Crônica: Essas mães maravilhosas e
suas máquinas infantis
Carlos Eduardo Novaes
Flávia logo percebeu que as outras
moradoras do prédio, mães dos amiguinhos de seu filho, Paulinho, seis anos,
olhavam-na com um ar de superioridade. Não era para menos. Afinal o garoto até
aquela idade – imaginem – se limitava a brincar e ir à escola. Andava em total
descompasso com os outros meninos, que já desenvolveram múltiplas e variadas
atividades desde a mais tenra idade. O recorde, por sinal, pertencia ao garoto
Peter, filho de uma brasileira e um canadense, nascido em Nova Iorque. Peter
tão logo veio ao mundo entrou para um curso de amamentação (“Como tirar o leite
da mãe em 10 lições”). A mãe descobriu numa revista uma pesquisa feita por médicos
da Califórnia informando sobre a melhor técnica de mamar (chamada técnica de
Lindstorm, um psicanalista, autor da pesquisa, que para realizar seu trabalho
mamou até os 40 anos). A maneira da criança mamar, afirmam os doutores, vai
determinar suas neuroses na idade adulta.
Uma tarde, Flávia percebeu duas mães
cochichando sobre seu filho: que se pode esperar de um menino que aos seis anos
só brinca e vai à escola? Flávia começou a se sentir a última das mães. Pegou o
marido pelo braço dizendo que os dois precisavam ter uma conversa com o filho.
-- O que você gostaria de fazer,
Paulinho? – perguntou o pai dando uma de liberal que não costuma impor suas
vontades.
-- Brincar…
O pai fez uma expressão grave.
-- Você não acha que já passou um pouco
da idade, filho? A vida não é uma eterna brincadeira. Você precisa começar a
pensar no futuro. Pensar em coisas mais sérias, desenvolver outras atividades.
Você não gostaria de praticar algum esporte?
-- Compra um time de botão pra mim.
-- Botão não é esporte, filho.
-- Arco e flecha!
Os pais se entreolharam. Nenhum dos
meninos do prédio fazia o curso de arco e flecha. Paulinho seria o primeiro. Os
vizinhos certamente iriam julgá-lo uma criança anormal. Flávia deu um calção de
presente ao garoto e perguntou por que ele não fazia natação.
-- Tenho medo.
Se tinha medo, então era para a natação
mesmo que ele iria entrar. Os medos devem ser eliminados na infância. Paulinho
ainda quis argumentar. Sugeriu o alpinismo. Foi a vez de os pais temerem. Mas o
medo dos pais é outra história. Paulinho entrou para a natação. Não deu muitas
alegrias aos pais. Nas competições chegava sempre em último, e as mães dos
coleguinhas continuavam olhando Flávia com uma expressão superior. As mães,
vocês sabem, disputam entre elas um torneio surdo nas costas dos filhos. Flávia
passou a desconfiar de que seu filho era um ser inferior. Resolveu imitar as
outras mães, e além da natação colocou Paulinho na ginástica olímpica, cursinho
de artes, inglês, judô, francês, terapeuta, logopedista. Botou até aparelho nos
dentes do filho. Os amiguinhos da rua chamavam Paulinho para brincar depois do
colégio.
-- Não posso, tenho aula de hipismo.
-- Depois do hipismo?
-- Vou pro caratê.
-- E depois do caratê?
-- Faço sapateado.
-- Quando poderemos brincar?
-- Não sei, tenho que ver na agenda.
