terça-feira, 23 de julho de 2019

CONTO: LATRICÉRIO - STANISLAW PONTE PRETA - COM QUESTÕES GABARITADAS

CONTO: Latricério
                   (Stanislaw Ponte Preta)

Tinha um linguajar difícil, o Latricério. Já de nome era ruinzinho, que Latricério não é lá nomenclatura muito desejada. E era aí que começavam os seus erros.
Foi porteiro lá do prédio durante muito tempo. Era prestativo e bom sujeito, mas sempre com o grave defeito de pensar que sabia e entendia de tudo. Aliás, acabou despedido por isso mesmo. Um dia enguiçou a descarga do vaso sanitário de um apartamento e ele achou que sabia endireitar. O síndico do prédio já ia chamar um bombeiro, quando Latricério apareceu dizendo que deixassem por sua conta.
Dizem que o dono do banheiro protestou, na lembrança talvez de outros malfadados consertos feitos pelo serviçal porteiro. Mas o síndico acalmou-o com esta desculpa excelente:
— Deixe ele consertar, afinal são quase xarás e lá se entendem.
Dono da permissão, o nosso amigo — até hoje ninguém sabe explicar por quê — fez um rápido exame no aparelho em pane e desceu aos fundos do edifício, avisando antes que o defeito era “nos cano de orige”.
Lá embaixo, começou a mexer na caixa do gás e, às tantas, quase provoca uma tremenda explosão. Passado o susto e a certeza de mais esse desserviço, a paciência do síndico atingiu o seu limite máximo e o porteiro foi despedido.
Latricério arrumou sua trouxa e partiu para nunca mais, deixando tristezas para duas pessoas: para a empregada do 801, que era sua namorada, e para mim, que via nele uma grande personagem.
Lembro-me que, mesmo tendo sido, por diversas vezes, vítima de suas habilidades, lamentei o ocorrido, dando todo o meu apoio ao Latricério e afirmando-lhe que fora precipitação do síndico. Na hora da despedida, passei-lhe às mãos uma estampa do American Bank Note no valor de quinhentos cruzeiros, oferecendo ainda, como prêmio de consolação, uma horrenda gravata, cheia de coqueiros dourados, virgem de uso, pois nela não tocara desde o meu aniversário, dia em que o Bill — o americano do 602 — a trouxera como lembrança da data.
Mas, como ficou dito acima, Latricério tinha um linguajar difícil, e é preciso explicar por quê. Falava tudo errado, misturando palavras, trocando-lhes o sentido e empregando os mais estranhos termos para definir as coisas mais elementares. Afora as expressões atribuídas a todos os “malfalantes”, como “compromisso de cafiaspirina”, “vento encarnado”, “libras estrelinhas”, etc., tinha erros só seus.
No dia em que estiveram lá no prédio, por exemplo, uns avaliadores da firma a quem o proprietário ia hipotecar o imóvel, o porteiro, depois de acompanhá-los na vistoria, veio contar a novidade:
— Magine, doutor! Eles viero avalsá as impoteca!
É claro que, no princípio, não foi fácil compreender as coisas que ele dizia mas com o tempo, acabei me acostumando. Por isso não estranhei quando os ladrões entraram no apartamento de Dona Vera, então sob sua guarda, e ele veio me dizer, intrigado:
— Não compreendo como eles entraro. Pois as portas tava tudo “aritmeticamente” fechadas.
Tentar emendar-lhe os erros era em pura perda. O melhor era deixar como estava. Com sua maneira de falar, afinal, conseguira tornar-se uma das figuras mais populares do quarteirão e eu, longe de corrigir-lhe as besteiras, às vezes falava como ele até, para melhor me fazer entender.
Foi assim no dia em que, com a devida licença do proprietário, mandei derrubar uma parede e inaugurei uma nova janela, com jardineira por fora, onde pretendia plantar uns gerânios. Estava eu a admirar a obra, quando surgiu o Latricério para louvá-la.
— Ainda não está completa — disse eu — falta colocar umas persianas pelo lado de fora.
Ele deu logo o seu palpite:
— Não adianta, doutor. Aí bate muito sol e vai morrê tudo.
Percebi que jamais soubera o que vinha a ser persiana e tratei de explicar à sua moda:
— Não diga tolice, persiana é um negócio parecido com venezuela.
— Ah, bem, venezuela — repetiu.
E acrescentou:
— Pensei que fosse “arguma pranta”.

