenas o segundo é filho de Zeus e, portanto, imortal. Diante de um conflito, Pólux divide sua imortalidade com Castor para que permaneçam juntos para sempre. Ela foi utilizada como título da foto, provavelmente, para marcar a fraternidade entre as duas crianças, que, mesmo sendo de etnias diferentes, estavam ligadas como irmãs numa situação de conflito.

05 – Para se referir à imagem que retratou, a narradora utiliza duas palavras diferentes.

a)   Quais são essas palavras?

Para se referir à imagem, Cali utiliza foto e clique.

b)   Que outras palavras poderiam ser utilizadas pela autora para evitar repetição dessa palavra?

Fotografia, registro fotográfico, retrato, entre outros sinônimos.

06 – No conto, a autora se vale de diferentes expressões para revelar o modo como a personagem não conseguia mais sentir as coisas. Quais são?

      As expressões meus olhos permaneceram secos, sempre me fazia chorar, nunca foi nada disso que fazia despertar tremores e inundações dentro de mim, etc.

07 – Releia agora um trecho do conto:

        Hoje vou tomar um café com Janus. Impossível não associar sua figura barbuda a um acampamento, uma mochila surrada e uma câmera no pescoço. Ninguém entende melhor as zonas de guerra do que ele.

        O medo nunca passa nas zonas de guerra. Mesmo depois de muitos anos e muitas guerras diferentes. Você precisa se concentrar no que está a sua frente, no visor da câmera, e pode não perceber algo importante, como um estilhaço ou uma bala vindo em direção à sua cabeça. [...]”.

LOURENÇO, Nathalie. Exercício para. In: Raimundo – Revista de nova literatura brasileira. Disponível em: http://www.revistaraimundo.com.br/9/nl1_c.php. Acesso em: 27 fev. 2019.

·        Ainda que o conto não anuncie diretamente a profissão de Janus, podemos inferi-la a partir do trecho lido. Com o que Janus trabalhava?

Janus também era fotógrafo de guerra, assim como Cali.

08 – Por que Cali perdeu a emotividade?

      Cali trabalhava como fotografa, cobrindo reportagens de guerras e conflitos. Em um desses trabalhos, um estilhaço atingiu sua cabeça e a fez sofrer uma espécie de morte cerebral. No entanto, tempos antes de isso ocorrer, a humanidade havia criado uma nova tecnologia que permitiria o upload de memórias. Dessa forma, ela teve seu cérebro transplantado e substituído por um chip, perdendo assim a capacidade de sentir as coisas e de emocionar.

09 – O que seria o CyberCortex?

      CyberCortex é o nome da tecnologia que permitiu à personagem principal permanecer viva, fazendo com que as memórias humanas fossem armazenadas em um arquivo digital e depois transferidas para um chip.

10 – Leia novamente um dos exercícios que o Doutor Kobayashi pediu a Cali que fizesse:

        Exercício para tristeza
          Fa
ça um prato de comida. Assista enquanto ele esfria.
          Ao esquent
á-lo novamente, imagine se o sabor é o mesmo ou se algo se perdeu.
          Pense sobre isso por dois minutos.”

LOURENÇO, Nathalie. Exercício para. In: Raimundo – Revista de nova literatura brasileira. Disponível em: http://www.revistaraimundo.com.br/9/nl1_c.php. Acesso em: 27 fev. 2019.

a)   Os trechos que marcam os exercícios feitos pela personagem para recuperar a sensibilidade estão destacados de que forma ao longo do texto? Por que a autora do conto optou por fazer esse destaque?

Os trechos foram destacados em itálico e obedecem a um recuo em relação ao restante do texto. A autora possivelmente optou por esses destaques porque queria dar visibilidade ao texto dos exercícios.

b)   Imagine agora que você fosse convidado a colaborar com a pesquisa do Doutor Kobayashi. Que exercícios você sugeriria que Cali fizesse para recuperar as emoções apresentadas?

Resposta pessoal do aluno.

c)   Agora pense em uma sensação ou emoção e crie uma receita para ela.

        Exercício para...

Resposta pessoal do aluno.

11 – No final do conto, o discurso direto, ou seja, as falas da personagem Lóris são marcadas de modo não convencional. Que recurso foi utilizado pela autora para marcar as falas? Por que ela utiliza esse recurso?

      A autora utiliza letras maiúsculas no trecho “Está Vendo, Cali Chegou, Cali Está Aqui”. Resposta pessoal do aluno.