Paulinho andava com uma agenda Pombo
debaixo do braço. À noitinha chegava em casa mais cansado do que o pai em dia
de plantão. Nunca mais brincou. Tinha todos os brinquedos da moda, mas só para
mostrar aos amiguinhos do prédio. Paulinho dava um duro dos diabos. “Mas no
futuro ele saberá nos agradecer”, dizia o pai. O garoto estava sendo preparado
para ser um super-homem. E foi ficando adulto antes do tempo, como uma fruta
que amadurece de véspera. Um dia, Flávia flagrou o filho com uma gravata à
volta do pescoço tentando dar um laço. Quando fez sete anos disse ao pai que a
partir daquele dia queria receber a mesada em dólar. Aos oito abriu o berreiro
porque seus pais não lhe deram um cartão de crédito de presente. Com oito anos,
entre uma aula de xadrez e de sânscrito, Paulinho saiu de casa muito
compenetrado. Os amiguinhos da rua perguntaram onde ele ia:
-- Vou ao banco.
Caminhou um quarteirão até o banco,
sentou-se diante do gerente, pediu sugestões sobre aplicações e pagou a conta
de luz como um homenzinho. A façanha do garoto correu o prédio. A vizinhança
começou a achá-lo um gênio. As mães dos amiguinhos deixaram de olhar Flávia com
superioridade. Os pais, enfim, puderam sentir-se orgulhosos. “Estamos educando
o menino no caminho certo”, declarou o pai batendo no peito. Na festa de 11 anos,
que mais parecia um coquetel do corpo diplomático, um tio perguntou a Paulinho
o que ele queria ser quando crescesse.
-- Criança!
Paulinho cresceu. Cresceu fazendo
cursos e mais cursos. Abandonou a infância, entrou na adolescência, tornou-se
um jovem alto, forte, espadaúdo. Virou Paulão. Entrou para a faculdade,
formou-se em Economia. Os pais tinham sonhos de vê-lo na Presidência do Banco
Central. Casou com uma jornalista. Paulão respirou aliviado por sair debaixo
das asas da mães, que até às vésperas do casamento queria colocá-lo num curso
de preparação matrimonial. Na lua de mel, avisou à mulher que iria passar os
dias em casa dedicando-se à sua tese de mestrado. A mulher ia e vinha do
emprego e Paulão trancado no seu gabinete de estudos. Uma tarde o marido
esqueceu de passar a chave na porta. A mulher chegou, abriu e deu de cara com
Paulão sentado no tapete brincando com um trenzinho.
NOVAES,
Carlos Eduardo. A cadeira do dentista e outras crônicas. São Paulo: Ática,
1994. p. 15-7.
Fonte: Livro –
PORTUGUÊS: Linguagens – Willian R. Cereja/Thereza C. Magalhães – 7ª Série –
Atual Editora -1998 – p. 145-8.
Entendendo a crônica:
01 – A vida de Paulinho
altera-se profundamente quando seus pais resolvem que ele deve fazer cursos.
a)
O que os pais de Paulinho alegam ao tomar
essa decisão?
Alegam que Paulinho precisa pensar no futuro.
b)
Qual é o verdadeiro desejo de Paulinho?
O de apenas brincar.
c)
Considerando a idade do garoto, você acha esse
desejo normal ou anormal? Justifique.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: normal, é a idade que só pensa
em brincar.
02 – Há diferenças entre o
pai e a mãe de Paulinho quanto ao modo de lidar com o filho: um defende o modelo liberal de educação, e o outro,
mais ansioso, representa o modelo
autoritário. Dos dois:
a)
Qual é mais liberal? Por quê?
O pai é mais liberal, pois tenta inicialmente o diálogo com o filho.
b)
Qual é mais ansioso e autoritário? Por quê?
A mãe, que, pressionada pela competição entre as mães, toma a
iniciativa de dizer ao marido que ambos deviam conversar com o filho.
c)
De acordo com as decisões tomadas pelos pais,
qual o modelo de educação vitorioso?
O modelo da mãe, que não estava interessada em atender aos desejos
do filho.
03 – Você já sabe que a ironia é um recurso de expressão
que provoca uma quebra de expectativa, fazendo com que a frase ganhe um sentido contrário àquilo que se
disse.
a)
Por que o título é irônico?
