Crônica: O mandacaru na sala de jantar
Arnaldo Jabor
Ontem eu comprei um mandacaru. Isso
mesmo. Sempre quis ter um cactus em casa, mas me diziam: "Dá azar..."
E eu desistia. Mas ontem passei num florista quase em frente a meu prédio no
Rio e perguntei: "Tem cactus?" Ele abriu um caminho entre samambaias
e tinhorões e apontou-me o mandacaru. Fiquei fascinado pela planta. Não era um
cactus qualquer; era um personagem do Nordeste, uma famosa planta brasileira.
O leitor já viu um mandacaru? Esse deve
ter um metro e sessenta, reto, com três braços abertos, uma pele verde-oliva
entre plástico e couro-de-lagarto, aberto em gomos sinuosos e cravejado de
pequenos espinhos. Em minha casa há um enorme quadro amarelo com um sol em
contraluz e eu o coloquei ao lado, de modo a criar uma paisagem de caatinga na
minha sala. Então, feliz com meu dia de jardineiro, resolvi escrever meu artigo
semanal; mas fui tomado por um grande tédio.
Escrever o quê sobre essa paralisia
histórica mundial que finge ser dinâmica, mas apenas roda no mesmo erro, como
um aleijado caído no chão, girando em volta de si mesmo, entre Bush e Osama,
entre Lula e tucanos.
Do fundo da sala, meu mandacaru se
postava como uma sentinela, ali, junto ao quadro ensolarado de Thereza Simões.
E ele me despertou a fome de alguma coisa permanente, que viajasse no tempo dos
milênios, nesse mundo caindo em epilepsia histórica. E resolvi escrever sobre
ele.
Fixei-me no mandacaru, aproximando-me
como um zoom. Ali estava ele, há milhões e milhões de anos, imóvel, fora do
tempo e da história, um observador mudo. Olhei bem a forma do mandacaru. E sua
visão deu-me um grande alívio, o prazer de estar em contato com um filho da
natureza como eu, companheiros há bilhões de anos, uma solidariedade discreta,
como um guardião me protegendo.
Cheguei mais perto, passando a mão em
sua pele lisa e dura como o dorso de um dragão, crivado de espinhos que palpei
delicadamente, como a um bicho manso, mas que pode morder de repente. Minha mão
tremia neste contato solitário, nós dois a sós na madrugada do Rio, chovendo lá
fora - uma conjunção quase amorosa, ele, quieto e dócil e eu curioso como um
macaco diante do mistério. Ele é um indivíduo vivo, sim, tanto que cresce,
floresce quando vem chuva no sertão, tem cardos para o mundo perigoso, mas não
toma a iniciativa. Só espera. Percebo que tudo nele tem causas, razões milenares,
esculpidas pela necessidade de existir. Quantos milênios se incorporaram na sua
vontade de viver? O verde escuro tem uma razão, as volutas de seu corpo, seus
braços em cruz, apelando para os ares, tudo é um relato cifrado para mim,
narrando os eventos que passaram por milhões de séculos. A história da natureza
está toda ali, contada por seus gomos e espinhos.
Ao homem que me vendeu, perguntei se
tinha de regar. Não, ele não precisa de água, nem de nada. O meu mandacaru não
come nem bebe. Só vive. "Por que" – penso, metafísico. Para que? Para
nada, nos ensinou Darwin, abrindo o caminho do "alegre saber"
desesperançado para a filosofia. Nada.
Ele é elegante, frugal e forte como um
sertanejo – a comparação inevitável. O mandacaru é um sertanejo de braços
abertos diante do nada, sob o Sol, existindo em pleno vazio – como nós... Só
que ele não tem ilusões de sentido, coisa de humanos. Ele é uma lição
incompreensível, um segredo insuportável sobre nosso destino que não podemos
encarar. Mas, se ele está fora da história – me pergunto –, por que então os
espinhos? Ele se defende de que, há milhões de anos? O mandacaru está sempre
pronto para a ação. Ele não ataca, mas contra-ataca os bichos que tentaram
mascá-lo, dentes primitivos que interrompiam a ordem que seus genes lhe davam:
"Exista! Viva!"
Por isso ele está sempre "en
garde", com bracinhos curtos, como um soldado, um espadachim. Ele não
venta, não verga. Ele não serve para nada, além de existir. Não, não; suas
flores servem sim, anunciando chuvas. Seus frutinhos são insípidos e ele só
serve de comida em último caso, humilhado em sua pose meio humana, sendo
esquartejado, cadáver verde, raspado de espinhos para alimentar os bois na
seca.