12 – Outro aspecto interessante na organização da narrativa são os nomes dos personagens. Tanto Janus como Cali são referências a nomes de divindades. Faça uma breve pesquisa sobre essas figuras míticas e levante uma hipótese sobre o uso desses termos.

      Resposta pessoal do aluno.

 

 

 

domingo, 10 de outubro de 2021

CRÔNICA: SOPA DE MACARRÃO - DOMINGOS PELLEGRINI - COM GABARITO

 CRÔNICA: SOPA DE MACARRÃO

                   Domingos Pellegrini

 O filho olha emburrado o prato vazio, o pai pergunta se não está com fome.

 — Com fome eu tô, não tô é com vontade de comer comida de velho.

 Lá da cozinha a mãe diz que decretou ― De-cre-tei! — que ou ele come legumes e verduras, ou vai passar fome.

 — Não quero filho meu engordando agora para ter problemas de saúde depois. Só quer batata frita e carne, carne e batata frita!

 Ela vem com a travessa de bifes, o pai tira um, ela senta e tira o outro, o filho continua com o prato vazio.

 — Nos Estados Unidos — continua ela — um jornalista passou um mês comendo só fastfood, engordou mais de seis quilos!

 — E como é que ele aguentou um mês só comendo isso?! — perguntou o pai, o filho responde:

 — Porque é gostoso! — E pega com nojo uma folhinha de alface, põe no prato e fica olhando como se fosse um bicho.

 A mãe diz que é preciso ao menos experimentar para saber o que é ou não gostoso, e o pai diz que, quando era da idade dele, comia cenoura crua, pepino, manga verde com sal, comia até milho verde cru.

— E devorava o cozido de legumes da sua avó! E essa alface? Pra comer, é preciso botar na boca...

 O filho enfia a alface na boca, mastiga fazendo careta, pega um bife, a mãe pula na cadeira, pega o bife de volta:

 — Não-senhor! Só com salada pra valer, arroz, feijão, tudo!

 — Ele continua olhando o prato vazio, até que resmunga:

 — Se vocês sempre comeram tão bem, como é que acabaram barrigudos assim?

 O pai diz que isso é da idade, o importante é ter saúde.

 — E você, se continuar comendo só fritura, carne, doce e refrigerante, na nossa idade vai pesar mais de cem quilos!

 — No Japão — resmunga ele — podia ser lutador de sumo e ganhar uma nota.

 — E no Natal — cantarola a mãe — vai ser Papai Noel né? E Rei Momo no carnaval...

 — Não tripudie — diz o pai. — Ele ainda vai comer de tudo. Quando eu era menino, detestava sopa. Aí um dia minha mãe fez sopa com macarrão de letrinhas, passei a gostar de sopa!

O filho pergunta o que é macarrão de letrinhas, o pai explica. Ele põe na boca uma rodela de tomate, o pai e a mãe trocam um vitorioso olhar. O pai faz uma voz doce:

— Está descobrindo que salada é gostoso, não está?

— Não, peguei tomate para tirar da boca o gosto nojento de alface, mas acabo de descobrir que tomate também é nojento.

— Mas catchup você come não é? Pois é feito de tomate!

— E ele também não come ovo — emenda a mãe — mas come maionese, que é feita de ovo!

O filho continua olhando o prato vazio.

— Coma ao menos feijão com arroz — diz o pai.

Ele pega uma colher de feijão, outra de arroz dizendo que viu um filme onde num campo de concentração só comiam assim pouquinho, só o suficiente pra sobreviver... Mastiga tristemente, até que o pai lhe bota o bife no prato de novo, mas a mãe retira novamente:

— Ou salada ou nada! Sem chantagem sentimental!

O pai come dolorosamente, a mãe come furiosamente, o filho olha o prato tristemente.

Depois a mãe retira a comida, ele continua olhando a mesa vazia. Na cozinha, o pai sussura para ela:

— Mas ele comeu duas folhas de alface, não pode comer dois pedaços de bife?!...

Ela diz que de jeito nenhum, desta vez é pra valer; então o pai vai ler o jornal, mas de passagem pelo filho, pergunta se ele não quer um sanduíche de bife — com salada, claro. Não, diz o filho, só quer saber de uma coisa da tal sopa de letras. O pai se anima:

— Pergunte, pergunte!

— Você podia escrever o que quisesse com as letras no prato?

