Conto: MACAUÃ
Ivens Cuiabano Scaff
Ninguém se lembrava direito de quando
foi que Bugrinho havia chegado ali no Estirão Bonito! Chegou quieto e continuou
calado. Deve ter sido bem pequeno mesmo, pois mesmo agora ele devia ter uns
doze, onze no máximo. Regulando por aí.
Veio em alguma embarcação com certeza.
Porque estrada por ali era coisa precária. De serventia, só mesmo na época da
seca. Nas águas, era corixo juntando com corixo. Baía com baía, baía com rio e
parecia que era igual no pantanal lá de baixo, emendado tudo, tudo uma água só.
E quero ver automóvel passar. Nem jipe. Nem caminhão. Só carro de boi. E olhe
lá.
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg3tNJTZbU2uaehe3A2tYykBFupBvqHQ_Xmp7nSJ0mTkvTEB06T1z5LaltWyjDz6djL-KhlZJwoHwETopwrnkRByqxD2Wrqx7Q62y69065VMXFek_niZkA0YLzIKnPMOqYl1crFG2fohzwdYAYShNi2TxnPqXoKM-QCB-Rh4Fj9W9fQ95QYCEbJnINn2Lw/s320/RIO.jpg
Disque ele veio bem lá de baixo. Da
baía do Gahiva. Quase Bolívia. Disque. Diziam. Porque ele mesmo não dizia nada.
Bugrinho era quieto como um peixe. Se ele não gostava do apelido, também não
retrucava. Olhava as pessoas com aqueles olhos redondos, um pouco puxados como
os dos índios. Aí abaixava a cabeça e logo desviava os olhos. Aliás tinha um
sestro. Sempre um pouco antes de desviar os olhos, ele piscava o olho esquerdo.
Só o esquerdo.
Quem eram seus pais naturais, disso
ninguém tinha conhecimento. Também ninguém se encarregou de substituí-los. Era
cria da casa e pronto. Agregado. Pra todo serviço.
De privilégio, só mesmo a escola. Isso
mesmo. Tinha escola no Estirão Bonito. Uma corrutelinha de nada. Tapera de
antiga usina, mas escola tinha. E vinha aluno de tudo quanto é morador em
volta. De canoa, do rio acima e do rio abaixo. De carroça, de bicicleta e até a
pé. Criança não faltava.
Como
alguém tinha decidido e ninguém contestado, já que todo mundo mandava em
Bugrinho, ficou assim que ele também ia estudar.
Bugrinho não faltava nunca. Mas também
não falava. Nada. Se aprendia, isso era outro mistério.
Ninguém lhe tomava lições e ficava tudo
por isso mesmo.
De resto, a vida continuava como sempre
foi. No rio, tinha peixe de tudo quanto é tipo, peixe de escama e de couro. No
pomar, tudo quanto é tipo de fruta, cada uma no seu tempo. No mato, tudo quanto
é tipo de caça.
Faziam farinha. Faziam rapadura. Doces
de tudo que é tipo.
E tinha as festas de santo. Cada lugar
com o seu santo padroeiro e seu dia certo de festejar.
Assim era a vida no Estirão Bonito. O
rio passando. Os sarãs balançando com o vento. As canoas se roçando umas com as
outras, amarradas no porto. Aquele pátio grande. Talvez o maior de todos,
diziam as pessoas que eram viajadas e já tinham visto outros lugares. Isso
diziam como diziam que Estirão Bonito se chamava assim porque era mais bonito
que os outros.
As crianças podiam fazer tudo. Nada era
proibido. Nada era perigoso.
Medo mesmo só de onça que às vezes uma
bancava a atrevida vindo pegar um bezerro ali no curral, perto do engenho e das
casas de moradia.