PRETA, Stanislaw Ponte. Dois amigos e um chato. São Paulo: Moderna, 1986. p. 44-6. (Veredas).
Fonte: Livro – Linguagens em Sintonia – Língua Portuguesa – Ed. Scipione- 6º ano do Ensino Fundamental.

ESTUDO DO CONTO

1)   Que tipo de narrador há nesse texto?
Narrador-personagem.

2)   De acordo com o início do texto, por onde começavam os erros do porteiro?
Pelo nome que tinha: Latricério.

3)   Apesar de bonzinho e prestativo, qual era o grande defeito de Latricério?
O de pensar que entendia de tudo.

4)   Por que razão foi despedido? O que fez que acabou fazendo o síndico perder a paciência e despedi-lo?
Justamente por achar que entendia de tudo. Ao tentar consertar um problema hidráulico de um dos apartamentos, foi mexer no gás e quase explodiu o prédio.

5)   Segundo o texto, Latricério, ao partir, deixou saudade para duas pessoas. Quem eram elas?
Uma pessoa era a namorada dele e a outra era o personagem-narrador.

6)   Em dado momento, o personagem-narrador volta a afirmar que o Latricério tinha um linguajar difícil. Por quê?
Porque ele falava tudo errado, misturava as palavras, trocava os sentidos e empregava termos incomuns para falar sobre coisas simples.

7)   Qual era a atitude do personagem-narrador em relação aos erros de linguagem de Latricério?
Não acreditava que Latricério pudesse expressar-se de outra forma. Acostumou-se ao seu jeito de falar e, às vezes, até falava de modo parecido para poder se comunicar melhor com o porteiro.

8)   O que fez o personagem-narrador para tentar explicar a Latricério o que era uma persiana?
Ao tentar explicar, comentou que persiana era algo semelhante com uma venezuela, (fazendo brincadeira com veneziana) para expressar-se de maneira parecida com a do porteiro, que declarou achar que o termo se referia a uma planta.

9)   Ao longo do texto, quais os níveis de linguagem utilizados pelo porteiro e pelo narrador-personagem?
O porteiro usava uma linguagem coloquial, ou informal, e o narrador, uma linguagem formal.



CARTUM: LINGUAGEM VERBAL - COM QUESTÕES GABARITADAS


Leia este cartum, de Quino:


1)   O cartum é composto de oito cenas ou situações. Observe as três primeiras cenas.
a)   Na 3ª cena, os dois homens de terno preto se comunicam. Que tipo de linguagem eles empregam para se comunicar: linguagem verbal ou não verbal?
Linguagem verbal, embora não se pode saber o que as personagens disseram. Contudo, a presença de balões de fala indica a ocorrência de comunicação oral e, portanto, de uso da linguagem verbal.

b)   Em vez de palavras, os balões de fala apresentam linhas diferentes: um tem linhas verticais, e o outro, linhas horizontais. O que essa diferença representa quanto às ideias dos interlocutores?
A diferença nas linhas dá a entender que os interlocutores pensam de modo diferente, que as ideias deles não combinam.

c)   O homem de óculos é acompanhado de um grupo de outros homens. Levante hipóteses: Que relação existe entre esse grupo e o homem de óculos?
O grupo concorda com as ideias do homem de óculos; esses homens são seus seguidores.

2)   Observe as cenas 4,5,6 e 7.
a)   O que está acontecendo com o balão de fala do homem de óculos?
Ele está sendo engolido pelo balão de fala do outro homem.

b)   O que isso significa quanto às ideias que os dois homens estão discutindo? Marque a melhor resposta.
·        As ideias do homem de óculos são mais convincentes que as do outro.
·        As ideias do homem sem óculos são mais convincentes que as do outro.

c)   Por que os homens do grupo que acompanhava o homem de óculos passaram para o outro lado?
Porque foram convencidos pelas ideias do homem sem óculos.

3)   Na 2ª cena, o homem de óculos aponta o dedo em riste. Na 3ª cena, o homem sem óculos faz um gesto com o braço direito. Na 7ª cena, é o homem sem óculos que aponta o dedo em riste. O que significam esses gestos, normalmente?
De alguém que fala ameaçando o outro.

4)   Observe a expressão facial dos dois homens de terno preto na última cena.
a)   Como se sente o homem de óculos?
Arrasado, destruído, desanimado.

b)   E o homem sem óculos?
Sente-se vitorioso, orgulhoso, feliz.