— Claro! Por que, o que você quer escrever?

— Hambúrguer, maionese e catchup

 É teimoso que nem o pai, diz a mãe. Teimoso é quem teima comigo, diz o pai. O filho vai para o quarto, só sai na hora da janta: sopa de macarrão. Então, vai escrevendo, e engolindo as palavras: escravidão, carrascos, nojo, e enfim escreve amor, o pai e mãe lacrimejam, mas ele explica:

— Ainda não acabei, tá faltando letra pra escrever: amo rosbife com batata frita...

 Domingos Pellegrini – Crônica brasileira contemporânea. São Paulo: (Salamandra, 2005. P.210-3.)

http://comunicaoeexpresso.blogspot.com/2017/

Entendendo o texto

01. O enredo do texto se dá quando

      a. o filho diz que tá com fome, não tá é com vontade de comer comida de velho.

       b. a mãe diz que decretou – está decretado – ou ele come legumes e verduras, ou vai passar fome.

       c. a mãe afirma que não quer o filho dela engordando para ter problemas de saúde depois.

       d. o filho só quer saber, agora, da tal sopa de letras.

 

02. No trecho “A mãe diz que é preciso ao menos experimentar para saber o que é ou não gostoso, e o pai diz que, quando era da idade dele, comia cenoura crua, pepino, manga verde com sal, comia até milho verde cru.” A oração em destaque dá ideia de

a. adição. 

b. conformidade.

c. tempo.       

d. proporcional.

 

03. Marque o vocábulo que NÃO apresenta registro de informalidade.

     a.  “... não tô é com vontade de comer comida de velho.”

     b. “Não-senhor! Só com salada pra valer, arroz, feijão, tudo!”

     c. “Ainda não acabei, tá faltando letra pra escrever...”

     d. “... o filho olha o prato tristemente.”

04. No trecho “Está descobrindo que salada é gostoso, não está?”, de qual personagem é esta fala?

     a. pai.  

     b. filho.

     c. mãe.                                                     

     d. narrador.

 

05. Marque a opção que representa uma opinião.

      a. “É teimoso que nem o pai...”

      b. “O filho olha emburrado o prato vazio...”

      c.“... O filho vai para o quarto, ...”
      d. “O filho pergunta o que é macarrão de letrinhas, ...”

 

06. De acordo com a leitura do texto, o autor deixa a entender claramente

   a. que existe uma família à mesa, na hora do almoço.

   b.  que a mãe não se preocupa com a saúde do filho.

   c.  que o filho por si só, desperta interesse pela sopa de letrinhas.

   d. que o pai permite que o filho coma fritura, carne, doce e refrigerante.

 

07. Há traço de ironia em

      a.    “... a mãe pula na cadeira, pega o bife de volta.”

      b.  “E no Natal [...] vai ser Papai Noel, né? E rei Momo no carnaval...”

      c. “... um jornalista passou um mês comendo só fastfood, engordou mais de seis quilos!”

     d. “Lá da cozinha a mãe diz que decretou – de-cre-tei!...”  

 

08. No trecho “... não tô é com vontade de comer comida de velho”, o sentido da expressão em destaque é

    a.  sopa de macarrão.    

    b.  legumes e verduras.

    c.  feijão e arroz.         

    d. frituras e carnes.

 

09. O texto trata, principalmente
      a.  da alimentação balanceada.            

      b.  do uso das guloseimas.                    

      c. da escolha do que comer.

      d. dos hábitos alimentares do pai.

10.  A finalidade do texto é

      a. Informar.   

      b. Relatar.      

     c.  Entreter.     

     d.  Persuadir.

 

 

CRÔNICA: O LEÃO - DALTON TREVISAN - COM GABARITO

 CRÔNICA: O LEÃO

                    Dalton Trevisan


  A menina conduz-me diante do leão, esquecido por um circo de passagem. Não está preso, velho e doente, em gradil de ferro. Fui solto no gramado e a tela fina de arame é escarmento ao rei dos animais. Não mais que um caco de leão: as pernas reumáticas, a juba emaranhada e sem brilho. Os olhos globulosos fecham-se cansados, sobre o focinho contei nove ou dez moscas, que ele não tinha ânimo de espantar. Das grandes narinas escorriam gotas e  pensei, por um momento, que fossem lágrimas.

