quinta-feira, 14 de agosto de 2025

CRÔNICA: AS METAMORFOSES DA VELHICE - FRAGMENTO - RUBEM ALVES - COM GABARITO

 Crônica: As metamorfoses da velhice – Fragmento

              Rubem Alves

        Matsuó Bashô (1644-1694), poeta japonês, foi o mestre supremo dos haikais. Leminski, valendo-se de uma sugestão de Jorge Luís Borges, descreve um haicai como um objeto poético mínimo de peso intolerável.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhuIICK3YtwzcYUst0irrPJPx7boyxaopvhaVTzNfH7NyAkK1PeNlz3EGrj_N3XeHDTR6H48jiFdzz5KFtEzmlxyoir4dLi4in4uLfVxPBo_ttO5neYUQQQp_vffBerpj3JLk29LRF_0eOHzfpPK5J6-BdL97UDdMAFykyvkWzXLGnAtzzb9-Y2Y2BddcM/s320/cropped-imagem-cabecalho-metamorfose-1.jpeg


        Esse é um dos seus mais famosos haicais de Bashô:

        “Casca oca:

        a cigarra

        cantou-se toda.” 


        Bashô é apelido; significa “bananeira”. Era a árvore favorita do poeta. Trata-se de árvore estranha: dá um cacho de bananas somente. Seu caule extremamente macio deve então ser cortado – o que pode ser feito com um único golpe de facão. Cortado o caule, de dentro do cepo velho nasce um broto que cresce e vira outra bananeira. Eu havia cortado várias bananeiras que impediam o acesso a uma cachoeira, em Pocinhos do Rio Verde. Algumas semanas depois voltei àquele lugar, e esse haicai apareceu-me instantaneamente:

        “Bananeira cortada:

        no cepo velho

        um broto criança”.

        Entendi, então, a razão do gosto de Bashô pelas bananeiras: elas simbolizam a nova vida que brota sempre de dentro da vida velha, acabada. Foi isso que Bashô viu ao contemplar as cascas vazias das cigarras: [...].

        As cigarras são seres subterrâneos silenciosos – algumas chegam a ficar 17 anos enterradas sob a forma de larva. De repente saem da terra, arrebentam as cascas duras que as continham (eram ataúdes) e se tornam artistas, seres alados, cantantes. Antes mesmo de ter lido o haicai de Bashô colhi, no bosque onde caminho, algumas cascas vazias de cigarra e as coloquei num bonsai, no meu consultório: tinha esperança de que as pessoas entendessem aquele haicai sem palavras: seres subterrâneos podem se tornar seres alados!

        As lagartas, cuja vida se resume em devorar as folhas sobre que se arrastam, após esgotarem essa fase rastejante e gastronômica, entram num sarcófago que elas mesmas tecem, mergulham num sono profundo, e quando acordam não mais se reconhecem: tornaram-se uma outra coisa: seres coloridos, voantes de flor em flor, borboletas.

        Metamorfoses… acontecem sempre de repente – e embora não pareça, somos nós, seres humanos, aqueles que passam por elas com mais facilidade. Nossos corpos são mais leves que os corpos dos animais. É que nossas cascas, diferentes das dos animais, são feitas com palavras, carne e palavras misturadas. Basta que as palavras se alterem para que o corpo se metamorfoseie num outro.

        [...]

Rubem Alves. Livro sem fim. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 43. (Fragmento adaptado).

Fonte: Língua Portuguesa: Singular & Plural. Laura de Figueiredo; Marisa Balthasar e Shirley Goulart – 7º ano – Moderna. 2ª edição, São Paulo, 2015. p. 192-193.

Entendendo a crônica:

01 – Quem foi Matsuó Bashô e como Leminski descreve o haicai, valendo-se de uma sugestão de Jorge Luís Borges?

      Matsuó Bashô foi um poeta japonês, considerado o mestre supremo dos haikais. Leminski, seguindo Borges, descreve o haicai como um "objeto poético mínimo de peso intolerável".

02 – Qual o significado do apelido "Bashô" e por que a bananeira era a árvore favorita do poeta?

      "Bashô" significa "bananeira". A árvore era sua favorita porque ela simboliza a nova vida que brota sempre de dentro da vida velha e acabada, pois, ao ser cortada, um novo broto nasce do cepo.

03 – Qual o haicai criado por Rubem Alves após cortar as bananeiras, e o que ele entendeu com isso?

      O haicai criado por Rubem Alves foi: "Bananeira cortada: no cepo velho um broto criança". Com ele, o autor entendeu a razão do gosto de Bashô pelas bananeiras, percebendo que elas simbolizam a renovação da vida.

04 – Descreva o processo de metamorfose da cigarra, conforme o texto.

      As cigarras são seres subterrâneos e silenciosos que podem passar até 17 anos como larvas. De repente, elas saem da terra, rompem suas cascas duras (como ataúdes) e se tornam artistas, seres alados e cantantes.

05 – Com que propósito Rubem Alves colocou cascas vazias de cigarra em um bonsai em seu consultório?

      Ele fez isso na esperança de que as pessoas entendessem "aquele haicai sem palavras", transmitindo a mensagem de que "seres subterrâneos podem se tornar seres alados!".

06 – Como o texto descreve a metamorfose das lagartas e o que elas se tornam ao final do processo?

      As lagartas, após uma fase rastejante e gastronômica de devorar folhas, entram em um sarcófago que elas mesmas tecem, mergulham em um sono profundo e, ao acordar, se tornam borboletas, seres coloridos e voantes de flor em flor.

07 – Segundo Rubem Alves, por que os seres humanos são aqueles que passam por metamorfoses com mais facilidade, e o que as nossas "cascas" são feitas?

      Os seres humanos passam por metamorfoses com mais facilidade porque nossos corpos são mais leves que os dos animais e nossas cascas são feitas com palavras, carne e palavras misturadas. Basta que as palavras se alterem para que o corpo se metamorfoseie.