5)   Como você aprendeu, a linguagem é um processo comunicativo que permite a interação entre os interlocutores, podendo, muitas vezes, levar à alteração de comportamento dos participantes. Na sua opinião, o cartum é um exemplo disso? Por quê?
Resposta pessoal.
Sugestão: Sim, pois o homem de óculos, antes tão seguro, perdeu a confiança diante da fala do outro. Além disso, os outros homens também passaram a pensar de modo diferente por causa dos argumentos e das ideias que ouviram.

CARTUM - LINGUAGEM VERBAL - COM GABARITO


Leia o cartum a seguir, de Santiago, e responda às questões 1 e 2.


(Tinta fresca. Porto Alegre: L&PM, 2004. p.16)

1)   O balão de fala do cartum pressupõe uma interação pela linguagem. Responda:
a)   Que tipo de linguagem foi utilizado nessa interação?
Linguagem verbal.

b)   Quem é o locutor nessa interação? E o locutário?
Locutor:comissário(a) de bordo; locutário: passageiros da classe super-hipereconômica.

c)   Em que posição da aeronave fica a “classe super-hipereconômica”?
Fora do avião.

d)   Explique: Quais são os “motivos óbvios” pelos quais o lanche não será servido?
O lanche voaria.

2)   Considere agora o cartum como um todo. Ele é um texto que também permite a interação pela linguagem. Responda:
a)   Quem são os interlocutores (locutor e locutário) nessa interação?
O locutor é o cartunista, Santiago, o locutário são os leitores.

b)   Que tipo de linguagem foi utilizado nessa interação?
Linguagem mista.