Ah! Também tinham medo do Negrinho
d’água e do Minhocão. Quem é que não sabia das duas crianças que sumiram um
dia. Duas crianças, um menino e uma menina, iguaizinhos a Joãozinho e Maria,
que sumiram e depois de dois dias de procura apareceram mortinhos, parecendo
que estavam dormindo de mãozinhas dadas deitadinhos na beira d’água. Foi o
Negrinho d’água, só podia. Do Minhocão então, tinha criança que não entrava em
canoa nem junto com o pai e mãe, não importa se no lusco-fusco ou até no solão
da tarde.
Mas isso só os muito pequenos. Que eles
iam crescendo e perdendo o medo e se espalhando. Não tinha grota, nem baía, nem
corixo, nem sangradouro, nem mesmo bocaina, moradia de onça que aquelas
crianças não zanzeassem por lá.
Que o que tinha no Estirão Bonito era
criança.
Era uma alegria a vida no Estirão
Bonito.
Um dia, a professora veio trazer a
notícia, uma novidade. Ia chegar uma lancha. Na verdade, duas lanchas. Uma que
tinha motor, timão e comandante e a outra não tinha nada disso e era chamada
“chata”. A chata era para as mercadorias e vinha colada ao lado da lancha,
lancha mesmo, como pequi ou banana quando é fruta gêmea.
Mas o que é que tem de novidade nisso é
que acontece que faz é muito que uma lancha não subia o rio até ali.
Antigamente era outra coisa. Tudo acontecia em Cáceres, Corumbá, rio abaixo
afora, eles sabiam. Pra chegar em Cuiabá, tinham que passar ali, de subida,
pelo Estirão Bonito. Mas aí as embarcações foram rareando, rareando. Dizem que
agora tinham outros caminhos. Estrada de ferro. Estrada de chão. Até de asfalto
cruzando Mato Grosso sertão afora.
O fato é que aquela criançada do
Estirão Bonito nunca tinha visto uma lancha. Se tinham visto, não se lembravam.
Deviam ser muito pequenas na última vinda delas por lá.
Por isso, a professora ia explicando
como eram as embarcações. E lembrando do seu tempo de moça ia ficando
emocionada. Cada nome de lancha que ela dizia lhe trazia uma lembrança.
-- Ah! A lancha “Agashi” era linda.
Vinha cortando água desde que apontava no fim do estirão. De longe, a gente via
a espuma dela. Só a espuma, antes mesmo de ver a lancha.
-- E a “Filosofina”? Tinha esse nome em
homenagem à filha de um usineiro. Moça muito feia. Deus me livre. Não estou
desfazendo, mas ela era muito feia. E como falava nome feio. Nem parecia moça
bem criada, filha de gente de posses. Vôte!
-- Cada lancha tinha sua tripulação.
Seu prático. Ah! Vocês não sabem o que é prático? Prático é quem conhece os
caminhos do rio. É uma profissão. Ele sabe onde é o canal, onde dá para a
lancha passar e onde é baixo, que são as partes rasas.
-- E a gente vai poder subir na lancha,
professora? – já queriam saber as crianças.
Antes que a professora pudesse
responder, Bugrinho falou.
-- Eu já subi numa, professora.
Foi aquele espanto. Bugrinho nunca
falava nada. Que dirá na sala de aula.
As crianças ficaram num desassossego.
Risinhos, cochichos, beicinhos.
A professora pediu silêncio.
-- Já subiu, Bugrinho? Conte pra gente.
Bugrinho sentiu um calor subindo pelo
seu pescoço e se espalhando pelo seu rosto. Sentia também todos os olhares
pregados nele. Pra que tinha falado? Se pudesse, sumiria dali num segundo.
-- Vamos Bugrinho. Conte. Como foi? –
Insistiu a professora.
Bugrinho bem que tentou, mas não
conseguiu articular palavra.
-- Viu nada, professora.
-- Bugrinho! – a professora com os
olhos doces aguardava.
-- Foi... – por fim Bugrinho falou. E
sua voz parecia bater do lado de dentro da sua cabeça, martelar o seu ouvido
por dentro antes de com seguir achar o caminho pra fora.
