Romance: Macunaíma – PIAIMÃ – Fragmento
No outro dia Macunaíma pulou cedo na
ubá e deu uma chegada até a foz do Rio Negro pra deixar a consciência na ilha
de Marapatá. Deixou-a bem na ponta dum mandacaru de dez metros, pra não ser
comida pelas saúvas. Voltou pro lugar onde os manos esperavam e no pino do dia
os três rumaram pra margem esquerda da Sol.
Muitos casos sucederam nessa viagem por
caatingas rios corredeiras, gerais, corgos, corredores de tabatinga matos
virgens e milagres do sertão. Macunaíma vinha com os dois manos pra São Paulo.
Foi o Araguaia que facilitou-lhes a viagem. Por tantas conquistas e tantos
feitos passados o herói não ajuntara um vintém só mas os tesouros herdados da
icamiaba estrela estavam escondidos nas grunhas do Roraima lá. Desses tesouros
Macunaíma apartou pra viagem nada menos de quarenta vezes quarenta milhões de
bagos de cacau, a moeda tradicional. Calculou com eles um dilúvio de
embarcações. E ficou lindo trepando pelo Araguaia aquele poder de igaras duma
em uma duzentas em ajojo que-nem flecha na pele do rio. Na frente Macunaíma
vinha de pé, carrancudo, procurando no longe a cidade. Matutava roendo os dedos
agora cobertos de berrugas de tanto apontarem Ci estrela. Os manos remavam
espantando os mosquitos e cada arranco dos remos repercutindo nas duzentas
igaras ligadas, despejava uma batelada de bagos na pele do rio, deixando uma
esteira de chocolate onde os camuatás pirapitingas dourados piracanjubas
uarus-uarás e bacus de regalavam.
Uma feita a Sol cobrira os três manos
duma escaminha de suor e Macunaíma se lembrou de tomar banho. Porém no rio era
impossível por causa das piranhas tão vorazes que de quando em quando na luta
pra pegar um naco de irmã espedaçada, pulavam aos cachos pra fora d’água metro
e mais. Então Macunaíma enxergou numa lapa bem no meio do rio uma cova cheia
d’água. E a cova era que-nem a marca dum pé-gigante. Abicaram. O herói depois
de muitos gritos por causa do frio da água entrou na cova e se lavou
inteirinho. Mas a água era encantada porque aquele buraco na lapa era marca do
pezão do Sumé, do tempo em que andava pregando o evangelho de Jesus pra indiada
brasileira. Quando o herói saiu do banho estava branco louro e de olhos
azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de
indicar nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas.
Nem bem Jiguê percebeu o milagre, se atirou
na marca do pezão do Sumé. Porém a água já estava muito suja da negrura do
herói e por mais que Jiguê esfregasse feito maluco atirando água pra todos os
lados só conseguiu ficar com a cor do bronze novo. Macunaíma teve dó e
consolou:
-- Olhe, mano Jiguê, branco você ficou
não, porém pretume foi-se e antes fanhoso que sem nariz.
Maanape então é que foi se lavar, mas
Jiguê esborrifara toda a água encantada pra fora da cova. Tinha só um bocado lá
no fundo e Maanape conseguiu molhar só a palma dos pés e das mãos. Por isso ficou
negro bem filho da tribo dos Tupanhumas. Só que as palmas das mãos e dos pés dele
são vermelhas por terem se limpado na água santa. Macunaíma teve dó e consolou:
-- Não se avexe, mano Maanape, não se
avexe não, mais sofreu nosso tio Judas!
E estava lindíssimo na Sol da Lapa os
três manos um louro um vermelho outro negro, de pé bem erguidos e nus. Todos os
seres do mato espiavam assombrados. O jacareúna o jacaretinga o jacaré-açu o
jacaré-ururau de papo amarelo, todos esses jacarés botaram os olhos de rochedo
pra fora d’água. Nos ramos das ingazeiras das aningas das mamoramas das
embaúbas dos catauaris de beira-rio o macaco-prego o macaco-de-cheiro o guariba
o bugio o cuatá o barrigudo o coxiú o cairara, todos os quarenta macacos do
Brasil, todos, espiavam babando de inveja. E os sabiás, o o sabiacica o
sabiapoca o sabiaúna o sabiapiranga o sabiagongá que quando come não me dá, o
sabiá-barranco o sabiá-tropeiro o sabiá-laranjeira o sabiá-gute todos eles
ficaram pasmos e esqueceram de acabar o trinado, vozeando vozeando com
eloquência. Macunaíma teve ódio. Botou as mãos nas ancas e gritou pra natureza:
-- Nunca viu não!
Então os seres naturais debandavam
vivendo e os três manos seguiram caminho outra vez.