domingo, 21 de julho de 2019

CONTO: A PRIMEIRA NOITE DE LIBERDADE - CRISTOVÃO TEZZA - COM GABARITO

CONTO: A PRIMEIRA NOITE DE LIBERDADE

                Cristovão Tezza

        Fui levado pela velha até o sótão; o excesso de gentileza era a evidência de que me enganavam. Docilmente me deixei levar; mãos nas minhas costas, ela me conduzia balbuciando consolos. Não ousei fazer perguntas. De qualquer modo, me responderiam com mentiras. Fingindo acreditar no jogo, planejava descobrir tudo por conta própria. Atrás de nós vinha o velho, sorrindo falso. No sótão a velha me mostrou a cama, os lençóis e um imaculado pijama de florzinhas. Quando estivesse pronto, poderia apagar a luz, o interruptor ao lado.
       - Você tem medo do escuro?
       - Não senhora.
       Ela passou a mão na minha cabeça, desajeitada e carinhosa, e saiu fechando a porta. Ouvi passos na escada, arrastar de chinelos, cochichos: os velhos conspiravam. Deitei sem apagar a luz nem trocar de roupa. Fiquei olhando a lâmpada pendurada no teto, telhas à mostra, e aquelas carcaças de móveis antigos e caixotes empoeirados. No entanto, a cama primorosamente limpa, no meio da velharia, só para mim. Não atinava o sentido: o que teria levado os dois velhos (meus inimigos com tantos vidros quebrados em guerras de funda) a me recolherem logo à porta de casa e, ao preço de algumas balas de hortelã, um mingau de aveia e bolachas salgadas, prenderem-me no sótão. Tão inalcançável que nem perderiam tempo me explicando. Quando me subornavam em frente de casa, meu irmão mais velho, de longe, me olhava enviesado e fingia não dar importância. Devia saber de tudo. Tive a impressão de que a mulher com o nariz achatado na vidraça do quarto do meu pai era minha mãe, e olhava também para mim. Talvez. A casa estava escura e cheia de gente. Aceitei as regras e me deixei levar pelos vizinhos; por onde eu passava, os outros me olhavam discretos e respeitosos, como a um príncipe destronado. Aquilo me agradou - por alguns minutos centro das atenções - e passei a mastigar as balas de hortelã fazendo barulho com a boca e respingando saliva, para irritar, mas eu estava imunizado por um respeito sobrenatural. Em seguida me assustei, pressentindo fragilidade na minha posição; era falsa. No fim de tudo por certo eu sairia perdendo.
       Agora estava no sótão. Os olhos bem abertos, não queria dormir sem deslindar o mistério. Como nada me disseram, era eu quem estipulava as regras. Esperava os velhos dormirem; então desceria a escada e voltaria para casa. Foco de luz nos olhos, senti que ia chorar, e chorei, mansinho, com medo de acordar os velhos. Mais calmo - silêncio absoluto, o mundo parado à minha espera - e convencido do meu direito de fazer o que bem entendesse até que a Ordem retornasse, desci a escada, abri a porta da rua e pulei o muro do quintal.
        A casa que até então tinha sido minha estava cheia de gente, nas vidraças, nas portas, nas janelas do segundo andar, ninguém se afastando ou se movendo muito, mal erguendo os braços, cochichando, murmurando, sombras vagamente destacadas nas poucas luzes. Senti medo. Pensei em fantasmas, em céu e inferno, em padres. Diziam: se não comer tudo a bruxa vem ou a polícia pega. Era a Morte (um esqueleto debaixo de um lençol) que estava lá em casa. As coisas se esclareciam: talvez o mundo tivesse acabado. O medo cresceu e resolvi me afastar: se me pegassem de novo me levariam ao sótão, já sem nenhuma gentileza.
       Nos fundos da casa, atrás do galpão, ouvi uma gritaria esganiçada de galinhas. Corri para lá no escuro. Vultos roubavam galinhas. Com uma vaga indignação - por que justo naquela noite? - me aproximei para expulsá-los, mas a poucos metros o medo me paralisou: a Ordem estava ao contrário. Alguém cochichou:
      - O filho do velho!
       Uma sombra grande ameaçou me jogar uma pedra; outra sombra, menor, achou graça. Aquilo não tinha lógica. Corri para me esconder atrás da macieira, ainda ouvindo as risadas e as galinhas. Depois voltou o silêncio e o quintal vazio. Precisava encontrar meu pai para lhe dizer o que estava acontecendo (o que me deu um surto de importância pela gravidade do relato) - mas se me vissem em casa seria devolvido ao sótão. Pensei no meu próprio quarto, possivelmente tomado por uma multidão de vultos. Controlei a vontade de chorar e fiquei quieto, pensando em nada. Súbito:
       - Psss...
        E uma risadinha. Brincavam comigo. Uma pequena sombra se moveu nas folhagens e correu. Silêncio. E o chamado de outro lugar:
        - Psss...
        Pensei em fantasmas, mas o medo enfraquecia. Novas risadinhas, de criança. Comecei a rir, inseguro:
       - Quem é?
       Fui à outra arvore e resolvi me esconder também. Nenhum ruído. Pensei ver alguma coisa adiante: sim, uma criança. Corri para lá, não havia nada. De repente duas mãos nos meus olhos:
       - Sou eu, bobo! Adivinha!
       - Ana?!
