Crônica: Cabeça de porco, cabeça dinossauro e outras cabeçadas
Marciano Lopes
Aqui não tem terremoto. Aqui não tem
revolução. É um país abençoado onde todo mundo mete a mão. ("Bem
Brasil", Premeditando o Breque – 1985)
Pois é, passados mais de dez anos,
parece que a música do Premê (como é conhecida a banda) continua atual, mas com
uma ressalva: já não dá mais pra dar aquela gargalhada de antes. Continuamos
sem terremoto (salvo alguns leves tremores) e sem revolução, mas estamos
chegando lá, logo seremos primeiro mundo, afinal, pelo menos agora já temos
terrorismo. Só não vê quem não quer. A guerra civil, antes mais restrita às
favelas de Rio e São Paulo, por um lado, e à luta no campo, por outro, começa a
tomar foros nacionais... Os ataques coordenados pelo PCC hoje extrapolam o
espaço da grande São Paulo e até mesmo do estado de São Paulo. E a tática é
evidentemente terrorista, mas com uma pequena desvantagem com relação a outras
ações do mesmo gênero espalhadas pelo nosso azulado planeta: a ação não tem
nenhum programa político, nenhuma plataforma ou proposta concreta que aponte
para uma possível saída do buraco. É apenas uma truculenta reação à truculência
do Estado e aos séculos de opressão, exclusão e miséria. E as cabeças de
dinossauro com suas panças de mamute – que mandam, desmandam e sugam este país
– parecem não querer ver que o barco tá tá tá descendo a corredeira... Mas por
que fazer algo pra mudar a aviltante realidade brasileira se do jeito que tá tá
tão bom e tá tá dando tanto lucro... Segundo o ponto de vista – polemicamente
cristão – do antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares,
ex-Subsecretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro e
exSecretario Nacional de Segurança Pública, a violência e a estupidez dos
excluídos não é aceitável, mas deve ser perdoada, pois expressa a revolta de
quem nunca teve uma chance efetiva de ter sua identidade, cidadania e dignidade
respeitadas. Diversamente, a violência das elites – que lucram com a corrupção,
a desigualdade e a ignorância – é inaceitável, pois nada a justifica. Em
Araraquara, preso é içado pelo teto, em um pavilhão onde 1.600 homens se
aglomeram num espaço para 160. (Pequena nota escondida próxima ao canto da
página C7 do jornal Folha de São Paulo, 13 de julho de 2006). Sem dúvida, não é
fácil encontrar caminhos, mas ao menos é necessário ter vontade de mudar. Para
isso, o primeiro passo é reconhecer as razões do Outro, a condição indigna em
que os marginalizados estão mergulhados, ou, no mínimo, abrir os olhos para a
revolta e o ódio que crescem vertiginosamente, se espalhando por todo o país. A
cultura da favela e dos morros cariocas hoje é patrimônio nacional – ou ao
menos está se encaminhando rapidamente para esta condição. Quem não acredita,
que leia os relatos feitos por Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso Athayde em
Cabeça de Porco (Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2005), título cuja expressão
significa “situação confusa e sem saída” na gíria das favelas cariocas. A
seguinte passagem, em que Celso Athayde relata a visita a uma favela de
Joinville, em Santa Catarina, é bastante exemplar disso: Ele usava
(referindo-se ao dono do morro) uma espada muito parecida com aquela que a
imprensa mostrou, muitas vezes, como sendo a que matou Tim Lopes – se era
mesmo, ninguém sabe. No início, achei que fosse coincidência, mas quando
começamos a filmar. Percebi que eles usavam as mesmas expressões do Rio de
Janeiro. Chamavam os inimigos de “alemão”, diziam-se do “Comando Vermelho”;
seus inimigos eram nomeados “Terceiro Comando”, e muitas outras gírias
totalmente cariocas eram empregadas. Eles reproduziam com precisão o dialeto
das favelas cariocas. Era a primeira vez que tínhamos visto um caso como esse,
parecia que os comandos do Rio de Janeiro tinham franchaises espalhadas por lá
(Cabeça de Porco, p. 55). Aliás, não é preciso ler este e outros livros do gênero
para tomar consciência desta realidade, basta ler criticamente os jornais.