  Observei em volta: somos todos adultos, sem contar a menina. Apenas para nós o leão conserva o seu antigo prestígio - as crianças estão em redor dos macaquinhos. Um dos presentes explica que o leão tem as pernas entrevadas, a vida inteira na minúscula jaula. Derreado, não pode sustentar-se em pé.

  Chega-se um piá e, desafiando com olhar selvagem o leão, atira-lhe um punhado de cascas de amendoim. O rei sopra pelas narinas, ainda é um leão: faz estremecer as gramas a seus pés.

Um de nós protesta que deviam servir-lhe a carne em pedacinhos.

- Ele não tem dente?

- Tem sim, não vê? Não tem é força para morder.

  Continua o moleque a jogar amendoim na cara devastada do leão. Ele nos olha e um brilho de compreensão nos faz baixar a cabeça: é conhecido o travo amargoso da derrota. Está velho, artrítico, não se aguenta das pernas, mas é um leão. De repente, sacudindo a juba, põe-se a mastigar capim. Ora, leão come verde! Lança-lhe o guri uma pedra: acertou no olho lacrimoso e doeu.

  O leão abriu a bocarra de dentes amarelos, não era um bocejo. Entre caretas de dor, elevou-se aos poucos nas pernas tortas. Sem sair do lugar, ficou de pé. Escancarou penosamente os beiços moles e negros, ouviu-se a rouca buzina do fordeco antigo.

  Por um instante o rugido manteve suspensos os macaquinhos e fez bater mais depressa o coração da menina. O leão soltou seis ou sete urros. Exausto, deixou-se cair de lado e fechou os olhos para sempre.

Entendendo o texto

 

01.  Pelo que se pode compreender da leitura global do texto, por que motivo o leão, animal considerado perigoso e violento, não estava preso?

Porque estava velho e doente.

02.   “Destaque as características atribuídas ao leão que justifiquem a seguinte apreciação:” Não mais que um caco de leão (...)”

           “ as pernas reumáticas, a juba emaranhada e sem brilho”.

03.  Observe que o autor vale-se de uma comparação para assinalar a impressão de tristeza e pesar que a personagem demonstrou ter pelo leão. Destaque-a.

“Das grandes narinas escorriam gotas e pensei, por um momento, que fossem lágrimas.”

04.  Que tal reconstruir esta parte do texto de uma forma diferente?

Comece o parágrafo com: “A menina conduz-me diante do leão, que rugia como se dissesse: “- Sou o rei dos animais! O rei da selva!”

Ao terminar a reescrita do parágrafo a partir daí, observe que elementos você teve de alterar na descrição, para que o texto fizesse sentido, tivesse coerência.

Resposta pessoal.

 

    05. Análise de Texto Descritivo
         I.   Embora não seja um texto predominantemente descritivo,  ocorre descrição, visto que o autor representa a personagem principal através de aspectos que a individualizam.

        II.  Por ressaltar unicamente as condições físicas da personagem, predomina a descrição objetiva no texto, com linguagem denotativa.

      III. Por ser um texto predominantemente narrativo, as demais formas - descrição e dissertação - inexistem.

Inferimos que, de acordo com o texto, pode(m) estar correta(s):

a) Todas
b) Apenas a I
c) Apenas a II
d) Apenas a III
e) Nenhuma das afirmações.


 06. 
I.   Fato principal: a morte do leão. Causas principais: o circo, que o abandonou, e a criança, que o acertou com uma pedra.

II.  A decadência física do leão, assunto predominante do texto, denota animalização do ser humano.

III. A velhice do leão, assunto predominante do texto, conota marginalização, maus tratos e decadência física dos animais.

Inferimos que, de acordo com o texto, pode(m) estar correta(s):

a) Todas
b) Apenas a I
c) Apenas a II
d) Apenas a III
e) Nenhuma das afirmações.


07. Análise de Texto Descritivo:
I.   Conotativamente, o leão chora; denotativamente, o menino agride.

II.  A decadência do leão é tanta, que nada faz lembrar a sua antiga reputação. Nem mesmo os adultos o reconhecem mais.

III. Metaforicamente, o leão, que não mais produz e não mais trabalha, pode representar a marginalização, abandono e agressão a que são submetidos os idosos.
      
Inferimos que, de acordo com o texto, pode(m) estar correta(s):

a) Todas
b) Apenas a I
c) Apenas a II
d) Apenas a III
e) Nenhuma das afirmações.