       Sentamo-nos na grama. Era a vizinha da frente, mesma idade que eu. Misteriosa, ela aproximou a cabeça, mãos em concha na minha orelha; talvez fosse um segredo. Cochichou:
      - Deixa eu fazer uma coisa?
      - Deixo.
      Ela ficou respirando bem no meu ouvido e depois passou a língua devagarinho e eu me arrepiei. Rimos.
      - Agora é a tua vez.
      Obedeci. Ela fez uma careta e sacudiu a cabeça. Coisas vagamente proibidas, mas também aquilo não tinha graça.
      - O que você está fazendo aqui?
      - Nada. Vim brincar. Não tem ninguém em casa. Estão todos aí, na festa.
      - Já é de noite. Se descobrem...
      - Que nada - e fez um muxoxo de pouco caso. - Pouco me importa!
       Ficamos um tempo em silêncio. Puxei assunto, com medo de que ela fosse embora.
      - O que houve aí em casa, cheio de gente?
      - Não sei bem. Acho que morreu o teu pai. Era o que estavam dizendo.
     - Ah.
     Eu olhava para o telhado da casa.
     - Meu pai?
     - Acho que é. Não sei bem.
     Tentava me lembrar: no dia em que minha vó morreu a madrinha me presenteou com suspiros de açúcar. Tomei uns dois copos d´água antes de dormir. Era como se não houvesse nada:
      - Será que o meu pai está aí também? Vamos lá?
      Ela se animou:
      - Eu entro pela frente e você pelos fundos! Quem encontrar o outro antes ganha!
       Concordei. Ela saiu correndo e desapareceu. Fiquei parado.     Escondiam meu pai de mim; por isso me levaram ao sótão, me deram balas de hortelã. Tinha uma certa lógica. Momentaneamente tranquilo, corri até os fundos e entrei em casa pela cozinha. Uma multidão falando baixo. Espremido na parede, fui avançando de cabeça baixa; a qualquer momento alguém poderia me pegar e me devolver ao sótão. Ouvi uma voz:
         - Esse menino não é filho dele?
           Mas eu desapareci adiante. Tentei me concentrar no jogo, procurando a Aninha. Na sala não estava. Só aquele amontoado de pernas, uma zoeira nos ouvidos. Corri até a porta do quarto do meu pai, como quem tem uma ideia. Sentada na cama, minha mãe chorava, rodeada de velhas atenciosas e de xícaras de café. Aquilo me perturbou: vontade de chorar também, a garganta apertada. Era a Morte, o mundo tinha acabado, os homens de preto, as bruxas, a minha mãe estava presa. Também ali não encontrei meu pai. Dei dois passos atrás e entrevi o vulto da Aninha na sala maior, e o plano de surpreendê-la me distraiu. Bastaria me esconder debaixo da mesa, onde estava um caixão com frisos de prata e ouro, velas, castiçais, caras compungidas - uma missa. Fui até lá, surpreso com a minha liberdade: os adultos me evitavam, abriam passagem com uma consideração esquisita. Sob a mesa, um calor abafado e aquele cheiro enjoado de vela queimada. Meus olhos enevoaram-se.
       - Te peguei!
      - Psss!...
       Ali não era permitido gritar, acabariam nos expulsando. Aninha tapou a boca com as duas mãos, escondendo um riso escandaloso. E sussurrou entre os dedos, vitoriosa:
     - Te peguei de novo!
     Eu me senti enganado: ah, muita confusão, assim não dava para brincar direito. Mudei de assunto:
    - Você viu meu pai?
Ela fez que não. Abanou o braço, careta no rosto:
    - Muita fumaça aqui. Vamos embora.
       Saímos. Ela queria continuar brincando, mas eu perdi a vontade.
       - Vamos pra calçada, Aninha. Meu pai deve chegar logo. - Tentei animá-la com o novo jogo: - Vamos procurar?
      Ela concordou. Descemos a rua, uma sensação diferente. Nós sabíamos que aquilo não era bem uma brincadeira. Alguém andando na sombra:
      - Não é ele?
      Eu demorava para responder, fingindo dúvida.
      - Não é não. - Um medo de que ela desanimasse: - Mas logo a gente acha!
      Prosseguimos em silêncio. Num momento (eu já esperava), Aninha me puxou o braço:
      - Eu vou voltar. É tarde. Acho que o teu pai não vem. - Ela não queria me magoar: - Amanhã a gente brinca mais.
      Sentei na calçada, um pouco confuso.
      - Está bem, Aninha.
       Ela se foi. Eu não tinha pressa; até achar o meu pai, estava livre. Eu podia fazer o que quisesse. Depois de um tempo perambulando pelas ruas, comecei a chorar. Quando de novo entrei em casa, havia pouca gente e a sala estava mais escura. Puxei uma cadeira até a mesa, subi nela e descobri meu pai deitado com as mãos cruzadas no peito. Estendi a mão para tocá-lo, mas não toquei. Apoiado na borda do caixão eu olhava para o meu pai, que não se movia, não respirava, não olhava para nada. Alguém me tirou dali mas não me levou ao sótão; beijou minha cabeça e me largou. Fiquei eu e a Morte.
     TEZZA, Cristovão. A primeira noite de liberdade. Conto publicado pela Fundação Cultural de Curitiba,1994 Editora Ócios do Ofício. Coleção Buquinista.
Edição artesanal de 100 exemplares, com ilustrações de Poty. Curitiba, 1994. 
Livro: Português: língua e cultura – Língua Portuguesa – Ensino Médio.- Vol.1 – FARACO, Carlos Alberto
ESTUDO DO TEXTO