-- Foi quando eu ainda não morava aqui.
Lá passavam muitas lanchas. De todo tamanho.
-- Mentira, professora. Ele vive aqui
desde pequeno. Como é que vai se lembrar?
A professora levou o dedo aos lábios de
novo pedindo silêncio.
-- Muitos dias antes da lancha chegar,
a gente ficava ouvindo o seu barulho...
Na sala, o silêncio parecia um
meio-dia.
-- ... que é porque o rio faz muitas
voltas...
A professora sorria como quem está
ouvindo uma canção de que gosta muito.
-- ... ou então que, se for na boca da
noite, a lancha entrou numa baía e não encontra saída.
Bugrinho estremeceu como quem sente um
arrepio ou quem é acordado de repente. Baixou a cabeça. Piscou o olho esquerdo
e desviou os olhos.
As crianças estavam espantadas com a
ousadia de Bugrinho.
A professora retomou a palavra.
-- No porto de Cuiabá, tinha uma grande
figueira na beira d’água. Debaixo dela, as pessoas ficavam abanando os lenços
até as lanchas sumirem na curva do rio.
Desse dia em diante, o assunto no
Estirão Bonito era um só. Ninguém dava certeza. Cada um falava uma coisa.
Vinha. Não vinha. Vinha sim.
-- Se o rio baixar, ela não vem.
-- Mas ela vem sim. Disque já passou do
Poço Feio.
-- Vir ela vem. Mas não vai parar aqui
nem duas horas. Tem que descer rápido o rio senão fica encalhada.
-- Mas o rio não está baixando. Vocês
não estão vendo quanto pau está rodando. Cada cepa de árvore.
-- Então, vamos ver a marca que eu
deixei.
E lá iam todos para a beira do rio.
Todos? Não, cadê Bugrinho? Sumiu. Se bem que Bugrinho era assim mesmo. Não era
sempre que estava com a gurizada. Também pra tudo quanto era serviço chamavam
Bugrinho. Amanhecia tirando leite. Anoitecia recolhendo gado. Plantava cana.
Ajudava na moagem. Remendava canoa furada. Bugrinho pra cá. Bugrinho pra lá.
Faz rapadura. Mexe o doce. Cata ovo no quintal. Mesmo assim se dava um tempinho
lá estava ele com a criançada. Quietinho. Retraído. Mas sempre lá.
Mas, depois daquele dia na escola, ele
até gostava quando puxavam ele pra lá e pra cá pra tudo quanto é tarefa.
Chegava na aula em cima da hora e saía quase correndo quando a professora
tocava a sineta. Se pudesse voltar atrás, nunca, teria falado qualquer coisa.
Todo dia, ainda morria de vergonha. E se esquecia um pouco daquele dia sempre
tinha um pegando no seu pé.
-- Mentiroso!
-- Você gosta de aparecer, Bugrinho!
-- Deu pra inventar agora, é?
-- Saliente!
Bugrinho ficava mais quieto ainda.
Abaixava a cabeça e um instante antes de desviar os olhos, piscava o olho
esquerdo.
-- Sestroso!
Aí sumia. Nem as crianças nem os
adultos sabiam dar conta dele.
Sumia a pé ou andando a cavalo em pelo.
Por onde? Quando voltava distraído, distraído, parecia que a pergunta não era
com ele.
Ele estava lá. Imóvel no galho mais
alto. Olhando longe, sério. Parecia que não tinha nada a ver com as coisas aqui
de baixo. Ficava parecendo uma estátua já que só de vez em quando mudava a
posição do olhar.
A vista alcançava todo o grande descampado
quase sem nenhuma árvore. Só uma piúva solitária de longe em longe. Campo limpo
mesmo. Nem capão tinha. Umas maçarocas de árvores acompanhando um corixo. E só.
Lá no fim uma fieira horizontal de árvores bordando o horizonte de lado a lado.
Devia de ser com certeza, é sim, a mata da beira do rio. Ou de alguma baía
dele.