 

 

CRÔNICA: A VIDA NA VAGA - MOACYR SCLIAR - COM GABARITO

Crônica: A vida na vaga

              Moacyr Scliar

        NO COMEÇO ele tinha de chegar de carro à Berrini duas horas e meia antes do horário de expediente para conseguir estacionar. Era um problema, sobretudo para quem, como ele, não gostava de acordar cedo; mas, lutador que era, não deixava se intimidar por aquilo. Chegava cedo, sim, e tratava de usar o tempo da melhor maneira possível: escutava rádio, lia jornal, e até escrevia – ficcionista frustrado tinha o projeto de um grande romance e, aos poucos, ia digitando no laptop uma e outra cena.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgqk8EJNKKWPgG3MoSYYvC5zhJ6OLF3TOD-sEcdGwI1B_XROIdELIsYCAJ2ytZbbOJw3aFcEIV-6NWtSxMU0wnZTatGN2drHD3bM0l2v3fZ59mImLItm0PMHQlVW5jljJeWU4Xe2Lwc6wg_ScN-RAhWhxn_1fIPAcbg5if-2tSbUKpE0TuP3qnDReypkCI/s320/AS00106-Ponte-Estaiada-1024x685.jpg

        Mas – e isso apesar da crise – a situação se agravou. Em breve, duas horas e meia de antecedência não eram suficientes. Ele aumentou-as para quatro horas. Agora dormia menos ainda, mas, em compensação, ficava cada vez mais atualizado com as notícias de rádio e de jornal. E, ah sim, o romance ia crescendo.

        A primeira parte já estava quase pronta, e ele começava a projetar as outras. Tinha de lutar contra o invencível sono, claro, mas a térmica com café (e ele esvaziava-a toda) ajudava um pouco.

        Contudo, mais e mais carros entravam na luta por uma vaga. Ele começou a chegar seis horas antes do expediente. Era ainda noite fechada quando estacionava, mas, de novo, isso não o perturbava; ao contrário, até gostava do silêncio que então reinava naquela artéria em outros horários tão movimentada. Isso também mudou a sua rotina familiar, claro; depois de jantar com a mulher e os dois filhos não ia para a cama: cochilava umas horas na poltrona e seguia para o carro.

        Passava mais tempo no veículo, mas isso só fazia aumentar seu universo cultural: além de rádio e jornais, lia revistas, livros diversos (estava pensando em fazer um mestrado) e, logicamente, trabalhava no seu romance, cada vez maior. E o problema do estacionamento sempre crescendo. Chegou um momento em que ele chegava em casa, jantava apressado, e, embarcando no carro, retornava para a Berrini. Por fim chegou à conclusão de que não valia mais a pena a volta ao lar.

        Atualmente sai do escritório, come alguma coisa numa lanchonete, e vai direto para o carro, esperar a hora de retornar ao trabalho. A mulher e os filhos é que vêm visitá-lo no veículo, que se transformou assim numa espécie de lar. Não, ele não se queixa. Vê algumas vantagens na nova situação. Não precisa dirigir mais, não se estressa no trânsito, não gasta combustível.

        É um homem cada vez mais culto, uma verdadeira enciclopédia ambulante (quando deambula, claro). E seu romance, que já está com mais de mil laudas, tem tudo para ser uma grande obra literária. O título, ainda provisório (muitas coisas em deambular nossa existência são provisórias). é “A vida na vaga”.

Moacyr Scliar. Folha de São Paulo.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é o problema central que o protagonista da crônica enfrenta no início da história?

      O problema central é a dificuldade extrema de conseguir uma vaga para estacionar seu carro na Berrini, um conhecido centro empresarial de São Paulo, o que o obriga a chegar com horas de antecedência ao trabalho.

02 – Como a rotina do protagonista muda progressivamente devido à sua busca por uma vaga?

      Sua rotina muda drasticamente: ele passa a acordar cada vez mais cedo (de 2,5 para 4, e depois 6 horas antes do expediente), passa a cochilar no carro e, por fim, decide não voltar mais para casa, transformando o veículo em seu lar.

03 – Quais atividades o protagonista passa a realizar em seu carro, enquanto espera pelo horário de trabalho?

      No carro, ele escuta rádio, lê jornais e revistas, lê livros (com a intenção de fazer um mestrado) e, principalmente, escreve seu romance, um projeto literário que ele nutria.

04 – Apesar do inconveniente, o protagonista encontra alguma vantagem em sua nova condição de vida? Quais?

      Sim, ele encontra vantagens. Ele não precisa mais dirigir, não se estressa no trânsito, não gasta combustível e se torna um homem cada vez mais culto, além de ter tempo para se dedicar integralmente ao seu romance.

05 – Qual o título provisório do romance que o protagonista está escrevendo e como ele se relaciona com sua vida?

      O título provisório do romance é "A vida na vaga". Esse título reflete diretamente sua nova realidade, onde sua vida se resume a esperar em uma vaga de estacionamento, o que também se tornou o tema de sua obra.

06 – Como a crônica ironiza a busca por "melhores condições" ou "sucesso" na vida urbana contemporânea?

      A crônica ironiza ao mostrar como o protagonista, em sua busca por um trabalho (que sugere sucesso profissional), acaba por sacrificar aspectos fundamentais da vida pessoal, como o convívio familiar e o conforto do lar, adaptando-se a uma existência totalmente voltada para a vaga, que se torna um símbolo da rigidez e dos absurdos da vida urbana.

07 – Qual o papel da família do protagonista nessa nova dinâmica de vida?

      A mulher e os filhos do protagonista precisam visitá-lo no carro, que se transformou em sua casa, evidenciando o sacrifício familiar imposto pela busca incessante por um lugar (físico e metafórico) na cidade grande.