1)   Um vetor fundamental de qualquer narrativa é o suspense, o mistério. Ficamos ligados no seu desenrolar pela curiosidade de saber o que aconteceu ou como tudo vai terminar.
a)   Como se cria o mistério neste conto?
O narrador vai revelando o fato (a morte do pai) de modo gradativo.

b)   Em que momento da narrativa você desconfiou ou percebeu do que se tratava?
Resposta pessoal.

2)   No desenrolar do enredo do conto, há dois planos que se entrecruzam: o mundo dos adultos (bastante indistinto na perspectiva do menino), no interior do qual vão se dando as ações infantis (que estão no centro da narrativa).
a)   Que contraste o conto põe em evidência entre estes dois planos?
A inocência da criança diante do evento da morte.    
        
3)   Quais são as personagens deste conto?
O narrador, a Aninha, o casal de velhos, a mãe, o irmão mais velho do narrador, os que roubavam galinhas, as pessoas que estavam no velório.

4)   Classifique-as pelo grau de sua importância no enredo (protagonista, coadjuvante, secundárias).
Protagonista – o narrador
Coadjuvante – Aninha
Secundários – os demais personagens.

5)   Identifique os espaços e cada um desses o estado emocional do menino.
Rua: da porta de casa à casa dos vizinhos: satisfação, depois fragilidade;
Casa dos vizinhos: dúvida e medo;
Fundos da casa: coragem, depois medo e, com a chegada de Aninha, tranquilidade;
Dentro da casa: tristeza/perturbação;
De novo na rua: dúvida, tristeza (choro);
Na sala: desconsolo/solidão.

6)   Qual é a função narrativa desse rápido flashback no conto?
A função do flashback é situar o enredo.

TEXTO: BOBAGENS - SÍRIO POSSENTI - COM QUESTÕES GABARITADAS

TEXTO: BOBAGENS
  
                    Sírio Possenti
       Vamos, agora, ler um texto escrito por um linguista brasileiro e voltado para o público em geral, em que ele discute uma afirmação sobre línguas africanas que ouviu do apresentador Jô Soares na televisão:

        Um programa como o de Jô Soares não é o melhor exemplo para ser estudado por quem deseja descobrir como funciona uma entrevista. Um dos lugares comuns sobre a questão diz que um bom entrevistador é o que faz o entrevistado falar até mesmo o que ele não desejaria. O programa do Jô não é o melhor exemplo pela simples razão de que o entrevistado dele é sempre uma escada: o que diz serve para uma tirada do entrevistador. Dependendo do tema e do entrevistado, a coisa funciona bem. Às vezes, no entanto, a entrevista desanda. O que se explica facilmente: existem temas em relação aos quais, mesmo lendo bastante, da cozinha ao teatro, Jô não tem a mínima habilitação.
       Um dia desses os entrevistados eram Martinho da Vila e o Presidente de uma Associação de Magistrados. Mesmo cansado, pensei em assistir. O Martinho é um grande papo, e a questão do Judiciário está pegando fogo.
      A conversa com Martinho ia bem, até que Jô perguntou sobre seu conhecimento de línguas africanas, já que de alguns discos participam músicos angolanos cantando músicas nativas. Martinho disse o óbvio: que, tendo estado na África várias vezes, mesmo em temporadas curtas, aprendeu um pouco. Não conhece as línguas, mas se vira (e acrescentou que o mesmo ocorre em relação ao francês, o que mostra que ele é normal). Mas Jô o interrompeu para comentar que se pode aprender as línguas africanas mesmo em pequenas temporadas, porque elas têm poucas palavras. E botou para funcionar suas leituras de almanaque. Informou que em suaíli as palavras querem dizer muitas coisas. E deu um exemplo, uma certa palavra que pode ser empregada em várias situações. Decidi dormir, perdi a entrevista com o magistrado. Achei que não suportaria uma lição de direito constitucional do mesmo nível.
       Disse que Jô acionou suas leituras de almanaque, mas a coisa é mais grave do que isso: trata-se do grosseiro preconceito linguístico e cultural. Se a gente abre um dicionário – Jô aparentemente abre, tem até vários em formato eletrônico –, a coisa mais interessante que se pode descobrir é que todas as palavras têm muitos sentidos, que todas as línguas são como o suaíli ou o suaíli é como todas as línguas.
        Pode-se fazer isso aleatoriamente. Cito um exemplo do português e um do inglês. Tome o verbo “ligar” e está lá: apertar, prender, unir, fazer aderir, estabelecer relações, unir por vínculos morais e afetivos, prestar atenção, acionar o motor, fazer girar o disco do telefone, unir em combinação química (ver o famoso Aurélio, que registra ainda outros sentidos). Vejam agora a palavra inglesa “pack”: para começar, pode ser verbo ou nome. Alguns sentidos: coleção de coisas; pacote contendo um certo número de coisas semelhantes; maneira pela qual alguma coisa é empacotada; grande quantidade; grupo de animais que vivem juntos; soma total de algo, como frutas ou vegetais, processadas ao mesmo tempo; comprimir na forma de massa compacta; ir embora rapidamente, etc. (MacMillan Contemporary Dictionary).
        A experiência nossa de cada dia mostra que qualquer palavra tem muitos sentidos. Que esse não é um “problema” de línguas faladas por povos considerados inferiores.
        Com suas intervenções no campo, Jô confirma uma tese corrente e, por azar, verdadeira: as línguas ainda são o espaço em que vigoram os mais grosseiros preconceitos.