Ele gostava mais do cerrado, mas, às
vezes, também se aventurava na beira do rio. As suas árvores preferidas era as
três figueiras enormes que existiam no pátio do Estirão Bonito. Uma lá no
extremo rio acima. Outra no meio perto da casa grande e a terceira já junto da
cerca rio abaixo. As figueiras eram mesmo o reino das japuíras com seus ninhos
pendurados.
Gostava também de cruzar o canavial e
ir pousar naquelas grandes árvores com raízes à mostra que cresciam na beira
lodosa e cheia de folhas mortas das baías.
Andava por todos os cantos, porque era
o rei de tudo.
Bugrinho concordava que ele era o rei.
Ele nunca tinha visto um rei de verdade. Sabia só das aulas de história que
existiam reis. Reis de lugares distantes. Reis de histórias de fada. Reis do
reino animal. Mas Bugrinho sabia. Claro que ele era rei. Tinha o porte de rei.
Tinha o olhar altivo de rei. Movia a cabeça com decisão como um rei.
E
quando alçava voo com as suas asas estendidas. Ninguém se igualava a ele.
Aliás, ninguém se igualava a eles. Pois eram as várias espécies os gaviões.
Tinham os caramujeiros, que se fartavam, porque o que não faltava no Pantanal
eram caramujos. O gavião pescador, acastanhado, também chamado de velho, por
ter a cabeça branca. O criquiri, que, diziam, cortava os tendões das asas dos
filhotes de tuiuiú ainda no ninho e ficava esperando que eles caíssem ao tentar
o primeiro voo. Pequenos gaviões inteiramente pretos. Cracarás carijós,
rajadinhos para quem não sabe o que é carijó. O gavião de fumaça ou caboclo,
marrom com a ponta da asa preta.
E aquele que Bugrinho mais admirava, o
Macauã. Macauã comedor de cobra. Macauã era visto boa parte do ano. Do Macauã,
contavam o seguinte. Se o Macauã viesse, assentasse e cantasse em uma árvore
seca como aquelas em que os tuiuiús fazem ninhos, o ano seria de seca. Se, ao
contrário, o Macauã cantasse em uma árvore bem verde, o ano seria de muita
chuva.
Eram todos reis das aves, pensava
Bugrinho, e por todo lugar ele ia vê-los. Sabia onde encontra-los. Aliás, o que
não era difícil. Por ali, eles eram muitos. Bugrinho não conhecia outros
lugares mas não sabia porque tinha certeza de que ali era a terra dos gaviões.
-- Onde você andava, Bugrinho? – a
professora quer falar com todas as crianças.
A professora já estava na classe.
Criança por tudo quanto é lado.
-- Já está tudo certo. A lancha chega
amanhã às dez horas.
As crianças já arfavam
descompassadamente.
-- E se vocês prometerem se
comportar...
-- Vamos poder subir na lancha? – as
crianças não falavam mais, gritavam.
-- Melhor!
Um silêncio de ouvir mosca voando. Um
segundo depis daquela gritaria incontrolável.
-- O quê, professora?
-- Fala logo.
-- Vocês foram convidados para almoçar
na lancha.
Ninguém conseguiria controlar aquelas
crianças agora. Nem a professora tentava acabar com aquela euforia. Gritos,
assobios. Os olhos da professora estavam longe. Ela se lembrava de seu irmão.
Hoje já avô, morando longe.
Seu irmão tinha por muito tempo lidado
com navegação. Praticamente tinha passado a sua juventude em cima de uma
lancha. Subindo e descendo o rio, praticando o comércio. Trazia mercadorias,
sal, trigo, cerveja em garrafas brancas louçadas. Comprava doces, rapaduras,
melado. Recebia encomendas das moças. Trazia e levava notícias. Como era
querido por todos, esse irmão.
Pelas crianças, então, nem se fala.