Mas, aqui, na minha sala ele está longe
de seu deserto, ele está sozinho, parece mais um retirante, na presença dos
vasos de louças, dos livros, sofás.
Que faz esse pau-de-arara aqui? Ele é
um intruso, mas não parece constrangido em sua dignidade agreste. Ao contrário,
tudo fica mais nítido, porque ele parece coisa, mas está vivo. Vivo. É isso que
me assombra, à noite, quando chego e o vejo em sua vigília, me esperando.
Dou-lhe um "olá" mudo e gosto que ele esteja ali, amigo sem nada
pedir. À sua volta abre-se um Nordeste em minha sala, lembrança de vaqueiros,
cangaço, Lampião e Graciliano. Ele me religa com uma natureza viril, discreta,
me ensinando coragem. E eu não estou mais sozinho. Ele é o sr. "Cereus
Jamacaru" e eu o Arnaldo. Aprendo com ele a resistir aos ataques do amor
virado em ódio, com ele aprendo que não há esperança, nem salvação, mas que
viver é uma ordem que obedecemos e é até um prazer silencioso, ao Sol da
caatinga ou no canto de minha sala. De noite, durmo e sei que há dois viventes
em casa. Eu e ele. Não sei até quando, pois ele talvez me sobreviva e fique
para sempre na sala, esperando alguém que o leve para um destino novo e que
talvez o assassine.
Jabor, Arnaldo.
Pomopolítica: paixões e taras na vida brasileira. Rio de Janeiro. Editora
Objetiva, 2006. p. 37.
Entendendo a crônica:
01 – Qual é o motivo pelo qual
o autor comprou um mandacaru para sua casa?
O autor comprou
um mandacaru porque sempre quis ter um cactus em casa e decidiu superar a
crença de que isso trazia azar.
02 – Como o autor descreve o mandacaru
em sua casa?
O autor descreve
o mandacaru como uma planta imponente, com cerca de um metro e sessenta de
altura, pele verde-oliva, espinhos e braços abertos, criando uma paisagem de
caatinga na sala.
03 – O que o autor sente ao
observar o mandacaru?
O autor sente uma
conexão com o mandacaru, vendo-o como um ser vivo que existe há milhões de
anos, fora do tempo e da história, e experimenta uma sensação de solidariedade
discreta com a planta.
04 – Qual é a reflexão
filosófica que o autor faz sobre o mandacaru em relação à existência humana?
O autor reflete
sobre a existência do mandacaru como uma lição sobre a falta de sentido na
vida, em contraste com a busca humana por significado. O mandacaru simplesmente
existe, enquanto os humanos procuram desesperadamente por sentido.
05 – Como o autor compara o
mandacaru a um sertanejo?
O autor compara o
mandacaru a um sertanejo, descrevendo-o como elegante, frugal e forte, assim
como um sertanejo. Ambos enfrentam a vida em condições difíceis, mas o
mandacaru não tem ilusões de sentido, ao contrário dos humanos.
06 – Quem é o autor do texto?
Arnaldo Jabor.
07 – Você já viu um mandacaru?
Resposta pessoal do aluno.
08 – O autor se diz entediado
com a história mundial. Por quê?
O autor se sente
entediado com a história mundial porque ele a percebe como uma paralisia
histórica que finge ser dinâmica, mas apenas repete os mesmos erros e
conflitos, como os envolvendo figuras políticas e eventos como os mencionados,
como Bush, Osama, Lula e tucanos. Ele sente que o mundo está preso em uma
repetição monótona e desesperançada de eventos.
09 – O cactus na sala de
jantar é comparado a um retirante nordestino. Por quê?
O cactus na sala
de jantar é comparado a um retirante nordestino porque, mesmo estando fora de
seu ambiente natural e no conforto da sala de jantar, o mandacaru representa um
símbolo da resistência e da força dos habitantes do Nordeste brasileiro, que
enfrentam condições adversas e desafiadoras. A planta, assim como um retirante,
mantém sua dignidade agreste e ensina lições de coragem e resistência, mesmo
diante da ausência de esperança ou salvação, lembrando o autor das histórias de
vaqueiros, cangaço e personagens como Lampião e Graciliano.