 

 

 

 

CRÔNICA: A HISTÓRIA DO AÇÚCAR - FRAGMENTO - LÍVIA LOMBARDO - COM GABARITO

 Crônica: A HISTÓRIA DO AÇÚCAR – Fragmento

        Durante centenas de anos, o açúcar foi um produto raro, símbolo de poder e riqueza

        Lívia Lombardo | 01/07/2007 00h00

        É difícil hoje em dia imaginar como seria a vida sem o açúcar e, consequentemente, sem o bolinho da vovó, o cafezinho adoçado, o doce para a sobremesa. Pois até o século 17 as pessoas viviam sem essa substância extraída da cana.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiQT8TtOKhFPe_FS2sONQdBDtjGnsriNL8U1Sr3g-rtYW0BbXfckATAf_7Bj7Or2_UcklftZ1QsbYroas-dWIV6pSZptVIQ9lMFNXlizCXsThRGFlwIRPk1ujRt7krPILfP9LpmbMS7hoYKLTgbLYr-m1CmuY0fjzJ1OEyTGShVLiN4qng7UVX8RRdxUcg/s320/blog%20do%20iba%20mende%20-%20etimologista%20-%20ACUCAR.jpg


        Antes do açúcar se tornar um produto acessível, as duas únicas fontes de sabor doce no mundo eram o mel e a cana. Ao que tudo indica, foi pela Índia, por volta do ano de 325 a.C., que o caldo de cana entrou para a história (e o paladar) ocidental. Quando Niarchos, soldado de Alexandre, o Grande, chegou ao vale do Indo com a missão de conquistar a Índia Oriental, ele deparou com nativos bebendo o suco da cana fermentado. A partir daí, com a alcunha de “sal indiano”, o produto passou a ser importado por preços altíssimos por gregos e romanos.

        Muitos séculos depois, por volta do ano 600, foram desenvolvidas as primeiras técnicas de refino de açúcar em uma universidade de Pérsia. A ideia era facilitar o estoque, transporte e comércio do produto sem fermentá-lo. Com a conquista da Pérsia pelos exércitos árabes islâmicos, em 650, a receita do processamento do açúcar passou para os árabes, que assumiram o negócio e levaram mudas de cana para serem cultivadas nas terras conquistadas. Era o início da expansão do açúcar pelo mundo. As Cruzadas, que confrontaram muçulmanos e cristãos, também contribuíram para a difusão do produto pela Europa. Os cristãos tiveram contato com a “especiaria” no Oriente e continuaram usando-a quando voltaram para casa.

        Até o século 17, no entanto, o açúcar era extremamente raro. Utilizado como remédio contra a peste negra, como tempero em minúsculas quantidade e como meio de preservação de frutas, o produto possuía preço tão elevado que logo se tornou um bem de ostentação e luxo. Grandes esculturas de açúcar, normalmente na forma de navios e palácios, chegaram a ser produzidas durante os séculos 15 e 16 para enfeitar cerimônias reais e eclesiásticas. Só com a introdução do cultivo de cana na recém-descoberta América é que a oferta de açúcar no mundo aumentou. Assim o produto começou a se tornar mais acessível para todas as camadas sociais.

LOMBARDO, Lívia. Aventuras na História. Disponível em: http://historia.abril.com.br/alimentacao/historia-acucar-435424.shtml. Acesso em: 19 dez. 2014. (Fragmento adaptado).

Fonte: Língua Portuguesa: Singular & Plural. Laura de Figueiredo; Marisa Balthasar e Shirley Goulart – 7º ano – Moderna. 2ª edição, São Paulo, 2015. p. 305-306.

Entendendo a crônica:

01 – Como era o status do açúcar durante centenas de anos, antes de se tornar acessível?

      Durante centenas de anos, o açúcar foi um produto raro, sendo um símbolo de poder e riqueza.

02 – Quais eram as únicas fontes de sabor doce no mundo antes de o açúcar se tornar um produto amplamente acessível?

      Antes do açúcar se popularizar, as únicas fontes de sabor doce eram o mel e a cana.

03 – Qual civilização antiga foi a primeira a ter contato ocidental com o caldo de cana e quem foi o responsável por esse primeiro contato?

      Foi na Índia, por volta de 325 a.C., que o caldo de cana entrou para o paladar ocidental. O responsável por esse contato foi Niarchos, um soldado de Alexandre, o Grande.

04 – Onde e quando foram desenvolvidas as primeiras técnicas de refino de açúcar e qual era o objetivo dessas técnicas?

      As primeiras técnicas de refino de açúcar foram desenvolvidas por volta do ano 600, em uma universidade da Pérsia. O objetivo era facilitar o estoque, transporte e comércio do produto sem fermentá-lo.

05 – Como o açúcar se difundiu pelo mundo após o desenvolvimento das técnicas de refino, e que eventos contribuíram para sua disseminação na Europa?

      Após a conquista da Pérsia pelos exércitos árabes islâmicos, em 650, a receita do processamento do açúcar passou para os árabes, que levaram mudas de cana para serem cultivadas nas terras conquistadas, iniciando sua expansão. As Cruzadas também contribuíram para a difusão do produto pela Europa, pois os cristãos o conheceram no Oriente e o levaram para casa.

06 – Até que século o açúcar permaneceu extremamente raro, e para que ele era utilizado nesse período?

      O açúcar permaneceu extremamente raro até o século 17. Nesse período, era utilizado como remédio contra a peste negra, como tempero em minúsculas quantidades e como meio de preservação de frutas.

07 – O que marcou a mudança do status do açúcar de um bem de luxo para um produto mais acessível a todas as camadas sociais?

      A mudança ocorreu com a introdução do cultivo de cana na recém-descoberta América, o que aumentou significativamente a oferta de açúcar no mundo, tornando-o mais acessível.

 

CONTO: ZEUS - HELOÍSA PRIETO - COM GABARITO

 Conto: Zeus

           Heloisa Prieto

        Para mim, é difícil explicar o que significa ser o deus dos deuses. Ter o poder supremo da decisão, determinar os destinos das criaturas do universo, manter a ordem e a justiça na terra e nos céus.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhTfvIX55owDKUdH7M53TbbjfpO5-ZYwMVz58aOycAZdcf7k6s9JtIQt19Iitd8rZO91gLl3zdjjLhgxt2AJp-IzWr7Pmrf8iXS2q5NasLg3PjpKnExUr5VwY4K7HWHxpniTh89c9-Qd5rB4Xxr2I4Dn7kywPb14pBt7nJRdBBRpqbo_YMRh4m5W3CAfOA/s320/zeus.jpg


        Amo o conhecimento, as luzes, a filosofia, as artes da cura e as grandes cidades. Amo também as mulheres. Jamais resisto aos seus encantos. Sou casado com Hera, deusa belíssima, protetora dos casamentos. Porém, embora eu a queira profundamente, continuo me apaixonando por lindas jovens. Foi desses amores proibidos por Hera que nasceram Atena, Apolo e Ártemis, por exemplo. Os ciúmes de minha mulher sempre me causaram inúmeros problemas e passei grande parte da vida protegendo os filhos nascidos de meus romances proibidos. Hera nunca aceitou minha principal missão divina que é fertilizar os seres, gerar criaturas excepcionais, aproximar os humanos dos deuses, criar jovens semideuses de talentos insuperáveis. Além disso, ela jamais compreendeu a solidão de quem tem o poder supremo e é responsável por todos os atos do universo.