Naquele tempo, se lembrava a professora, a comida servida nas lanchas era de
primeira, Ela não se esquecia nunca das uvas, das maçãs argentinas. Ah! Foi por
isso mesmo que ela havia se lembrado. As maçãs argentinas eram um dos motivos
pelos quais ele era tão querido pelas crianças.
Quando a lancha vinha subindo o rio.
Vindo de onde? De Cáceres, Corumbá? De Assunción no Paraguay? Quando a lancha
vinha subindo, as crianças já rumavam para a beira do rio. Subiam nas canoas.
Se não tinha canoa no porto da corruptela, se jogavam n água e seguiam nadando
rumo às embarcações.
Da proa da lancha que subia o rio,
surgia o seu irmão, o comandante, lançando maçãs para a gurizada. Cheio de
alegria, gritava a plenos pulmões com a sua voz levemente anasalada.
-- Manzanas, Manzanas argentinas.
A sua voz ecoava nos barrancos e o rio
parecia uma piracema de tanta criança. Crianças nadando contra a corrente feito
lontras brilhantes.
-- Professora, professora.
A professora repetia baixinho.
-- Manzanas, manzanas argentinas.
Chegou o dia. Chegou a hora. Como
custou. Mas chegou. Todos os pensamentos daquele pequeno mundo estavam
centrados na chegada das lanchas. As crianças, então, eram um cochicho só. Um
grupinho aqui, outro ali, de repente, todas as brincadeiras haviam perdido a
graça. A única graça era esperar. Iam, enfim, conhecer a grande maravilha.
Mas uma coisa não estava certa. Eles
não concordavam. Não conseguiam tirar da cabeça. E, de um modo que eles não
conseguiam compreender, aquilo os magoava. No fundo, bem lá no fundo. Da alma,
do coração. Onde também é a casa da mágoa. Estragava a alegria que a lancha
vinha trazer.
Como é que Bugrinho, aquele arigó,
podia já ter visto, aliás não só ter visto, mas ter conhecido tão bem uma
lancha? Como é, como funciona. Por dentro e por fora. Tão bem como eles
conheciam um carro de boi ou uma moenda. Parecia que aquilo até tirava a graça
da chegada da lancha.
Só
podia ser mentira. Gurizinho mentiroso. Querendo bancar o sabido. Merecia uma
lição.
-- Também acho.
-- Pra aprender.
-- Não judiem dele.
-- Ninguém vai judiar.
Foi assim. O travo no coração daquelas
crianças foi se juntando, se juntando e aquele odiozinho que podia se apagar
como um fósforo num terreiro bem limpinho, foi se alastrando, se encorpando, se
juntando como se fosse fogo no canavial.
-- Vai ser só um susto, um sustinho.
-- Mas ele nunca vai esquecer.
-- Vai ser até bom pra ele.
-- Metido.
-- Acha que é o bom.
Bugrinho vinha voltando de um daqueles
passeios solitários. Havia deixado a mata caminhando pelo sangradouro.
Sangradouros, vocês sabem, são aquelas valas que levam água para a baía na
cheia e devolvem a água na seca. Nessa época do ano, tinha um pouco de água e
lama, mas não estava um rio como costuma ficar no alto da cheia e era mais
limpo de andar do que por dentro da mata. Ainda tinha a vantagem de que, na
hora que, o sangradouro saísse no pátio da usina, ele poderia caminhar
sossegado, pois ninguém o veria da casa grande ou da escola já que ele não
tinha muita altura.
Veio vindo, se misturando com os feixes
de cana no engenho. Passou por trás da moenda. Foi quando caíram em cima dele
como um bando de urubus. Enfiaram em sua boca um pano sujo. Amarraram seus
braços. Suas pernas. Não conseguia gritar. Não adiantava espernear. Sentia
muitos braços segurando-o. Eram muitos. Conseguiram colocá-lo dentro de um saco
e saíram correndo com ele.
