Conto: SOFIA
Luiz
Vilela
Já tinham brincado muito, e agora estavam reunidos ao pé do
poste, pensando numa coisa nova para fazer.
Ainda era cedo, a noite apenas começara.
_ Vamos mexer com a Sofia? – propôs um.
Sofia era a dona do mercadinho_ a vítima predileta deles. Pintavam
o sete com ela. Sofia assustava-se com nada, e isso os deliciava. Viviam assombrando-a:
vozes estranhas chamando lá fora, e ninguém (estavam no telhado), caveira de
mamão verde com vela acesa dentro, capas, máscaras horrorosas, o caixote de
livro que sumia, ratos, sapos, lagartixas aparecendo de repente, minha nossa!
Quase desmaiava, dessa vez eu chamo o guarda, e tudo o que
fazia era ameaçar os meninos, agitando o braço gordo:
_ Eu vai contar bra seu pai, menino! Eu vai contar bra seu
pai!
Eles riam, alegres, distantes do braço dela.
_ Raledine baculé, pé de turco tem chulé!
_ Moleques! Sembregonhas!
_ Sofia quer gombra galinha de raça? Cadê os urubus que ocê
comprou, hem Sofia? Cadê as galinhas de raça?
Caíam na risada.
Sofia queria correr, mal saía do lugar, gorda, pernas
grossas, braços gordos, uma tonelada de gordura.
_ Ainda me pagam, lê! - gritava, enquanto os meninos se
afastavam.
_ Praga - xingava, tornando a entrar no mercadinho, onde,
no balcão, ia encontrar um sapo morto.
_ Moleques.
De vez em quando, havia trégua: o dia em que chegavam
tomates. Vinham três, quatro caixotes. Os meninos apareciam, quietos, sérios. Ficavam
por ali conversando, simulando indiferença. Sofia chegava até a
porta, olhava para um lado da rua, para outro, espichava o pescoço como se
estivesse procurando alguém (não procurava ninguém, sabiam), dava uma cuspida
no chão (sempre dava a cuspida).
-Ei - falava, na sua voz grossa de homem, as mãos na
cintura: - chegou tomate hoje.
(Eles já sabiam, e ela sabia que eles já sabiam.)
Displicentes:
_ É?...
Pouco depois estavam sentados em caixotes vazios, trapos na
mão, ágeis, limpando os tomates, pra quê que eles põem esse pó? É para
conservar, separando os bons num caixote, os amassados noutro, jogando os
podres no lixo, disputando quem limpava mais depressa. Sofia no meio deles,
contando casos – de vez em quando uma exclamação na língua dela: deve ser nome
feio, pensavam -, dando gargalhadas, sacudindo-se toda, esquecida das brigas. Às
vezes, comia um tomate: enfiava-o inteiro na boca, as bochechas estufavam.
Terminado o serviço, ela fazia o pagamento: um saquinho de
balas para cada um.
Uma vez – era aniversário dela – limparam tomate das sete
às dez da noite, até fechar o mercadinho.
Na hora de pagar:
_ Não é nada não. Hoje, é aniversário da senhora...
Sofia ficou olhando, a boca aberta. Foi falar, mas sua voz
grossa de homem de repente ficou fina e sumiu, os olhos úmidos. Cada um deu um
abraço nela, estavam comovidos com suas lágrimas, ela querendo falar alguma
coisa, mas nada, os lábios trêmulos, os olhos úmidos.
_ Vocês viram?
_ Chorando ...
_ Ela grita com a gente, mas ela é boazinha...
_ É pra gritar mesmo; do jeito que nós fazemos com ela...
Eu vou falar: se fosse eu, não ficava assim não.
_ Eu também.
_ Ela fala que vai chamar o guarda, mas nunca chamou.
_ Nós judiamos dela.
_ Sabem, eu pensei uma coisa, não sei se vocês topam: a
gente não mexer mais com ela. Quê que vocês acham?
_ Eu topo.
_ Eu também.
_ Engraçado, eu tinha pensado nisso também, mas fiquei com
vergonha de falar.
_ Fazer um juramento: ninguém mais mexer com ela. Topam?
Todos topavam. Um até quis contar para ela na hora.
_ Não, deixa ela ir notando aos poucos: uê, os meninos
estão diferentes... Já pensaram o tanto que ela vai achar bom?
_ Se vai...
E, ali, no poste, todos de pé, fizeram o juramento.
_ Para sempre.
_ É. Para sempre.
Uma semana depois, a lâmpada da entrada do mercadinho
sumia, uma perereca saltava de um saquinho de papel, um busca-pé estourava
debaixo do balcão, e Sofia agitava o braço gordo no passeio, enquanto eles
corriam.
_ Moleques! Sembregonhas! Eu vai contar bra seu pai! Eu vai
chamar o guarda!
Um dia, Sofia adoeceu. Nunca mais tornaram a vê-la. Miguel,
seu irmão, é que passou a tomar conta do mercadinho. Com ele não mexiam: não
tinha graça.