08. 
I.   Evidencia-se  explicitamente no texto uma comparação: a decadência do leão é similar a do ser humano em geral.
 
II.  Incapaz de reagir fisicamente às provocações, o leão, sentindo-se inconformado, morre.

III. O fato de o leão "não estar preso em gradil de ferro constitui, por parte de seus antigos donos, uma prova de gratidão.

Inferimos que, de acordo com o texto, pode(m) estar correta(s):

a) Todas
b) Apenas a I
c) Apenas a II
d) Apenas a III
e) Nenhuma das afirmações.

 

 

 

 

 

CRÔNICA: CAFEZINHO - RUBEM BRAGA - COM GABARITO

 CRÔNICA: CAFEZINHO

                      Rubem Braga

 Leio a reclamação de um repórter irritado que precisava falar com um delegado e lhe disseram que o homem havia ido tomar um cafezinho. Ele esperou longamente, e chegou à conclusão de que o funcionário passou o dia inteiro tomando café.

Tinha razão o rapaz de ficar zangado. [...]

A vida é triste e complicada. Diariamente é preciso falar com um número excessivo de pessoas.

O remédio é ir tomar um “cafezinho”. Para quem espera nervosamente, esse “cafezinho” é qualquer coisa infinita e torturante. Depois de esperar duas ou três horas dá vontade de dizer:

– Bem cavalheiro, eu me retiro. Naturalmente o Sr. Bonifácio morreu afogado no cafezinho.

Ah, sim, mergulhemos de corpo e alma no cafezinho. Sim, deixemos em todos os lugares este recado simples e vago: – Ele saiu para tomar um café e disse que volta já.

Quando a bem-amada vier com seus olhos tristes e perguntar: – Ele está? – alguém dará o nosso recado sem endereço. Quando vier o amigo e quando vier o credor, e quando vier o parente, e quando vier a tristeza, e quando a morte vier, o recado será o mesmo: – Ele disse que ia tomar um cafezinho...

Podemos, ainda, deixar o chapéu. Devemos até comprar um chapéu especialmente para deixá-lo. Assim dirão: – Ele foi tomar um café. Com certeza volta logo. O chapéu dele está aí...

Ah! Fujamos assim, sem drama, sem tristeza, fujamos assim. A vida é complicada demais.

Gastamos muito pensamento, muito sentimento, muita palavra. O melhor é não estar.

Quando vier a grande hora de nosso destino nós teremos saído há uns cinco minutos para tomar um café. Vamos, vamos tomar um cafezinho.

BRAGA, Rubem. Disponível em: .

Acesso em: 17 fev. 2012.

https://www.objetivo.br/arquivos/desafio/fundamental2/Resolucao_Desafio_8ano_Fund2_Portugues_101216.pdf

Entendendo o texto

 01. Segundo a crônica, o aborrecimento do repórter decorre do fato de

a) o delegado tomar café demais.

b) o funcionário não voltar para suas funções.

c) os funcionários públicos nunca trabalharem.

d) o delegado tomar cafezinho durante o expediente de trabalho.

e) necessitar de uma informação e não obtê-la.

 

02. O trecho “... lhe disseram que o homem havia ido tomar um cafezinho.” (ℓ. 3-4), o pronome destacado refere-se ao

A) repórter.

B) delegado.

C) amigo.

D) credor.

E) parente.

03.Analise atentamente os trechos a seguir.

I. “Leio a reclamação de um repórter irritado que precisava falar com um delegado”.

II. “Tinha razão o rapaz de ficar zangado”. Os trechos indicam, respectivamente,

a) causa e consequência.

b) fato e finalidade.

c) fato e causa.

d) fato e oposição.

e) fato e opinião.

 04.  Nesse texto, a expressão “... mergulhemos de corpo e alma no cafezinho.” (ℓ. 18-19) foi usada para

A) colocar em destaque os benefícios oferecidos pelo café.

B) demonstrar o sentimentalismo do autor.

C) destacar a importância do café na vida das pessoas.

D) fazer referência a elementos religiosos.

E) intensificar a ideia do cafezinho como fuga dos problemas.

 

     05.Analise as frases abaixo:

             I. “Diariamente é preciso falar com um número excessivo de pessoas”.

        II. “Para quem espera nervosamente, esse ‘cafezinho’ é qualquer coisa infinita e torturante”.

           III. “O chapéu dele está ...”.

           As palavras acima destacadas expressam, respectivamente, circunstâncias de

      a) tempo, modo e lugar.

     b) tempo, intensidade e lugar.

     c) tempo, dúvida e lugar.

    d) modo, dúvida e afirmação.

   e) modo, intensidade e lugar.