Bugrinho foi deixado num lugar quente e
abafado. Esforça daqui, esforça dali, conseguiu se livrar das cordas e sair do
saco. Mas de que adiantou. Estava preso. Conhecia aquele lugar. Era uma espécie
de depósito abandonado nos fundos da sala de purgar. Trancado a cadeado por
fora. Só uma pequena janela lá no alto, quatro vezes ou mais a altura de
Bugrinho. Não havia escada. Apesar da penumbra, logo descobriu que não havia
nada em pudesse subir.
Tentou forçar a porta. Nada. Estava
trancado. E bem trancado. Tudo tinha sido muito rápido, mas ele sabia quem
tinha feito aquilo com ele. Vira alguns rostos de relance. Ouvira os cochichos.
Que eram os seus colegas de escola ele sabia. Mas por quê? Nenhum era seu amigo
de verdade. Pra falar a verdade, Bugrinho nem sabia direito o que era isso.
Mas, se sabia que o desprezavam, não conseguia atinar de alguém que tivesse
raiva dele a ponto de fazer aquilo.
Devia ser uma brincadeira. Sentou-se
encostado à parede mas como estava cansado com a caminhada e ali estava
quentinho logo ferrou no sono.
Acordou assustado, suado, com aquele
barulho. Que era aquilo? O som se repetiu e ele já completamente desperto teve
a certeza. Como que não iriam se lembrar. A lancha. O apito da lancha. Devia
vir subindo o rio e apitando. Levantou-se correndo e tentou abrir a porta. A
porta estava trancada. Ele tinha até esquecido.
A lancha apitou de novo. Devia estar
quase chegando.
Bugrinho fez então o que nunca tinha
feito na vida. Gritou. Gritou uma, duas vezes. Gritou uma porção. Gritou muitas
e muitas vezes.
Mas aquele depósito em que o trancaram
era longe de tudo. A casa grande, a escola ficava do outro lado do engenho,
mais perto do rio. Depois, não devia ter ninguém nas casas. Todo o povo do
Estirão Bonito já devia estar plantado na beira do rio vendo a lancha chegar.
Bugrinho continuou gritando, gritando.
Mesmo rouco continuava gritando. Até que seu desespero se transformou num
grande pranto.
A lancha vinha subindo o rio pelo lado
esquerdo, que deste lado que ficava o canal do rio. Por isso, sua visão ainda
estava encoberta pelos sarãs. Mas as crianças nadavam até o meio do rio e de lá
gritavam.
-- Vem vindo. É linda!
-- Enorme!
-- Tem duas chatas!
O povo todo do Estirão Bonito estava enfileirado
na beira do rio, uns no sol quente, outros se abrigando na sombra das
figueiras. Por fim, o comboio, a lancha e suas duas chatas, surgiu aos olhos de
todos. O comandante acenava com uma das mãos e segurava com a outra o timão. As
hélices submersas faziam uma espuma branquinha e a água rebojava e depois
virava uma esteira de borbulhas que ia se desfazendo aos poucos já longe
parecendo um véu de noiva.
Após manobrar lentamente, por fim
atracou.
Os tripulantes e passageiros começaram
a descer com cuidado pelas tábuas que faziam as vezes de prancha, unindo a
embarcação à margem do rio.
As crianças tiveram direito a tudo que
haviam prometido. Puderam andar por todos os lugares. Descer à casa de máquinas
e ver o motor poderoso e fedorento. Subir aos camarotes no segundo andar.
Cuspir lá de cima e ver as piquiras se assanhando, pensando que era comida.
A professora, muito bem vestida e
emocionada, passado e presente passeando em seu coração, conversava com o
comandante.
Se almoçaram na lancha? Claro que
almoçaram. Passou tudo tão rápido como um sonho, que terminou com as lanchas
usando toda a largura do rio para fazer as manobras e sumir, bruma da manhã
sobre o rio, rapidamente rio abaixo.