        Portanto, minha vida tem sido marcada pelas desavenças com Hera e pela disputa com meu próprio pai, Cronos, o impiedoso deus do tempo…

Minha luta contra o tempo

        Fui criado por ninfas, no interior de uma gruta secreta, longe dos olhos de meu pai. Alimentado com mel e leite, fui muito amado por minhas doces protetoras.

        Cresci desfrutando da beleza da natureza, caminhando pelos campos e praias, nadando em águas salgadas. Mas chegou o momento em que senti que precisava finalmente enfrentar meu próprio pai. Chamei Métis, a deusa da prudência, para que ela me aconselhasse. Como poderia conquistar o poder que fora destinado? Como poderia tornar-me o deus dos deuses, o senhor supremo do universo?

        Os olhos penetrantes de Métis fitaram-me por alguns instantes antes que ela me dissesse o que fazer:

        – Você tem irmãos, Zeus, e precisa salvá-los. Eles foram engolidos por Cronos, mas não estão mortos, e você poderá trazê-los de volta. Necessitará da ajuda deles para conseguir conquistar o lugar que lhe pertence. Deve apresentar-se diante de seu pai como se fosse um simples mortal e dar-lhe esta poção. – Métis entregou-me um lindo frasco de vidro que continha um líquido brilhante e prosseguiu: – Esta poção foi preparada por Hécata, a pedido de sua mãe. Quando Cronos a beber, seus irmãos desaparecidos ressurgirão. Juntos, vocês vencerão seu pai.

        Quando entrei no luxuoso palácio de Cronos, aguardei na fila de mortais que lhe imploravam favores. Jovens apaixonadas que haviam perdido seus amados em guerras suplicavam a Cronos que ele fizesse o tempo voltar. Inútil. “O que passou, passou”, era o que ele lhes dizia, curta e secamente. Velhos apavorados diante da morte pediam-lhe que retardasse a passagem dos minutos. “O tempo não pára”, ele repetia, impassível. Filhos saudosos rogavam-lhe que ele apressasse as horas para que seus pais retornassem de perigosas viagens o mais rapidamente possível. “Mas o tempo voa! Por que querem mais rapidez ainda?”, ele respondia com um sorriso irônico.

        Quando chegou minha vez, declarei:

        – Eu não desejo nada, mestre do tempo. Quero apenas dar-lhe um presente. O tempo tem sido bondoso comigo, pois durante toda a minha vida só senti a felicidade.

        Curioso, Cronos apanhou o belo frasco com seu líquido brilhante.

        – O que é isso, meu jovem?

        – Uma bebida de sabor inigualável, feita com mel de abelhas especialmente para Vossa Majestade.

        Cronos sorriu e destampou o vidro. Olhei para o chão, tentando ocultar minha ansiedade. De um só gole, meu pai bebeu o conteúdo do frasco. E logo em seguida começou a contorcer-se. Abriu a boca, e dela saíram três minúsculos bebezinhos. As crianças foram iluminadas por raios de luz e, contrariando todas as leis do tempo, cresceram numa fração de segundo. Depressa me vi cercado por vários irmãos e irmãs que instantaneamente se posicionaram para enfrentar Cronos e seus ajudantes, os Titãs.

        No entanto, como já disse, Cronos era o senhor absoluto do tempo. Embora fôssemos muitos e bem mais fortes, nossos movimentos foram retardados pela lenta passagem das horas e nossa luta acabou durando dez anos terrestres. Vencemos graças à ajuda dos Cíclopes, imensas criaturas com apenas um olho no meio da testa, que, como nós, haviam sido prejudicados por Cronos.

        A cada um de nós, filhos e adversários de Cronos, foi entregue uma arma especial. Eu recebi os raios e trovões. Hades, meu valente irmão, recebeu um capacete mágico que o tornava invisível; e Posêidon, o magnífico deus dos mares, recebeu seu poderoso tridente, cujo golpe rompia terras e águas. E assim, munidos de novos poderes, enfim triunfamos.

        Após nossa vitória, repartimos o universo. Hades decidiu reinar nos mundos subterrâneos e secretos, Posêidon, no universo marinho, e a mim foram dados os céus e o trono de senhor do universo.

        Fui encarregado ainda de governar o destino dos homens. À porta de meu palácio, tenho dois enormes jarros. Um deles contém os bens da vida, e o outro, os males. Ao longo da existência de meus súditos humanos, espalho um pouco do conteúdo de cada um dos jarros. Infelizmente, já me descuidei algumas vezes; em consequência disso, certas pessoas foram premiadas com uma vida de alegrias, e outras, com uma vida de tristezas. Mas tenho sido cauteloso ultimamente. E também generoso. Em especial para com vocês, que agora me ouvem confessar esses segredos.

        Zeus: Deus dos céus. Protege a ordem e a justiça.

Divinas aventuras – História da mitologia grega. São Paulo, Companhia das Letrinhas, 1998.

Entendendo o conto:

01 – Qual é a principal missão divina de Zeus, segundo ele mesmo, e por que Hera não a aceita?

      A principal missão divina de Zeus é fertilizar os seres, gerar criaturas excepcionais, aproximar os humanos dos deuses e criar jovens semideuses de talentos insuperáveis. Hera não a aceita por seus ciúmes e por não compreender a solidão e a responsabilidade de Zeus como o deus supremo.

02 – Onde e como Zeus foi criado, e quem o ajudou em sua infância?