E, um dia, Sofia morreu. Comentaram na cidade que ela
morrera é de tanto comer. Contavam que o medico a mandava fazer regime e ela
não obedecia; ela dizia:
_ Sofia morre, mas morre de barriga cheia.
( Vilela, Luiz. Contos
da infância e da adolescência. São Paulo: Ática,15-8.)
Entendendo o texto
01-Assinale (P) para aquilo que for pertinente ao texto
e (NP) para aquilo que não for pertinente ao texto-discurso:
a-( P ) Na leitura do texto-discurso,
depreende-se a prática social do bullying por parte dos meninos;
b- (NP ) Na leitura do texto-discurso,
depreende-se o discurso da necessidade premente do combate ao bullying;
c-(NP ) Na leitura do texto-discurso,
depreende-se que a personagem Sofia não era vítima de bullying, pois até sentia
ternura pelos meninos e eles, por ela.
d-(P ) Na leitura do texto-discurso,
depreende-se que os meninos não gostavam da personagem Sofia;
e- (P ) Na leitura do texto-discurso,
depreende-se que os meninos dispunham de muito tempo livre e o gastava com
atividades prazerosas;
f-(P ) Na leitura do texto-discurso,
depreende-se a prática social do preconceito linguístico por parte dos meninos,
ao imitar o sotaque da personagem Sofia;
g-( P ) Na leitura do texto-discurso,
depreende-se a prática sócio-psicológica da bondade humana;
h- (NP ) Na leitura do texto-discurso,
depreende-se o discurso do cuidado com a saúde física;
i-( P ) Na leitura do texto-discurso,
depreende-se o discurso da compulsão pela comida.
02-No texto-discurso, percebe-se, como problemática central,
uma prática social presente, no cotidiano. Qual seria essa prática:
a- a compulsão pela comida;
b- a prática do bullying;
c- a obesidade;
d- os exercícios físicos.
03-Leia o seguinte trecho e marque (V) ou (F) para
interpretações abaixo:
“... E, um dia, Sofia morreu. Comentaram na cidade que ela
morrera é de tanto comer. Contavam que o médico a mandava fazer regime e ela
não obedecia; ela dizia:
_ Sofia morre, mas morre de barriga cheia.”
a-( F ) Percebe-se que a
personagem Sofia tinha consciência de seu estado de saúde, mas nada fazia para
mudá-lo, atitude que apressou a morte;
b-(F ) Percebe-se que a
personagem Sofia priorizou a saúde física, ao invés do prazer que a comida
proporcionava-lhe;
c- (F )Percebe-se que a
personagem Sofia fez uma escolha inteligente, ao optar pelo bem-estar
momentâneo;
d-( V ) Percebe-se que a
personagem Sofia mostrava-se displicente, uma vez que não ligava importância às
recomendações médicas;
04- No trecho: ...”Às vezes, comia
um tomate: enfiava-o inteiro na boca, as bochechas estufavam...”
, a que ou a quem se referem as ações sublinhadas acima?
As ações descrevem o
ato de Sofia comer um tomate de forma exagerada e impulsiva.
05-No trecho: ...”Sofia queria
correr, mal saía do lugar, gorda, pernas gordas, braços gordos,
uma tonelada de gordura...”, qual a explicação mais adequada?
a-
os adjetivos destacados caracterizam-qualificam
positivamente a personagem Sofia e ajudam o leitor e a leitora a construírem a
imagem dela;
b- os adjetivos destacados
caracterizam-qualificam negativamente a personagem Sofia e ajudam o leitor e a
leitora a construírem a imagem dela.
06-No trecho: “...Terminado o
serviço, ela fazia o pagamento: um saquinho de balas para cada um...”, o uso
dos dois pontos indica:
a- a fala da personagem Sofia;
b- a informação
sobre o que consistia o pagamento dos meninos;
c- uma pausa na fala da
personagem;
d- um argumento da personagem
Sofia.
07-No trecho: “... Com ele não
mexiam: não tinha graça...” O uso dos dois pontos indica:
a- a fala dos meninos;
b- a indiferença do personagem
Miguel, frente às brincadeiras dos meninos;
c- a causa por que
os meninos não mexiam com o personagem Miguel, irmão da personagem Sofia;
d- a complementação da ideia
dos meninos, personagens do texto.
08- No trecho: ...”Não é
nada não. Hoje, é aniversário da senhora...” O uso das reticências, ao
final da frase, indica:
a- que os meninos tinham mais
alguma coisa a dizer à Sofia, porém não conseguiam expressar o que sentiam;
b- que os meninos hesitaram na
hora de cobrar o trabalho prestado à Sofia;
c- que o autor do
texto, propositalmente, usou as reticências, para que o leitor ou a leitora
pudessem imaginar o que seria dito pelos meninos;
d- que os meninos
interromperam a fala para não magoar Sofia;
e- que os meninos planejavam
mais uma brincadeira com a personagem Sofia.
09-Substitua as palavras
negritadas, no texto-discurso, por outras de sentido semelhante:
Pintavam o sete com
ela: Brincavam pesadamente com
ela.
Assombrando-a: Aterrorizando-a.
Sembregonhas: Vagabundos.
Displicentes: Indiferentes.
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