Depois. Muito, muito depois que as
lanchas sumiram lá na curva do rio, lá longe onde terminava o estirão. Depois
que todos os adultos já tinham subido e só as crianças continuavam na beira do
rio, Depois que as crianças já tinham enjoado de olhar aquele estirão que nunca
mais ia ser o mesmo sem as lanchas.
Depois foi que uma das crianças se
lembrou.
-- Bugrinho.
-- O que é que tem Bugrinho?
-- Quedê?
-- Quedê o que?
-- Bugrinho. Ele não estava aqui. Você
não soltou?
-- Eu? Você que ficou de soltar.
-- Eu deixei a chave com você, lembra?
-- Eu guardei a chave no lugar. Não
ficou nada combinado.
As crianças se entreolhavam assustadas.
Era pra ser só uma brincadeira. Era prá soltá-lo no último minuto. E agora,
coitado do Bugrinho. Coitado deles. Aquilo agora depois daqueles momentos de
felicidade. O melhor dia de suas vidas.
-- Agora...Oh! Meu Deus – gemeu uma das
meninas, que vontade de chorar.
-- Agora, agora... Caga na mão e joga
fora – respondeu irritado um dos meninos mais velhos.
Que maldade tinham feito, que coisa
muito ruim, ninguém nunca tinha feito uma coisa tão ruim assim. Seus olhos se
falavam assim, sem saber o que fazer.
Até que um deles desabalou na carreira
rumo ao depósito seguido por todas as crianças. Suando, correndo, ofegantes e
silenciosas.
Estacaram em frente ao depósito.
Encostaram os ouvidos na porta. Nada. Nenhum ruído. O cadeado continuava
fechado.
-- Bugrinho! Bugrinho!
Nada.
-- Me dá a chave.
Empurraram a porta que foi se abrindo
com um guinchado. Lá dentro estava quase escuro. Não dava pra ver quase nada.
Aí seus olhos foram se acostumando com a penumbra e eles foram distinguindo o
saco, as cordas, o pano sujo que eles tinham enfiado na boca do Bugrinho.
-- Quedê ele?
O depósito não era grande e como estava
abandonado não havia nenhum móvel atrás do qual Bugrinho pudesse se esconder.
Nem nenhuma tralha...
-- Bugrinho! – chamaram com a voz
trêmula.
Não havia nenhuma outra porta e aquela
pela qual eles tinham entrado estava trancada quando eles chegaram.
-- Meu Deus, quedê Bugrinho?
As crianças suavam frio. O que estava acontecendo?
-- Você soltou Bugrinho? Fala!
Todas as crianças estavam arrepiadas.
-- Não soltei. Juro!
Os olhos já tinham se acostumado à
penumbra. Eles vasculhavam com olhos atentos o salão vazio. Em seguida,
elevaram os olhos para a janela lá no alto. Era impossível que Bugrinho, tão
pequeno, sem ter onde subir, pudesse ter fugido por ali.
Ei! Mas a janela não estava vazia. Um
pássaro estava pousado nela.
Um pequeno gavião. Talvez filhote.
Imóvel! Olhando longe. Sério.
Parecia que não tinha nada a ver com
aquelas crianças lá em baixo. Talvez nem as tivesse visto. Parecia uma linda
estatueta de madeira envernizada.
As crianças também pareciam estátuas,
pequenas estátuas morenas feitas do barro do barranco. O pequeno gavião olhou
as crianças com aqueles olhos redondos, um pouco puxados como de um pequeno
índio. Em seguida, abaixou a cabeça e, um momento antes de desviar os olhos,
piscou o olho esquerdo.
As crianças, de olhos arregalados e
bocas entreabertas, entretanto permaneciam mudas.
O gavião encolheu-se preparando para
voar. Deu impulso e estendendo as asas alçou voo.
Como um verdadeiro rei.
Escutei esta história de um velhinho
bem velhinho. Desconfio que ele era uma dessas crianças. Talvez não. Talvez
fosse apenas um velho que gostava de inventar histórias. Às vezes, eu pedia que
ele me contasse a história de Bugrinho, mas, às vezes, eu pedia pra ele contar
a história de Macauã. Ou Macamã. O que é a mesma coisa.