06. No trecho “Ah! Fujamos assim, sem drama, sem tristeza, fujamos assim”, a recomendação do autor é entendida como

    a) uma crítica.

    b) uma repreensão.

   c) um conselho.

  d) um alerta.

  e) uma ordem.

07. Em “Quando vier a grande hora do nosso destino nós teremos saído há uns cinco minutos para tomar um café”, o conectivo em destaque pode ser substituído, sem alteração de sentido, por:

   a) Embora.

   b) Desde que.

   c) Mesmo que.

   d) Uma vez que.

   e) No momento em que.

 08. Em “...teremos saído há uns cinco minutos para tomar um café”, o trecho em destaque só não pode ser substituído, sem alteração de sentido, por:

   a) tendo em vista tomar café.

   b) conforme o horário de tomar café.

   c) com a intenção de tomar café.

   d) a fim de tomar café.

   e) com o objetivo de tomar café.

TEXTO: O MENINO - CHICO ANYSIO - COM GABARITO

 TEXTO: O MENINO

             Chico Anysio

 

Vou fazer um apelo. É o caso de um menino desaparecido. 

Ele tem 11 anos, mas parece menos; pesa 30 quilos, mas parece menos; é brasileiro, mas parece menos.

É um menino normal, ou seja: subnutrido, desses milhares de meninos que não pediram pra nascer; ao contrário: nasceram pra pedir.

Calado demais pra sua idade, sofrido demais pra sua idade, com idade demais pra sua idade. É, como a maioria, um desses meninos de 11 anos que ainda não tiveram infância.

Parece ser menor carente, mas, se é, não sabe disso. Nunca esteve na Febem, portanto, não teve tempo de aprender a ser criança-problema. Anda descalço por amor à bola.

Suas roupas são de segunda mão, seus livros são de segunda mão e tem a desconfiança de que a sua própria história alguém já viveu antes.

Do amor não correspondido pela professora, descobriu que viver dói. Viveu cada verso de "Romeu e Julieta", sem nunca ter lido a história.

Foi Dom Quixote sem precisar de Cervantes e sabe, por intuição, que o mundo pode ser um inferno ou uma badalação, dependendo se ele é visto pelo Nelson Rodrigues ou pelo Gilberto Braga.

De seu, tinha uma árvore, um estilingue zero quilômetro e um pássaro preto que cantava no dedo e dormia em seu quarto.

Tímido até a ousadia, seus silêncios gritavam nos cantos da casa e seus prantos eram goteiras no telhado de sua alma.

Trajava, na ocasião em que desapareceu, uns olhos pretos muito assustados e eu não digo isso pra ser original: é que a primeira coisa que chama a atenção no menino são os grandes olhos, desproporcionais ao tamanho do rosto.

Mas usava calças curtas de caroá, suspensórios de elástico, camisa branca e um estranho boné que, embora seguro pelas orelhas, teimava em tombar pro nariz.

Foi visto pela última vez com uma pipa na mão, mas é de todo improvável que a pipa o tenha empinado. Se bem que, sonhador do jeito que ele é, não duvido nada.

Sequestrado, não foi, porque é um menino que nasceu sem resgate.

Como vocês veem, é um menino comum, desses que desaparecem às dezenas todos os dias.

 Se alguém souber de alguma notícia, me procure, por favor, porque... ou eu encontro de novo esse menino que um dia eu fui, ou eu não sei o que vai ser de mim.

(Chico Anysio. Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/um-autorretrato-inedito-de-chico-anysio-4428439. Acesso em: 27/6/2014.)

http://comunicaoeexpresso.blogspot.com/2017/

 

01.    O gênero desse texto é

(A)    Conto.

(B)    Crônica.

(C)    Diário.

(D)    Autorretrato.

 

02.    Qual o vocábulo que expressa uma opinião?

(A)    “O apelo de um menino desaparecido.”

(B)    “Se toda criança tivesse infância, seria um adulto feliz.”

(C)    “Dom Quixote foi um sonhador do jeito que era.”

(D)    “Se souber de alguma notícia me procure.”

 

03.   O principal assunto do texto é

(A)    A pouca atenção que se dá a infância no Brasil.

(B)    O desaparecimento de crianças no Brasil.

