CONTO: Latricério
(Stanislaw Ponte Preta)
Tinha um linguajar
difícil, o Latricério. Já de nome era ruinzinho, que Latricério não é lá
nomenclatura muito desejada. E era aí que começavam os seus erros.
Foi porteiro lá do
prédio durante muito tempo. Era prestativo e bom sujeito, mas sempre com o
grave defeito de pensar que sabia e entendia de tudo. Aliás, acabou despedido
por isso mesmo. Um dia enguiçou a descarga do vaso sanitário de um apartamento
e ele achou que sabia endireitar. O síndico do prédio já ia chamar um bombeiro,
quando Latricério apareceu dizendo que deixassem por sua conta.
Dizem que o dono do
banheiro protestou, na lembrança talvez de outros malfadados consertos feitos
pelo serviçal porteiro. Mas o síndico acalmou-o com esta desculpa excelente:
— Deixe ele
consertar, afinal são quase xarás e lá se entendem.
Dono da permissão,
o nosso amigo — até hoje ninguém sabe explicar por quê — fez um rápido exame no
aparelho em pane e desceu aos fundos do edifício, avisando antes que o defeito
era “nos cano de orige”.
Lá embaixo, começou
a mexer na caixa do gás e, às tantas, quase provoca uma tremenda explosão.
Passado o susto e a certeza de mais esse desserviço, a paciência do síndico
atingiu o seu limite máximo e o porteiro foi despedido.
Latricério arrumou
sua trouxa e partiu para nunca mais, deixando tristezas para duas pessoas: para
a empregada do 801, que era sua namorada, e para mim, que via nele uma grande
personagem.
Lembro-me que,
mesmo tendo sido, por diversas vezes, vítima de suas habilidades, lamentei o
ocorrido, dando todo o meu apoio ao Latricério e afirmando-lhe que fora
precipitação do síndico. Na hora da despedida, passei-lhe às mãos uma estampa
do American Bank Note no valor de quinhentos cruzeiros, oferecendo ainda, como
prêmio de consolação, uma horrenda gravata, cheia de coqueiros dourados, virgem
de uso, pois nela não tocara desde o meu aniversário, dia em que o Bill — o
americano do 602 — a trouxera como lembrança da data.
Mas, como ficou
dito acima, Latricério tinha um linguajar difícil, e é preciso explicar por
quê. Falava tudo errado, misturando palavras, trocando-lhes o sentido e
empregando os mais estranhos termos para definir as coisas mais elementares.
Afora as expressões atribuídas a todos os “malfalantes”, como “compromisso de
cafiaspirina”, “vento encarnado”, “libras estrelinhas”, etc., tinha erros só
seus.
No dia em que
estiveram lá no prédio, por exemplo, uns avaliadores da firma a quem o
proprietário ia hipotecar o imóvel, o porteiro, depois de acompanhá-los na
vistoria, veio contar a novidade:
— Magine, doutor!
Eles viero avalsá as impoteca!
É claro que, no
princípio, não foi fácil compreender as coisas que ele dizia mas com o tempo,
acabei me acostumando. Por isso não estranhei quando os ladrões entraram no
apartamento de Dona Vera, então sob sua guarda, e ele veio me dizer, intrigado:
— Não compreendo
como eles entraro. Pois as portas tava tudo “aritmeticamente” fechadas.
Tentar emendar-lhe
os erros era em pura perda. O melhor era deixar como estava. Com sua maneira de
falar, afinal, conseguira tornar-se uma das figuras mais populares do
quarteirão e eu, longe de corrigir-lhe as besteiras, às vezes falava como ele
até, para melhor me fazer entender.
Foi assim no dia em
que, com a devida licença do proprietário, mandei derrubar uma parede e
inaugurei uma nova janela, com jardineira por fora, onde pretendia plantar uns
gerânios. Estava eu a admirar a obra, quando surgiu o Latricério para louvá-la.
— Ainda não está
completa — disse eu — falta colocar umas persianas pelo lado de fora.
Ele deu logo o seu
palpite:
— Não adianta,
doutor. Aí bate muito sol e vai morrê tudo.
Percebi que jamais
soubera o que vinha a ser persiana e tratei de explicar à sua moda:
— Não diga tolice,
persiana é um negócio parecido com venezuela.
— Ah, bem,
venezuela — repetiu.
E acrescentou:
— Pensei que fosse
“arguma pranta”.
PRETA, Stanislaw Ponte. Dois amigos e
um chato. São Paulo: Moderna, 1986. p. 44-6. (Veredas).
Fonte: Livro – Linguagens em Sintonia
– Língua Portuguesa – Ed. Scipione- 6º ano do Ensino Fundamental.
ESTUDO DO CONTO
1) Que tipo de
narrador há nesse texto?
Narrador-personagem.
2) De acordo com o
início do texto, por onde começavam os erros do porteiro?
Pelo
nome que tinha: Latricério.
3) Apesar de bonzinho
e prestativo, qual era o grande defeito de Latricério?
O
de pensar que entendia de tudo.
4) Por que razão foi
despedido? O que fez que acabou fazendo o síndico perder a paciência e
despedi-lo?
Justamente
por achar que entendia de tudo. Ao tentar consertar um problema hidráulico de
um dos apartamentos, foi mexer no gás e quase explodiu o prédio.
5) Segundo o texto,
Latricério, ao partir, deixou saudade para duas pessoas. Quem eram elas?
Uma
pessoa era a namorada dele e a outra era o personagem-narrador.
6) Em dado momento, o
personagem-narrador volta a afirmar que o Latricério tinha um linguajar
difícil. Por quê?
Porque
ele falava tudo errado, misturava as palavras, trocava os sentidos e empregava
termos incomuns para falar sobre coisas simples.
7) Qual era a atitude
do personagem-narrador em relação aos erros de linguagem de Latricério?
Não
acreditava que Latricério pudesse expressar-se de outra forma. Acostumou-se ao
seu jeito de falar e, às vezes, até falava de modo parecido para poder se
comunicar melhor com o porteiro.
8) O que fez o
personagem-narrador para tentar explicar a Latricério o que era uma persiana?
Ao
tentar explicar, comentou que persiana era
algo semelhante com uma venezuela, (fazendo brincadeira com veneziana) para expressar-se de maneira
parecida com a do porteiro, que declarou achar que o termo se referia a uma
planta.
9) Ao longo do texto,
quais os níveis de linguagem utilizados pelo porteiro e pelo
narrador-personagem?
O
porteiro usava uma linguagem coloquial, ou informal, e o narrador, uma
linguagem formal.