SCAFF, I C. Macauã. IN:
CARVALHO, J. M. K. de. LEITE, M. C. S., (Sel. e org.). Na margem esquerda do
rio – contos de fim de século. São Paulo: Via Lettera, 2002. p. 71-83.
Entendendo o conto:
01 – Quem é Bugrinho e quais
são suas principais características físicas e de comportamento no início do
conto?
Bugrinho é um
menino, de uns onze a doze anos, que chegou ao Estirão Bonito muito pequeno.
Ele é quieto e calado, com olhos redondos e um pouco puxados como os de índios,
e tem o sestro de piscar o olho esquerdo antes de desviar o olhar.
02 – Qual a importância da
escola no Estirão Bonito para Bugrinho e como ele se comporta nela?
A escola é o
único "privilégio" de Bugrinho. Apesar de nunca faltar, ele permanece
calado e é um mistério se realmente aprende, pois ninguém lhe tomava lições.
03 – Quais lendas e medos
assombram as crianças do Estirão Bonito?
As crianças têm
medo do Negrinho d’água e do Minhocão, associados ao sumiço e morte de duas
crianças que foram encontradas na beira do rio.
04 – Qual é a grande novidade
que a professora anuncia e por que ela causa tanta comoção nas crianças?
A professora
anuncia a chegada de duas lanchas, uma com motor e outra, a "chata",
para mercadorias. Isso causa comoção porque há muito tempo uma lancha não subia
o rio até ali, e a maioria das crianças nunca havia visto uma.
05 – Qual é a reação de
Bugrinho ao anúncio da lancha e o que acontece quando ele tenta compartilhar
sua experiência?
Bugrinho surpreende a todos ao dizer que
já subiu em uma lancha, causando espanto, risinhos e cochichos entre as
crianças. No entanto, ao tentar contar sua experiência, ele se intimida e não
consegue articular as palavras, sendo alvo de desconfiança e zombaria.
06 – Como a professora, em sua
fala, relaciona a chegada das lanchas com suas próprias memórias e afetos?
A professora se
emociona ao falar das lanchas, lembrando de seu tempo de moça e de seu irmão, o
comandante, que trazia mercadorias e, principalmente, maçãs argentinas, sendo
muito querido pelas crianças da época.
07 – Qual o motivo que leva as
crianças a armarem uma "brincadeira" cruel com Bugrinho?
As crianças ficam
magoadas e irritadas com a suposta mentira de Bugrinho sobre já ter visto uma
lancha. Elas sentem que ele está "bancando o sabido" e que isso
"tira a graça" da chegada da lancha para elas, decidindo que ele
"merecia uma lição".
08 – Onde e como Bugrinho é
capturado e trancado pelas outras crianças?
Bugrinho é
capturado no pátio da usina, ao passar por trás da moenda. As crianças o
atacam, enfiam um pano sujo em sua boca, amarram-no e o colocam dentro de um
saco, trancando-o em um depósito abandonado com uma janela alta e sem escada.
09 – O que Bugrinho faz ao
ouvir o apito da lancha, já que está preso?
Ao ouvir o apito
da lancha, Bugrinho tenta forçar a porta e, ao perceber que está trancado e que
a lancha está chegando, ele grita desesperadamente muitas e muitas vezes, até
ficar rouco e chorar.
10 – Qual é a revelação final
sobre Bugrinho e como ela se conecta ao título do conto?
A revelação final
é que Bugrinho não está mais no depósito. Em vez disso, as crianças veem um
pequeno gavião pousado na janela alta, que as observa e pisca o olho esquerdo,
exatamente como Bugrinho fazia. Isso sugere que Bugrinho se transformou em um
gavião Macauã, uma das aves que ele tanto admirava e que era considerada
"rei" entre os gaviões, conectando-se diretamente ao título
"Macauã".