POSSENTI, Sírio. Mal comportadas línguas. Curitiba: Criar, 2000, p.21-23.
Fonte: Livro: Português: língua e cultura. FARACO, Carlos Alberto. Vol.1. Editorial BASE

ESTUDO DO TEXTO

1)   Qual é o assunto principal do texto?
O assunto principal é a desinformação do apresentador de tevê sobre como as línguas funcionam (as bobagens que ele disse sobre as línguas africanas – o que, antes de tudo, revela um preconceito: o de que os africanos são ‘primitivos’).

2)   Como o autor rebate a afirmação de Jô Soares sobre as línguas africanas?
Ele rebate a afirmação de Jô Soares sobre as línguas africanas mostrando que em qualquer língua todas as palavras têm muitos sentidos, ou seja, “Todas as línguas são como o suaíli ou o suaíli é como todas as línguas” (4º parágrafo) e cita exemplos do português e do inglês para sustentar seu argumento (5º parágrafo).

3)   Por que tal afirmação do apresentador é um grosseiro preconceito linguístico e cultural?
É grosseiro preconceito porque parte do pressuposto de que as línguas africanas são inferiores, são faladas por sociedades primitivas, rudimentares.

4)   Por que o autor desistiu de ver a segunda entrevista naquela noite?
Considerou que, se o segundo tema fosse tratado do mesmo modo que o tema das línguas, seria insuportável (“Achei que não suportaria uma lição de direito constitucional do mesmo nível” – 3º parágrafo).

5)   Que conclusão tira o autor do episódio?
Ele conclui que, infelizmente, as línguas são ainda o espaço em que vigoram os mais grosseiros preconceitos.

6)   Não perca a boa organização do texto de Possenti, resumida abaixo:
·        1º parágrafo: introdução do texto (o autor apresenta um juízo geral sobre o programa de entrevista de Jô Soares);
·        2º parágrafo: o autor se refere a um programa específico (que teria duas entrevistas);
·        3º parágrafo: comenta a entrevista com Martinho da Vila, em que Jô Soares faz sua absurda afirmação (note que este parágrafo termina com o autor nos informando que desistiu de assistir à segunda entrevista mencionada no parágrafo anterior);
·        4º parágrafo: o autor faz um comentário geral sobre a afirmação de Jô Soares;
·   5º parágrafo: usa exemplos do português e do inglês para sustentar seu comentário;
·        6º parágrafo resume a exemplificação;
·    7º parágrafo: conclui com uma observação geral (“as línguas ainda são o espaço em que vigoram os mais grosseiros preconceitos”).

     Descrição da estrutura do texto: dê destaque a este resumo para que os alunos desenvolvam progressivamente a percepção de que os textos são organizados, são, portanto, planejados.