      Zeus foi criado por ninfas no interior de uma gruta secreta, longe dos olhos de seu pai, Cronos. Ele foi alimentado com mel e leite e muito amado por suas protetoras, desfrutando da beleza da natureza.

03 – Quem é Métis, e qual conselho ela dá a Zeus para que ele possa conquistar o poder supremo?

      Métis é a deusa da prudência. Ela aconselha Zeus a salvar seus irmãos, que foram engolidos por Cronos, pois eles não estão mortos e sua ajuda será necessária. Ela o instrui a se apresentar a Cronos como um simples mortal e dar-lhe uma poção especial, preparada por Hécata a pedido de sua mãe, que fará com que seus irmãos ressurgiam para lutar ao seu lado.

04 – Como Zeus se apresenta a Cronos no palácio, e qual é a reação de Cronos ao beber a poção?

      Zeus se apresenta a Cronos na fila de mortais que imploravam favores, mas declara que não deseja nada, apenas quer dar um presente: uma "bebida de sabor inigualável" feita com mel. Ao beber a poção, Cronos começa a contorcer-se e de sua boca saem três minúsculos bebezinhos que instantaneamente crescem e se tornam os irmãos de Zeus.

05 – Quanto tempo durou a luta de Zeus e seus irmãos contra Cronos e os Titãs, e quem os ajudou a vencer?

      A luta durou dez anos terrestres, devido à capacidade de Cronos de retardar os movimentos de seus adversários. Eles venceram graças à ajuda dos Cíclopes, imensas criaturas de um olho só que também haviam sido prejudicadas por Cronos.

06 – Que armas especiais foram dadas a Zeus, Hades e Posêidon, respectivamente?

      A cada um dos filhos de Cronos foi entregue uma arma especial:

      - Zeus recebeu os raios e trovões.

      - Hades recebeu um capacete mágico que o tornava invisível.

      - Posêidon recebeu seu poderoso tridente, que rompia terras e águas.

07 – Como Zeus governa o destino dos homens, e qual é o significado dos dois jarros à porta de seu palácio?

      Zeus governa o destino dos homens espalhando o conteúdo de dois enormes jarros que tem à porta de seu palácio. Um jarro contém os bens da vida e o outro, os males. Ele distribui um pouco de cada ao longo da existência dos humanos, confessando que já se descuidou, resultando em vidas de alegrias extremas ou tristezas intensas, mas que tem sido mais cauteloso e generoso ultimamente.

 

CONTO: UMA NOITE NO PARAÍSO - ÍTALO CALVINO - COM GABARITO

 Conto: Uma noite no paraíso

           Ítalo Calvino

        Era uma vez dois grandes amigos que, de tanto que se queriam, haviam feito um juramento: quem casasse primeiro deveria chamar o outro para padrinho, mesmo que se encontrasse no fim do mundo.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhr4GrTRifFg4bQZIOIo2pQ1K3yVs5gl9LtcvjqHz0zfAiHiloNvvDKax781k_-HJXy5NR9ayM-SlNADUUHUi5aVCUpauH7Ct7_HyXJdJtOL0E1olsZYznTDTvjg_4KNxfDOue2kTJwOxNz-RGxJa_tmMpY_cBLkv-f9EGcToMH0jCs5mEVRNHQLlFkrJs/s320/11536670-1618622857663-5fb9555fc4aca.jpg


        Depois de algum tempo, um dos amigos morre. O outro, devendo casar, não sabia como fazer e pediu conselhos ao confessor.

        — Negócio complicado — disse o pároco —, você deve manter a sua palavra. Convide-o mesmo estando morto. Vá até o túmulo e diga o que tem a dizer. Ele decidirá se vem ou não.

        O jovem foi até o túmulo e disse:

        — Amigo, chegou o momento, vem para ser meu padrinho!

        Abriu-se a terra e pulou fora o amigo.

        — Claro que vou, tenho que manter a promessa, pois se não a mantiver não sei quanto tempo terei que ficar no purgatório.

        Vão para casa e depois à igreja para o matrimônio. A seguir veio o banquete de núpcias e o jovem morto começou a contar histórias de todo tipo, mas não dizia uma palavra sobre o que vira no outro mundo. O noivo não via a hora de lhe fazer umas perguntas, mas não tomava coragem. No final do banquete, o morto se levanta e diz:

        — Amigo, já que lhe fiz este favor, você tem que me acompanhar um pouquinho.

        — Claro, por que não? Porém, espere, só um momentinho, pois é a primeira noite com minha esposa…

        — Certamente, como quiser!

        O marido deu um beijo na mulher.

        — Vou sair um instante e volto logo. — E saiu com o morto.

        Falando de tudo um pouco, chegaram ao túmulo. Abraçaram-se.

        O vivo pensou: "Se não lhe perguntar agora, não pergunto nunca mais", tomou coragem e lhe disse:

        — Escute, queria lhe perguntar uma coisa, a você que está morto: do outro lado, como funciona?

        — Não posso dizer nada — respondeu o morto. — Se quiser saber, venha você também ao Paraíso.

        O túmulo se abriu, e o vivo seguiu o morto. E logo se encontravam no Paraíso. O morto o levou para ver um belo palácio de cristal com portas de ouro, cheio de anjos que tocavam e faziam dançar os beatos, e são Pedro, que tocava contrabaixo. O vivo estava de boca aberta e quem sabe quanto tempo teria ficado ali se não tivesse de ver todo o resto.

        — Agora, vamos a outro lugar! — disse-lhe o morto, e o levou a um jardim onde as árvores, em vez de folhas, tinham pássaros de todas as cores que cantavam. — Vamos em frente, o que faz aí encantado? — E o levou a um prado onde os anjos dançavam, alegres e suaves como namorados. — Agora vou levá-lo para ver uma estrela!

        Não se cansaria nunca de admirar as estrelas; os rios, em vez de água, eram de vinho e a terra era de queijo.

        De repente, caiu em si:

        — Ouça, compadre, já faz algumas horas que estou aqui em cima. Tenho que voltar para minha esposa, que deve estar preocupada.

        — Já está cansado?