É irônico porque chama as mães de “maravilhosas”; o esperado seria
chama-las de “terríveis”.
b)
Retire do primeiro parágrafo um trecho em que
tal recurso tenha sido empregado.
No trecho: “Não era para menos. Afinal o garoto até aquela idade –
imaginem – se limitava a brincar e ir à escola”, e na referência ao curso de
amamentação.
04 – Leia estas frases:
·
“As outras moradoras do prédio [...]
olhavam-na com um ar de superioridade”.
·
“Flávia começou a se sentir a última das
mães”.
·
“Os vizinhos certamente iriam julgá-lo uma
criança anormal”.
·
“Resolveu imitar as outras mães, e além da
natação colocou Paulinho na ginástica olímpica, cursinho de artes [...]”.
·
“Tinha todos os brinquedos da moda, mas só
para mostrar aos amiguinhos do prédio”.
Com base nessas frases,
responda:
a)
Como a mãe de Paulinho se sente diante das
outras mães, cujos filhos se destacam em diferentes cursos?
Sente-se inferiorizada.
b)
Quais são, então, as razões verdadeiras que
motivam os pais de Paulinho a tomarem a decisão de colocá-lo em diversos
cursos?
A competição entre as mães, a pressão social.
c)
Qual das frases abaixo confirma sua resposta
anterior?
·
“Pegou o marido pelo braço dizendo que os
dois precisavam ter uma conversa com o filho”.
·
“As mães, vocês sabem, disputam
entre elas um torneio surdo nas costas dos filhos”.
·
“ ‘Mas no futuro ele saberá nos agradecer’,
dizia o pai”.
05 – segundo o texto, dos 6
aos 8 anos, Paulinho fez diversos cursos, até que finalmente encontrou sua
vocação e começou a se destacar entre os demais garotos do prédio.
a)
Em que tipo de atividade o garoto começou a
se destacar?
Em atividades relacionadas a negócios (economia, dinheiro,
aplicações).
b)
Essa “vocação” precoce está relacionada à sua
futura profissão? Justifique.
Sim, porque quando adulto ele se tornou economista.
c)
Quais as consequências dessas intensas
atividades no desenvolvimento do garoto? Justifique sua resposta com uma frase
do texto.
Ele perde a infância e amadurece precocemente: “E foi ficando adulto
antes do tempo, como uma fruta que amadurece de véspera”.
06 – Na festa de 11 anos de
Paulinho, quando lhe perguntam o que quer ser quando crescer, ele responde:
“Criança!”. O garoto cresce, vira Paulão e se casa.
a)
Considerando a relação que os pais tiveram
com o filho durante seu crescimento, o que significa o casamento para Paulão?
Significa a libertação do domínio dos pais, principalmente do
domínio da mãe.
b)
Pelo desfecho da história, Paulão realiza o
desejo que teve aos 11 anos?
Sim, ao afastar-se da mãe, conseguiu finalmente ser criança de novo.
c)
Segundo o texto, “Paulinho dava um duro dos
diabos” nos seus cursos. “‘Mas no futuro ele saberá nos agradecer’, dizia o
pai”. Na sua opinião, Paulão, agora que é adulto, está agradecido aos pais?
Resposta pessoal do aluno.
07 – Das afirmativas
seguintes, apenas uma apresenta erro
quanto às ideias principais do texto. Identifique-a e explique por que está
errada.
a)
O texto põe em discussão determinado modelo
de educação, que não respeita as fases naturais do desenvolvimento da criança.
b)
A educação é vista pelos pais de Paulinho
como simples objeto de consumo, em que o mais importante não é a criança, mas o
jogo social.
c)
O texto deseja mostrar os
sacrifícios a que alguém tem de se submeter desde a infância para vencer na
vida.
d)
O texto demonstra que o consumismo não se limita a objetos – carros, detergentes,
geladeiras, etc. –, mas se estende também a comportamentos, criando modismos, e
chega até à educação.
e)
O texto critica a competição social, que se reflete também na educação dos filhos.