Porém entrando nas terras do Igarapé
Tietê adonde o burbom vogava e a moeda tradicional não era mais cacau, em vez,
chamva arame contos contecos milréis borós tostão duzentorréis quinhentorréis,
cinquenta paus, noventa bagarotes, e pelegas cobres xenxéns caraminguás selos
bicos-de-coruja massuni bolada calcáreo gimbra siridó bicha e pataracos, assim,
adonde até liga pra meia ninguém comprava nem por vinte mil cacaus. Macunaíma
ficou muito contrariado. Ter de trabucar, ele, herói... Murmurou desolado:
-- Ai! Que preguiça! ...
ANDRADE, Mário de.
Macunaíma: o herói sem nenhum caráter.
Ed. Crítica de Telê
Porto A. Lopez. Rio de Janeiro/São Paulo:
Livros Técnicos e
Científicos/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia. p. 33-4.
Entendendo o romance:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo.
·
Abicar: fazer chegar a proa da embarcação em terra.
·
Sumé: na mitologia dos índios Tupis e Guaranis, homem branco,
barbado, que teria vivido entre os índios antes da chegada dos portugueses e
que lhes havia transmitido uma série de ensinamentos. Os Jesuítas associaram
essa figura a São Tomé, apóstolo que teria feito pregações ao redor do mundo,
inclusive na América.
·
Burbom: café ou cafeeiro.
·
Grunha: parte côncava nas serras.
·
Icamiaba: referência a Ci, líder das índias icamiabas, com quem
Macunaíma se casara e que virou estrela depois de morrer.
·
Igara: canoa escavada em um tronco de árvore.
·
Trabucar: trabalhar, labutar.
·
Lapa: grande pedra ou laje; gruta.
·
Ubá: o mesmo que cana-do-rio; planta da família das gramíneas que
atinge até 10 metros de altura.
02 – Em Macunaíma, Mário de
Andrade procurou fazer uso de uma “língua brasileira”, síntese da fusão do
português com dialetos indígenas e africanos, mesclada de inúmeras variações
linguísticas, com regionalismos, expressões coloquiais, estrangeirismos, etc.
Troque ideias com os colegas
e tente descobrir a origem destas palavras e expressões:
a)
Ubá, Marapatá, mandacaru, tabatinga, igara,
pirapitinga.
Origem indígena.
b)
Deu uma chegada, que-nem flecha, feito
maluco, antes fanhoso que sem nariz, cinquenta paus, bolada.
Origem popular.
c)
Não se avexe.
Origem regional, nordestina.
d)
Burbom.
Origem na língua inglesa.
03 – Antes de escrever
Macunaíma, Mário de Andrade viajou pelo Brasil, pesquisou e fez anotações
relativas a diversos elementos da geografia, da fauna, da flora e da cultura das
diferentes regiões do país. De que modo essa pesquisa se revela no trecho lido?
Revela-se na
aproximação de pontos geográficos distantes, como Rio Negro e São Paulo; na
citação do nome de inúmeros peixes, aves e plantas típicos da natureza brasileira;
na citação da lenda de Sumé.
04 – Observe o trecho em que
os três irmãos se banham na água da cova feita pelo pé de Sumé.
a)
O que se explica, nessa cena, de forma
folclórica?
A origem do negro, do índio e do branco, ou seja, as diferenças
éticas no Brasil.
b)
Apesar de Jiguê ter se lavado, ele “só
conseguiu ficar da cor do bronze novo”. E Macunaíma lhe diz: “branco você ficou
não, porém pretume foi-se e antes fanhoso que sem nariz”. Na sua opinião, essa
fala de Macunaíma é preconceituosa? Justifique sua resposta.
Resposta pessoal do aluno.
05 – Macunaíma é o imperador
da mata virgem. Como tal, imagina chegar a São Paulo com muito cacau – que na
floresta equivalia a dinheiro – e liderando uma comitiva de duzentas canoas.
a)
Na realidade, com quantas canoas Macunaíma
chega à capital paulista?
Chega numa única canoa, acompanhado pelos irmãos.
b)
Que valor tinha na cidade o cacau que
Macunaíma trouxera?
Nenhum valor.
c)
Como se posiciona Macunaíma diante da
necessidade de trabalhar?
Não sente nenhuma vontade de trabalhar; mostra-se preguiçoso.
06 – As preocupações
reveladas na obra Macunaíma quanto à busca dos elementos da paisagem nacional –
a fauna, a flora, o homem, a língua e as tradições da cultura brasileira –
lembram o projeto nacionalista do Romantismo. Comparando Macunaíma às obras
indianistas românticas, responda:
a)
A personagem Macunaíma pode ser considerado
um herói igual aos do Romantismo? Por quê?
Não. Macunaíma é uma espécie de anti-herói.
b)
Como conclusão do estudo feito, responda: O
nacionalismo presente em Macunaíma é igual ao das obras do Romantismo?
Justifique sua resposta.
Não. Mário procura valorizar os elementos nacionais, mas a partir de
uma perspectiva crítica, mostrando as contradições tanto da realidade nacional
quanto do homem brasileiro.