        — Cansado? Sim, se pudesse…

        — E muito mais haveria para descobrir!

        — Tenho certeza, mas é melhor eu voltar.

        — Como preferir. — E o morto o acompanhou até o túmulo e depois sumiu.

        O vivo saiu do túmulo e não reconhecia mais o cemitério. Estava todo cheio de monumentos, estátuas, árvores altas. Sai do cemitério e, no lugar daquelas casinhas de pedra meio improvisadas, vê grandes palácios e bondes, automóveis, aviões. "Onde é que vim parar? Terei errado o caminho? Mas como está vestida esta gente!"

        Pergunta a um velhinho:

        — Cavalheiro, esta aldeia é…?

        Sim, é esse o nome desta cidade.

        — Bem, não sei por que, não consigo me situar. Saberia me dizer onde fica a casa daquele que se casou ontem?

        — Ontem? Estranho, trabalho como sacristão e posso garantir que ontem ninguém se casou!

        — Como? Eu me casei! — E lhe contou que acompanhara ao Paraíso um padrinho seu que morrera.

        — Você está sonhando — disse o velho. — Essa é uma velha história que contam: do marido que acompanhou o padrinho até o túmulo e não voltou; e a mulher morreu de desgosto.

        — Não, senhor, o marido sou eu!

        — Ouça, a única solução é que vá conversar com nosso bispo.

        — Bispo? Mas aqui na aldeia só existe um pároco.

        — Nada disso. Há muitos anos que temos um bispo. — E o levou até o bispo.

        O bispo, quando o jovem lhe contou o que lhe acontecera, lembrou-se de uma história que ouvira quando rapaz. Pegou os livros, começou a folheá-los: há trinta anos, não; cinquenta anos, não; cem, não; duzentos, não. E continuava a folhear. No final, numa folha toda rasgada e gordurosa, encontra justamente aqueles nomes.

        Aconteceu há trezentos anos. O jovem desapareceu no cemitério e a mulher dele morreu de desgosto. Leia aqui se não acredita!

        — Mas sou eu.

        — E você esteve no outro mundo? Conte-me como é!

        Porém, o jovem ficou amarelo como a morte e caiu. Morreu assim, sem poder contar nada do que vira.

Extraído de: Ítalo Calvino. Fábulas italianas. Tradução: Nilson Maulin, São Paulo, Companhia das Letras.

Fonte: Programa de Formação de Professores Alfabetizadores. Coletânea de textos – Módulo 1. p. 290-292.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o juramento feito pelos dois amigos no início do conto, e qual sua importância para a trama?

      O juramento feito pelos dois amigos é que quem casasse primeiro deveria chamar o outro para padrinho, mesmo que estivesse no "fim do mundo". Este juramento é o motor de toda a trama, pois é ele que força o amigo vivo a convidar o amigo morto, desencadeando todos os eventos sobrenaturais e a jornada para o Paraíso.

02 – Como o amigo morto descreve sua razão para aceitar o convite para ser padrinho?

      O amigo morto afirma que precisa manter a promessa para não ter que ficar mais tempo no purgatório. Ele diz: "Claro que vou, tenho que manter a promessa, pois se não a mantiver não sei quanto tempo terei que ficar no purgatório." Isso adiciona uma camada de urgência e um toque de humor irônico à sua aparição.

03 – Por que o amigo morto se recusa a descrever o "outro lado" durante o banquete de núpcias?

      Durante o banquete, o amigo morto conta "histórias de todo tipo, mas não dizia uma palavra sobre o que vira no outro mundo". Ele se recusa a descrever o "outro lado" porque a condição para o vivo saber é ir ele mesmo ao Paraíso. Ele só revela a natureza do Paraíso ao vivo quando o leva para lá.

04 – Quais são as características do Paraíso descritas pelo amigo morto ao amigo vivo?

      O Paraíso é descrito com elementos maravilhosos e fantásticos: um "belo palácio de cristal com portas de ouro" e anjos tocando e fazendo os beatos dançar, com São Pedro tocando contrabaixo. Além disso, há um jardim com árvores que, em vez de folhas, tinham pássaros de todas as cores que cantavam, um prado com anjos dançando "alegres e suaves como namorados", e estrelas para admirar. Os rios eram "de vinho e a terra era de queijo".

05 – Qual é o principal problema que o amigo vivo enfrenta ao retornar do Paraíso?

      O principal problema que o amigo vivo enfrenta ao retornar é a passagem exorbitante do tempo sem que ele perceba. Ele pensa que esteve fora por "algumas horas", mas ao sair do túmulo, percebe que a cidade mudou drasticamente. Ele não reconhece mais o cemitério, a arquitetura, os meios de transporte, e descobre que se passaram trezentos anos desde que saiu de casa.

06 – Como o conto explora a ideia da relatividade do tempo?

      O conto explora a relatividade do tempo de forma central. Para o amigo vivo, o tempo no Paraíso parece passar muito rápido, apenas "algumas horas", mas ao retornar ao mundo dos vivos, ele descobre que trezentos anos se passaram. Isso demonstra como a percepção do tempo pode ser alterada em diferentes realidades ou dimensões, e como o que é um breve instante em um lugar pode ser um vasto período em outro.

07 – Qual é o desfecho trágico do amigo vivo e o que isso simboliza?

      O desfecho trágico do amigo vivo é que, após descobrir que trezentos anos se passaram e que sua esposa já morrera de desgosto, ele morre subitamente, sem conseguir contar nada do que vira no Paraíso. Isso simboliza a impossibilidade de transpor completamente a experiência do sobrenatural para o mundo mortal. O conhecimento do Paraíso é tão avassalador e incompatível com a vida terrena que a tentativa de recontá-lo ou de conciliar essas realidades é fatal, mantendo o mistério do além-vida.