sexta-feira, 19 de julho de 2019

CRÔNICA: A CASA DA MINHA AVÓ - DANUZA LEÃO - COM GABARITO

Crônica: A casa da minha avó
                 Danuza Leão


       Era um sobrado; na parte de baixo, o armazém do meu avô, onde se vendia um pouco de tudo. Tecidos, renda, sianinha, botões, fumo de rolo, açúcar, feijão e grãos de um modo geral -não em pacotes mas em sacos grandes, que ficavam no chão. No andar de cima, onde morava a família, era a casa de minha avó -nunca do meu avô.
      No armazém havia um balcão onde os mais chegados iam toda tarde conversar, com direito a um copinho de cachaça -um só. Meu avô, italiano, se vestia de terno, gravata e colete, e em casa se concedia o direito de tirar o paletó mas sempre de gravata e colete.
      Em cima, dando para a praça, havia uma sala de visitas que só era aberta em ocasiões muito especiais -que nunca aconteciam-, com sofá, cadeiras estofadas e um piano. Mais para dentro uma grande sala de jantar onde todos almoçavam e jantavam à mesma hora -11h30 e 19h; em cada quarto, três ou quatro camas, e banheiro era um só, para os avós, 12 filhos e os netos que lá passavam grandes temporadas.
       Minhas oito tias só tinham um objetivo na vida: arranjar um marido, e bastava que ele fosse um rapaz bom e trabalhador. Das oito, só uma trabalhava: era professora, e ia a cavalo, todos os dias, dar aulas. Foi a única que ficou solteira. As outras se casaram e para suas filhas só havia um objetivo na vida: casar, ter filhos. E assim corria a vida.
       Nos fundos da casa, havia uma varanda virada para o rio; ao lado, a cozinha com uma janela de onde se tinha a vista mais bonita da casa; por essa janela a empregada jogava o lixo. A palavra ecologia ainda não existia e da varanda nós, crianças, ficávamos vendo as cascas de laranja e banana sendo levadas pela correnteza.
        A grande aventura era dormir no chão duro. Os menores imploravam para ter o privilégio de dormir com um lençol em cima dos tacos e um travesseiro. Era essa a grande farra.
        Uma vez por semana vinha um homem lavar o chão da casa; ele jogava baldes de água, passava sabão, depois enxaguava, tirava o excesso com um rodo e secava com um pano. Só a sala da frente era encerada e o brilho dado na mão, com uma flanela.      Quando o trabalho estava pronto ficava um cheiro de casa de gente honesta, de gente direita. Onde foram parar esses cheiros?
         As comidas eram de interior: galinha quase todo dia e, para dar uma corzinha ao refogado, colorau. Os legumes eram de roça: abobrinha, jiló, couve, repolho, chuchu. Às vezes uma tia perguntava: "Você quer um ovo frito?" Esse privilégio só acontecia às vezes e só para os netos que estavam de visita.
As sobremesas eram doce de banana em rodelas e de mamão verde. Esse meu lado da família (da minha mãe) não era muito de comer. Lá pelas 21h tinha um lanche modesto: café com leite, pão e manteiga; aos domingos havia biscoitos, e cada uma das crianças tinha o direito de fazer um do feitio que quisesse, que era sempre o mesmo: uma lagartixa e no lugar dos olhos, dois feijões.
        Uma ou duas vezes por ano o rio subia sem violência, tranquilamente, e inundava a cidade; as pessoas saiam de casa de bote para fazer compras ou uma visita. Uma enchente era melhor do que qualquer coisa, e as pessoas tiravam retratos nos botes.
         Havia muitas visitas a tias, avós e primas longínquas. Os laços familiares eram cultivados com cuidado, mas o melhor de tudo era quando as tias moravam do outro lado do rio, porque aí a gente atravessava a ponte o que era, sempre, uma emoção. E ainda havia a ponte de ferro por onde passava o trem, que era um perigo. O sonho de todos nós, crianças, era atravessar essa ponte pulando sobre os dormentes, e a minha falta de coragem para desobedecer e atravessar a ponte de ferro é uma frustração até hoje não superada. Outra: nunca ter tomado um banho no rio.
São belas as lembranças de quem passou parte da infância em uma cidade do interior com um rio e uma ponte-duas, aliás.
           E melhor ainda é lembrar.
LEÃO, Danuza. Folha de S.Paulo, 21 jul. 2002. Caderno C, p.2.
Livro: Português: língua e cultura – FARACO, Carlos Alberto. V.1.

Estudo do texto
1.   A autora descreve a casa da sua avó e relata algumas de suas rotinas. E dá destaque àquilo que era mais marcante para as crianças. Qual era “a maior aventura”? O que era “o melhor de tudo”? E qual era “o sonho de todas as crianças que frequentavam a casa?
A maior aventura era dormir no chão duro (6º parágrafo); o melhor de tudo era quando as tias moravam do outro lado do rio, porque aí as crianças atravessavam a ponte, o que era, sempre, uma emoção (11º parágrafo); o sonho de todas as crianças era atravessar a ponte da estrada de ferro (11º parágrafo).

2.   Perto do fim da crônica, encontramos a autora confessando uma velha frustação (qual é ela?). E, em seguida, arremata o texto com uma breve reflexão motivada pelo relato das lembranças da infância. O que nos diz ela sobre estas lembranças?
A frustação foi nunca ter tido a coragem de desobedecer e atravessar a ponte da ferrovia (11º parágrafo). E a reflexão sobre as lembranças da infância: são belas as lembranças de quem passou parte da infância em uma cidade do interior com um rio e uma ponte – duas, aliás (12º parágrafo).

3.   A autora fala das oito tias. Nada diz, porém, sobre os tios. Apesar disso, há um dado no texto que nos permite inferir que eles eram quatro. Que dado é esse?
No fim do terceiro parágrafo, a autora menciona o número de filhos de seus avós:12. Se eram 12 filhos e 8 eram mulheres, sobram 4 homens.

4.   O que quer dizer a autora quando afirma: “A palavra ecologia ainda não existia”?
Ela quer dizer que, no tempo de sua infância, não estava ainda disseminada socialmente a preocupação com a preservação do ambiente.