Entretanto, é inegável que livros e documentários com Carandiru o Cabeça de
Porco, O abusado, Falcão - meninos do tráfico, Cidade de Deus (os dois últimos
levados ao cinema) podem contribuir em muito para que a classe média e as
elites possam ver a cara deste Outro Brasil sem os estereótipos da imprensa e
do poder estatal. Estereótipos que reduzem os excluídos à condição de bandidos
e monstros (engraçado, quando se trata de criminosos do colarinho branco, que
roubam milhões e também matam, digo, mandam matar, tais palavras não são
usadas...) e assim promovem a elevação do muro que separa estes brasis e
garante a ilusória tranquilidade do cidadão, conforme argumenta Luiz Eduardo
Soares. Em sua opinião, aquele, juntamente com o Estado, fica
desresponsabilizado pelo agravamento da barbárie. Afinal, malandro
sem-vergonha, ladrão, viciado e assassino são apenas os outros... Quando algum
fato similar ocorre em nosso meio, trata-se de uma aberração, algo
inexplicável, algum desvio genético ou trauma de infância... O MAL se encontra
apenas no Outro... A apologia – feita via mídia – do poder, do sexo, do luxo,
do jeitinho brasileiro, do consumo desenfreado como fórmula de felicidade estranhamente
não diz respeito ao cidadão, mas somente ao Outro... Não queremos olhar a nossa
face obscura, e assim muitos de nós arrancamos nossos olhos como se fôssemos um
Édipo às avessas. Como esperar que as pessoas que não têm nada a perder, que
não participam nem nunca foram convidadas a participar do pacto social
compartilhem do mesmo?! Como esperar que estas pessoas respeitem as leis e a
alteridade se nunca tiveram a chance de saber o que é isso e, pior, se veem
todos os dias aqueles que não precisariam agir desta forma fazerem tais
barbaridades? Quando muitos “bandidos” vão incendiar um ônibus, mandam que seus
passageiros saiam, pois o alvo não são eles. Mas quando a polícia entra na
favela, muitas vezes entra atirando para perguntar depois. (...) em São Paulo,
em 2003, houve 1.191 mortes provocadas por ações policiais, mais de 65% delas
com características de execução. Em 2004, houve 984; em 2005, foram 807 mortes
(“Estes criminosos não têm ideologia” – entrevista de Luiz Eduardo Soares
concedida a Pedro Souza Tavares, Diário de Notícias, 21/6/2006, p. 18). A
manchete da Folha de São Paulo do dia 13 de julho estampava em letras
garrafais: “NOVOS ATAQUES DO PCC MATAM 7”. Número desprezível quando pensamos
no número de favelados – muitos dos quais não são soldados do tráfico – que
foram mortos sumariamente pela resposta das polícias aos ataques feitos há dois
meses atrás. Faz lembrar o discurso dos governos norte-americano e de Israel. O
primeiro, em poucos anos de ocupação do Iraque, não perdeu muito mais que umas
centenas de soldados – fato que é alardeado como um horror que justifica o
assassinato de milhares de civis do país que tem a sua autonomia e dignidade
diariamente ofendidas pelo mesmo. Com respeito a Israel não é diferente. Porque
dois soldados foram sequestrados por terroristas do Hizbollah, o governo
israelense julga-se no direito de bombardear alvos civis matando inúmeras
pessoas no Líbano... – e isto não é barbárie?! Muito estranha esta lógica.
Talvez sejamos muito burros e cabeçudos, mas também gentis homens como Zinedini
Zidane dão as suas cabeçadas – e, no caso dele, com razão, provavelmente.
