Texto: Sermão a Santo Antônio Cap. IV – Fragmento
Padre Antônio Vieira
Antes, porém, que vos vades, assim como
ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões.
Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira cousa que me
desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é
este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros,
senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal.
Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas
como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só
grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque
cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes: «Os homens com
suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos
outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo
todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos
finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos
homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e
eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o
vejais nos homens.
Olhai, peixes, lá do mar para a terra.
Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o
sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só
os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais
se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar,
vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer
as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo
aquilo é andarem buscando os homens como hão de comer e como se hão de comer.
Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e
comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os
legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos
defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o
sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe
dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o
que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o
pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.
[...]
Padre Antônio Vieira. www.nead.unama.br.
Fonte: Português – José
De Nicola – Ensino médio – Volume 1 – 1ª edição, São Paulo, 2009. Editora
Scipione. p. 366-367.
Entendendo o texto:
01
– Qual é a principal crítica feita por Padre Antônio Vieira aos peixes, e por
extensão, aos homens?
A principal crítica é a
cobiça e a ganância, representadas pela ação de se comerem uns aos outros.
Vieira utiliza a metáfora dos peixes para denunciar a desigualdade social e a
exploração dos mais fracos pelos mais poderosos.
02
– Qual a função da comparação entre os peixes e os homens no sermão?
A comparação
serve como um recurso retórico para tornar a crítica mais incisiva e eficaz. Ao
mostrar que os mesmos vícios que condenam nos peixes também estão presentes nos
homens, Vieira busca despertar a consciência do ouvinte e levá-lo à reflexão
sobre suas próprias atitudes.
03
– Quais os diferentes grupos sociais que Vieira critica ao descrever a forma
como os homens "se comem uns aos outros"?
Vieira critica
diversos grupos sociais, como herdeiros, testamenteiros, legatários, credores,
oficiais, médicos, sangradores, mulheres, coveiros, etc. A crítica se estende a
todos aqueles que se beneficiam da morte ou da miséria alheia.
04
– Qual o significado da frase "Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros,
comem-no os legatários"?
Essa frase
representa a cobiça pela herança e a disputa por bens materiais após a morte de
alguém. Os herdeiros, testamenteiros e legatários são vistos como predadores
que se aproveitam da fragilidade do falecido para obter vantagens pessoais.
05
– Qual a importância do contexto histórico para a compreensão do sermão?
O contexto
histórico é fundamental para compreender a profundidade da crítica de Vieira. A
sociedade da época era marcada por grandes desigualdades sociais e pela
exploração dos mais pobres. O sermão reflete essa realidade e busca denunciar
os excessos e os vícios daquela época.
06
– Que tipo de linguagem Vieira utiliza para construir sua crítica?
Vieira utiliza
uma linguagem rica em figuras de linguagem, como metáforas, comparações e
antíteses. Essa linguagem expressiva e vívida contribui para a força e a
eficácia da sua crítica.
07
– Qual a mensagem central que Vieira quer transmitir ao seu público?
A mensagem
central é um chamado à reflexão sobre a condição humana e a necessidade de
superar os vícios da cobiça e da ganância. Vieira busca despertar a consciência
do ouvinte para a importância da justiça, da solidariedade e da compaixão.
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