(C)    A precariedade da educação dos filhos.

(D)    A pobreza que ainda rege na maior parte do Brasil.

   

 04.   Qual é o objetivo do texto?

(A)    Mostrar a falta que a infância faz na vida de uma criança.

(B)    O descaso da gestão pública em relação às crianças de rua.

(C)    A ausência da família na vida dos filhos.

(D)    A falta da afetividade no ambiente escolar.

 

 05.  Qual é o vocábulo que apresenta uma informalidade?

(A)    “... desses milhares de meninos que não pediram pra nascer,...”

(B)    “Parece ser menor carente, mas, se é, não sabe disso.”

(C)    ‘Viveu cada verso de "Romeu e Julieta", sem nunca ter lido a história.’

(D)    “Sequestrado, não foi, porque é um menino que nasceu sem resgate.”

CONTO: AMOR(FRAGMENTO) - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 CONTO:AMOR(FRAGMENTO)

             Clarice Lispector

  Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 19. Fragmento.

 Entendendo o texto

01.No trecho “... deformando o novo saco de tricô,...” (ℓ. 2), a palavra destacada tem o mesmo sentido do verbo

    A) amassar.

    B) enfeiar.

    C) estragar.

    D) sujar.

    E) transformar.

 02. Que retrata a narrativa do Conto?

       Retrata a vida de uma pessoa que experimenta no cotidiano uma epifania que a conduz à refletir sobre si mesma e sobre o mundo.

03. Dentro deste tipo textual há que narrador?

      A) narrador-personagem.

      B) narrador-observador.

      C) narrador-onisciente.

 04. É um conto com narração na terceira pessoa. O narrador tem acesso a quê?

       O narrador onisciente tem acesso a emoções, sentimentos e monólogos da protagonista.    

 05. Em que momento é considerada a “hora perigosa” para Ana?

        Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se.


CRÔNICA: DEUS SABE O QUE FAZ! (FRAGMENTO: O ALIENISTA) - MACHADO DE ASSIS

 CRÔNICA: DEUS SABE O QUE FAZ(FRAGMENTO: O ALIENISTA)

                       Machado de Assis

  A ilustre dama, ao fim de dois meses, achou-se a mais desgraçada das mulheres; caiu em profunda melancolia, ficou amarela, magra, comia pouco e suspirava a cada canto. Não ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reprove, porque respeitava nele o seu marido e senhor, mas padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe perguntasse o marido o que é que tinha, respondeu tristemente que nada; depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava tão viúva como dantes. E acrescentou:

– Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos...

Não acabou a frase; ou antes, acabou-a levantando os olhos ao teto – os olhos, que eram a sua feição mais insinuante – negros, grandes, lavados de uma luz úmida, como os da aurora. Quanto ao gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Simão Bacamarte a pediu em casamento. [...]

– Consinto que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro.

D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. [...] Ver o Rio de Janeiro, para ela, equivalia ao sonho do hebreu cativo. [...]

– Oh! mas o dinheiro que será preciso gastar! Suspirou D. Evarista sem convicção.

– Que importa? Temos ganho muito, disse o marido. Ainda ontem o escriturário prestou-me contas. Queres ver?

E levou-a aos livros. D. Evarista ficou deslumbrada. Era um via-láctea de algarismos.

E depois levou-a às arcas, onde estava o dinheiro. Deus! eram montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados, dobrões sobre dobrões; era a opulência. Enquanto ela comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista* fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido com a mais pérfida das alusões:

– Quem diria que meia dúzia de lunáticos...

* médico especialista em doenças mentais.

ASSIS, Machado de. Papéis avulsos. São Paulo: Escala Educacional, 2008. Fragmento.

 Entendendo o texto

01.O termo destacado em “Era uma via-láctea de algarismos.” (ℓ. 33) assume, nesse texto, o sentido de

A) beleza.

B) disposição.

C) luminosidade.

D) organização.

E) quantidade.

 02. Dona Evarista se sentia abandonava pelo marido e culpava quem?

     Culpava “essa meia dúzia de loucos”.

 03. O que aconteceu para que Dona Evarista mudasse de humor?

         O marido disse: – Consinto que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro.

04. Bacamarte revelou então a fortuna que havia acumulado com a renda da Casa Verde e Dona Evarista passou a agradecer “essa meia dúzia de loucos”, afirmando o quê?

  “Deus sabe o que faz”.