Afinal de contas, ele não tem sangue de “cucaracha”, né? Enquanto isso, o
governador Cláudio Lembo insiste em dizer que tá “tudo dominado” (opa, foi mal!),
quero dizer: “tudo sob controle”... He he he, como diz o Macaco Simão, “a genti
sofri mais goza”! A crônica “Cabeça de porco, cabeça dinossauro e outras
cabeçadas”
está disponível em: http://marcianolopes.blogspot.com/2011/01/apesar-dos-fogos-ainda-atual.html
acessado em 22/07/2011.
Entendendo a crônica:
01 – Qual é a finalidade da
crônica “Cabeça de porco, cabeça dinossauro e outras cabeçadas”?
A finalidade da
crônica "Cabeça de porco, cabeça dinossauro e outras cabeçadas" é
fazer uma reflexão sobre os problemas sociais no Brasil, especialmente a
violência, a desigualdade e a exclusão. O autor busca chamar a atenção para as diferenças
entre os diferentes estratos sociais e questionar a forma como a sociedade lida
com essas questões.
02 – Qual é o autor do texto?
Analisando o discurso do narrador, é possível identificar o posicionamento do
mesmo?
O autor do texto
é Marciano Lopes. Analisando o discurso do narrador, é possível identificar o
seu posicionamento crítico em relação à situação social e política do Brasil.
Ele expressa preocupação com a violência, a desigualdade e a corrupção, e
critica a postura das elites e do Estado em relação aos problemas sociais.
03 – Assim como o tema dos
raps “Contraste social” e “Tempos difíceis”, na crônica “Cabeça de porco,
cabeça dinossauro e outras cabeçadas” podemos perceber a diferença entre dois
“brasis”. Aponte essas diferenças.
O autor destaca
as diferenças entre dois "brasis": um representado pelas elites e
pela classe média, que muitas vezes se distanciam das realidades das favelas e
das camadas mais pobres da população, e outro representado pelos excluídos,
marginalizados e vítimas da violência e da miséria. Ele critica a
estigmatização dos excluídos como bandidos e monstros, enquanto as ações das
elites, incluindo a corrupção, são muitas vezes ignoradas ou minimizadas.
04 – A crônica “Cabeça de
porco, cabeça dinossauro e outras cabeçadas” faz uma reflexão de problemas
sociais que ocorrem em nosso país. Apesar da seriedade do assunto, o autor
emprega uma linguagem leve, praticamente dialoga com o leitor. Um dos recursos
estilístico que emprega é a ironia. Identifique ironias que provocam efeitos de
humor na crônica.
O autor utiliza a
ironia ao longo da crônica para provocar efeitos de humor, mesmo ao abordar um
assunto sério. Por exemplo, ele ironiza o otimismo do governador Cláudio Lembo
ao dizer que "tá tudo dominado" (fazendo referência ao jargão do
tráfico) e comenta que "a genti sofri mais goza" de forma irônica.
Essas ironias servem para destacar a distância entre a realidade social e a
postura das autoridades.
05 – Veja que o autor do texto
utiliza duas formas diferentes de linguagens para compor o texto. De que tipo
são essas variações linguísticas?
O autor utiliza
duas formas diferentes de linguagem na crônica: uma mais formal, reflexiva e
crítica ao abordar os problemas sociais e políticos, e outra mais coloquial e
irônica ao se referir a situações específicas, como o discurso do governador.
06 – Segundo a crônica, os
grupos dominantes sugam o país e lucram com a miséria. Por outro lado, o PCC “é
uma reação á truculência do Estado e aos séculos de opressão, exclusão e
miséria”. Você concorda? Dê sua opinião.
A opinião do
autor, expressa na crônica, é de que os grupos dominantes no Brasil se
beneficiam da corrupção, desigualdade e exclusão social, enquanto o PCC
(Primeiro Comando da Capital) é uma reação à truculência do Estado e à opressão
histórica. Ele chama a atenção para a necessidade de compreender as razões por
trás da revolta dos excluídos e argumenta que é importante reconhecer a
realidade das favelas e das camadas mais pobres da população. Sua crítica está
voltada para a postura das elites e do Estado em relação aos problemas sociais.
A concordância ou discordância com essa opinião pode variar de acordo com a
perspectiva de cada leitor.
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