 

CONTO: PRIMEIRA AVENTURA DE ALEXANDRE - CLÁSSICO - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

 Conto: Primeira Aventura de Alexandre – Clássico

           Graciliano Ramos

        Naquela noite de lua cheia estavam acocorados os vizinhos na sala pequena de Alexandre: seu Libório, cantador de emboladas, o cego preto Firmino e Mestre Gaudêncio curandeiro, que rezava contra mordedura de cobras. Das Dores benzedeira de quebranto e afilhada do casal, agachava-se na esteira cochichando com Cesária.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjaRX68PTs_49ucuHUxfIGk8_eufh5-ddBkhG3aou9i8AL1mM2BLAHYdA5Uch0mjOb9q02tyWyd-DRwCFRMhkr-wFv9LduDdDrGhtOMwESLaKfyPjbt09wu2B3TOMjZ3lnFOHmhLLmoRn12mpmBhMVT5cuez95MGNrcG4M-rkldA7UkgX8Pe7jIR15_xWc/s320/3392704-lua-cheia-noite-ilustracao-imagem-na-floresta-gratis-vetor.jpg


        — Vou contar aos senhores… principiou Alexandre amarrando o cigarro de palha.

        Os amigos abriram os ouvidos e Das Dores interrompeu o cochicho:

        — Conte, meu padrinho.

        Alexandre acendeu o cigarro ao candeeiro de folha, escanchou-se .na rede e perguntou:

        — Os senhores já sabem porque é que eu tenho um olho torto?

        Mestre Gaudêncio respondeu que não sabia e acomodou-se num cepo que servia de cadeira.

        — Pois eu digo, continuou Alexandre. Mas talvez nem possa escorrer tudo hoje, porque essa história nasce de outra, e é preciso encaixar as coisas direito. Querem ouvir? Se não querem, sejam francos: não gosto de cacetear ninguém.

        Seu Libório cantador e o cego preto Firmino juraram que estavam atentos. E Alexandre abriu a torneira:

        — Meu pai, homem de boa família, possuía fortuna grossa, como não ignoram. A nossa fazenda ia de ribeira a ribeira, o gado não tinha conta e dinheiro lá em casa era cama de gato. Não era, Cesária?

        — Era, Alexandre, concordou Cesária. Quando os escravos se forraram, foi um desmantelo, mas ainda sobraram alguns baús com moedas de ouro. Sumiu-se tudo.

        Suspirou e apontou desgostosa a mala de couro cru onde seu Libório se sentava:

        — Hoje é isto. Você se lembra do nosso casamento, Alexandre?

        — Sem dúvida, gritou o marido. Uma festa que durou sete dias. Agora não se faz festa como aquela. Mas o casamento foi depois. É bom não atrapalhar.

        — Está certo, resmungou mestre Gaudêncio curandeiro. É bom não atrapalhar.

        — Então escutem, prosseguiu Alexandre. Um domingo eu estava no copiar, esgaravatando unhas com a faca de ponta, quando meu pai chegou e disse:

        — “Xandu, você nos seus passeios não achou roteiro da égua pampa?” E eu respondi: — “Não achei, nhor não.” — “Pois dê umas voltas por aí, tornou meu pai Veja se encontra a égua.” — “Nhor sim.” Peguei um cabresto e saí de casa antes do almoço, andei, virei, mexi, procurando rastos nos caminhos e nas veredas. A égua pampa era um animal que não tinha aguentado ferro no quarto nem sela no lombo. Devia estar braba, metida nas brenhas, com medo de gente. Difícil topar na catinga um bicho assim”. Entretido, esqueci o almoço e à tardinha descansei no bebedouro, vendo o gado enterrar os pés na lama. Apareceram bois, cavalos e miunça, mas da égua pampa nem sinal. Anoiteceu, um pedaço de lua branqueou os xiquexiques e os mandacarus, e eu, me estirei na ribanceira do rio, de papo para o ar, olhando o céu, fui-me amadornando devagarinho, peguei no sono, com o pensamento em Cesária. Não sei quanto tempo dormi, sonhando com Cesária. Acordei numa escuridão medonha. Nem pedaço de lua nem estrelas, só se via o carreiro de Sant’lago. E tudo calado, tão calado que se ouvia perfeitamente uma formiga mexer nos garranchos e uma folha cair. Bacuraus doidos faziam às vezes um barulho grande, e os olhos deles brilhavam como brasas. Vinha de novo a escuridão, os talos secos buliam, as folhinhas das catingueiras voavam. Tive desejo de voltar para casa, mas o corpo morrinhento não me ajudou. Continuei deitado, de barriga para cima, espiando o carreiro de Sant’lago e prestando atenção ao trabalho das formigas. De repente, conheci que bebiam água ali perto. Virei-me, estirei o pescoço e avistei lá embaixo dois vultos malhados, um grande e um pequeno, junto da cerca do bebedouro. A princípio não pude vê-los direito, mas firmando a vista consegui distingui-las por causa das malhas brancas. — “Vão ver que é a égua pampa, foi o que eu disse. Não é senão ela. Deu cria no mato e só vem ao bebedouro de noite.” Muito ruim o animal aparecer àquela hora. Se fosse de dia e eu tivesse uma corda, podia laçá-lo num instante. Mas desprevenido, no escuro, levantei-me azuretado, com o cabresto na mão, procurando meio de sair daquela dificuldade. A égua ia escapar, na certa. Foi aí que a ideia me chegou.

        — Que foi que o senhor fez? perguntou Das Dores curiosa.

        Alexandre chupou o cigarro, o olho torto arregalado, fixo na parede. Voltou para Das Dores o olho bom e explicou-se:

        — Fiz tenção de saltar no lombo do bicho e largar-me com ele na catinga. Era o jeito. Se não saltasse, adeus égua pampa. E que história ia contar a meu pai? Hem? Que história ia contar a meu pai, Das Dores?

        A benzedeira de quebranto não deu palpite, e Alexandre mentalmente pulou nas costas do animal:

        — Foi o que eu fiz. Ainda bem não me tinha resolvido, já estava escanchado. Um desespero, seu Libório, carreira como aquela só se vendo. Nunca houve outra igual. O vento zumbia nas minhas orelhas, zumbia como corda de viola. E eu então… Eu então pensava, na tropelia desembestada: — “A cria, miúda, naturalmente ficou atrás e se perde, que não pode acompanhar a mãe, mas esta amanhã está ferrada e arreada.” Passei o cabresto no focinho da bicha e, os calcanhares presos nos vazios, deitei-me, grudei-me com ela, mas antes levei muita pancada de galho e muito arranhão de espinho rasga-beiço. Fui cair numa touceira cheia de espetos, um deles esfolou-me a cara, e nem senti a ferida: num aperto tão grande não ia ocupar-me com semelhante ninharia. Botei-me para fora dali, a custo, bem maltratado. Não sabia a natureza do estrago, mas pareceu-me que devia estar com a roupa em tiras e o rosto lanhado. Foi o que me pareceu. Escapulindo-se do espinheiro, a diaba ganhou de novo a catinga, saltando bancos de macambira e derrubando paus, como se tivesse azougue nas veias. Fazia um barulhão com as ventas, eu estava espantado, porque nunca tinha ouvido égua soprar daquele jeito. Afinal subjuguei-a, quebrei-lhe as forças e, com puxavantes de cabresto, murros na cabeça e pancadas nos queixos, levei-a para a estrada. Ai ela compreendeu que não valia a pena teimar e entregou os pontos. Acreditam vossemecês que era um vivente de bom coração? Pois era. Com tão pouco ensino, deu para esquipar. E eu, notando que a infeliz estava disposta a aprender, puxei por ela, que acabou na pisada baixa e num galopezinho macio em cima da mão. Saibam os amigos que nunca me desoriento. Depois de termos comido um bando de léguas naquele pretume de meter o dedo no olho, andando para aqui e para acolá, num rolo do inferno, percebi que estávamos perto do bebedouro. Sim senhores. Zoada tão grande, um despotismo de quem quer derrubar o mundo — e agora a pobre se arrastava quase no lugar da saída, num chouto cansado. Tomei o caminho de casa. O céu se desenferrujou, o sol estava com vontade de aparecer. Um galo cantou, houve nos ramos um rebuliço de penas. Quando entrei no pátio da fazenda, meu pai e os negros iam começando o ofício de Nossa Senhora. Apeei-me, fui ao curral, amarrei o animal no mourão, cheguei-me à casa, sentei-me no copiar. A reza acabou lá dentro, e ouvi a fala de meu pai: — “Vocês não viram por aí o Xandu?” — “Estou aqui, nhor sim, respondi cá de fora” — “Homem, você me dá cabelos brancos, disse meu pai abrindo a porta. Desde ontem sumido!” — “Vossemecê não me mandou procurar a égua pampa?” — “Mandei, tornou o velho. Mas não mandei que você dormisse no mato, criatura dos meus pecados. E achou roteiro dela?” — “Roteiro não achei, mas vim montado num bicho. Talvez seja a égua pampa, porque tem malhas. Não sei, nhor não, só se vendo. O que sei é que é bom de verdade: com umas voltas que deu ficou pisando baixo, meio a galope. E parece que deu cria: estava com outro pequeno.” Aí a barra apareceu, o dia clareou. Meu pai, minha mãe, os escravos e meu irmão mais novo, que depois vestiu farda e chegou a tenente de polícia, foram ver a égua pampa. Foram, mas não entraram no curral: ficaram na porteira, olhando uns para os outros, lesos, de boca aberta. E eu também me admirei, pois não.

        Alexandre levantou-se, deu uns passos e esfregou as mãos, parou em frente de mestre Gaudêncio, falando alto, gesticulando:

        — Tive medo, vi que tinha feito uma doidice. Vossemecês adivinham o que estava amarrado no mourão? Uma onça-pintada, enorme, da altura de um cavalo. Foi por causa das pintas brancas que eu, no escuro, tomei aquela desgraçada pela égua pampa.

Texto extraído do livro “Alexandre e outros heróis”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1981, pág. 11.

Entendendo o conto:

01 – Quem são os vizinhos reunidos na sala de Alexandre no início do conto?

      Os vizinhos são seu Libório (cantador de emboladas), o cego preto Firmino, Mestre Gaudêncio (curandeiro) e Das Dores (benzedeira de quebranto e afilhada do casal).

02 – Qual a primeira coisa que Alexandre revela aos vizinhos e amigos antes de começar a contar sua história principal?

      Alexandre pergunta se eles sabem por que ele tem um olho torto.

03 – Como Alexandre descreve a fortuna de seu pai no passado, antes do "desmantelo" após a libertação dos escravos?

      Ele descreve a fazenda do pai como algo que ia "de ribeira a ribeira", com gado "sem conta" e dinheiro "lá em casa era cama de gato".

04 – Qual foi a tarefa que o pai de Alexandre lhe deu e que o levou à sua aventura?

      O pai de Alexandre o mandou procurar a égua pampa que estava sumida.

05 – O que Alexandre pensou que estava laçando no escuro, confundindo o animal por causa das "malhas brancas"?

      Ele pensou que estava laçando a égua pampa, que supostamente havia dado cria no mato.

06 – Quais dificuldades Alexandre enfrentou enquanto tentava dominar o animal que pensava ser a égua pampa?

      Ele levou muitas pancadas de galho, arranhões de espinhos "rasga-beiço" e caiu numa touceira cheia de espetos que esfolaram seu rosto.

07 – Como Alexandre conseguiu guiar o animal de volta para a fazenda, mesmo após as dificuldades e a escuridão?

      Ele subjugou o animal com puxavantes de cabresto, murros na cabeça e pancadas nos queixos, e o animal "entregou os pontos", começando a andar em uma "pisada baixa e num galopezinho macio". Ele percebeu que estavam perto do bebedouro pela "zoada tão grande".

08 – Onde Alexandre amarrou o animal ao chegar à fazenda?

      Ele amarrou o animal no mourão do curral.

09 – Qual foi a reação do pai de Alexandre e dos outros quando viram o que ele havia trazido para a fazenda?

      Todos ficaram "lesos, de boca aberta", olhando uns para os outros sem acreditar.

10 – Que animal Alexandre realmente havia capturado e por que ele o confundiu com a égua pampa?

      Alexandre havia capturado uma onça-pintada, enorme, da altura de um cavalo. Ele a confundiu com a égua pampa por causa das pintas brancas que, no escuro, ele interpretou como malhas.