Texto: CEM DIAS ENTRE CÉU E MAR -
Fragmento
O ranger do velho caça-minas de madeira
contra o cais me roubou o sono. O movimento de proas e mastros dos pesqueiros
atracados lado a lado produzia uma estranha música de ruídos e estalos que
hipnotizavam os ouvidos. Embora uma fina névoa descansasse sobre as águas
silenciosas do porto, e não houvesse um pingo de vento, o balançar dos barcos
anunciava que fora da baía o mar estava agitado e as grandes ondas do sul
tinham voltado.
Impossível dormir nessa primeira noite
a bordo; com a luzinha da cabine acesa, e uma lanterna na mão, procurava pôr
ordem na infinidade de sacolas que ainda aguardavam um endereço certo no meu
minúsculo compartimento de bagunças. Vesti mais uma blusa – frio – e, soltando
um pouco o cabo da âncora e as amarras que me ligavam ao barquinho do capitão
do porto, encostei no cais principal, a poucos metros apenas. Por entre as
sombras dos vagões aí estacionados surgiram dois vultos:
― Amyr!‖. Eram Gunther e Marion,
encapotados, que vieram me acordar. ― Amyr, o escritório de Aduana está
abrindo! Os papéis!...”
― Bom dia‖, respondi.
E com passaporte, diário e livros de
bordo debaixo do braço, subi os degraus gelados da escadinha de ferro, e fomos
atrás da única luz acesa no porto. O oficial da Imigração, especialmente
arrancado da cama para a ocasião, e com cara de quem não estava muito
acostumado a madrugar, colocou as estampilhas, carimbou e finalmente assinou os
meus papéis. E assim, às seis horas do dia 10 de junho de 1984, uma gelada
manhã de domingo, eu estava oficialmente autorizado a deixar o porto de
Lüderitz, na Namíbia (antiga África do Sudoeste), com destino ao Brasil,
remando.
Tenso, andando em direção ao cais,
senti que aqueles seriam os meus últimos passos em terra firme. O cheiro de
porto no escuro, a areia quente sob os pés, os vagões enferrujados, o barulho
de vozes humanas – quando novamente? Não sabia, e tampouco importava naquele
momento. Estava nervoso, impaciente, desesperado para ir embora. A saída fora
autorizada, a partir de Dias Point, e para lá seria rebocado por um veleiro, o
Storm Vogel. Na ponta do cais, já estavam todos esperando: Helena com as
crianças, a querida Anne Marie e os inesquecíveis amigos de Lüderitz com caras
amassadas de sono e alguns olhos molhados. Tinha um enorme nó na garganta, e
simplesmente não pude me despedir de ninguém: a voz não saía. Pulei no barco e,
antes que me afastasse, Helena atirou uma chuva de flores:
“― É para Iemanjá! Faça uma linda
viagem, Amyr!”
Gunther, talvez o único entre aquelas
pessoas que não traíra uma ponta de nervosismo, não parava quieto e berrava:
“― Cuide-se direito! Não deixe que te
peguem! Queremos visitá-lo em Paraty”.
De um veleiro antigo, de casco negro e
que eu mal podia enxergar no escuro, ouvi um anônimo:
“― Boa sorte, homem!”.
Agradeci em silêncio. Aos poucos o cais
foi diminuindo. Fundindo-se com contornos áridos das dunas que cercam a cidade.
Passamos a última boia de indicação do porto, com sua luzinha vermelha e o
eterno bater do sino que orienta os pesqueiros perdidos na neblina. O dia
começou a nascer, envolto em uma neblina baixa que fazia as altas dunas do
deserto parecerem nuvens sobre o horizonte.
Focas e golfinhos surgiram brincando em
torno do barco e, ao dobrar Dias Point e Halifax Island, onde vive uma
simpática colônia de pinguins, o mar subitamente mudou. O vento forte e as
ondas formadas anunciavam o limite das águas abrigadas da baía de Luderitz, o
oceano livre pela frente. Do potente farol-apito, junto à cruz de Dias – que
nas noites de tempestade e nos dias de neblina, tão frequentes nessa estranha
costa, orienta a entrada dos navios –, ouvi pela última vez a África, uma série
de longos e distantes apitos, a saudação da torre que aos poucos desaparecia,
um continente que já não mais avistava, mas que ainda podia ouvir ... Adeus,
África!
Começou, então, a despedida da
tripulação do Storm Vogel. Catastrófica despedida. Eu havia esquecido meu
casaco vermelho e uma máquina fotográfica no veleiro, antes de deixar o porto,
e pedi aos berros, por causa do vento que não parava de aumentar, que me
passassem o material. Com o mar cada vez mais agitado, uma aproximação
tornava-se tarefa delicada. Atirei um cabo, para auxiliar a manobra, mas ao ser
puxado por barlavento desci uma onda em velocidade e entrei com o bico de proa
no costado do veleiro, abrindo um pequeno rombo. Ficaram todos apavorados com o
choque, e mais ainda com o furo no casco, e então tentaram passar em rumo
oposto ao meu.
Não sabia exatamente o que fazer; as
ondas começavam a preocupar, mas era certo que eles estavam com excesso de pano
para aquele vento. Só então percebi que eram completamente inexperientes e não
entendiam nada de vela.
Com o veleiro adernado pelo vento, sem
ângulo de visão e em grande velocidade, o comandante errou a manobra e veio
exatamente em cima de mim. Proa com proa, um choque tremendo, pensei que fosse
afundar. Todas as coisas soltas dentro do barco voaram, e a antena de rádio,
instalada do lado de fora, partiu-se ao meio e caiu na água. Junto, foi um
bobina para comunicados a curta distância, em 40 metros, que ganhei do Gerd
(formidável radioamador de Lüderitz) e que serviria para lhe mandar notícias
nos primeiros dias.
Estava apavorado. O cockpit cheio de
água, as ondas arrebentando, um frio tremendo, e a antena principal perdida.
Meu Deus, que começo! Descontrolada com a força do vento, com velas panejando e
escotas voando, a tripulação resolveu mudar de tática e, agora com o vento a
favor, avançou de novo em minha direção. Fiquei histérico, não queria mais o
casaco nem coisa alguma. Queria que fossem embora, aquilo estava perigoso
demais! Faltavam só capa e lança para parecer um duelo — a capa, aliás, estava
com eles — e vieram dessa vez em sentido contrário, com todas as velas cheias,
levantando espuma pela proa. Berrando como louco, implorei que se afastassem.
Inútil.
Cruzando proas a poucos metros de
distância, me atiraram o casaco amarrado a um cabo para que o vento não o
carregasse. Agarrei-o — e que surpresa! —, o cabo não estava solto. Pior. Não
era um cabo, mas a ponta de uma das escotas. Larguei tudo imediatamente; mas,
enquanto o veleiro seguia veloz, a ponta que estava comigo ainda presa ao
casaco enroscou-se num dos remos, o cabo esticou, partiu-se e o remo espirrou
para cima, caindo no mar. Fiquei sem meu remo, e eles sem a escota da vela
grande que panejava de maneira desesperada. Tudo se passara em frações de
segundos. Tinha de qualquer modo que recuperar o remo. Situação absurda!
Desamarrei um dos remos de reserva que estavam firmemente atados sobre o convés
e, enfurecido, quase chorando de raiva, parti em direção ao remo perdido que se
afastava com rapidez. Quarenta e cinco minutos de luta com as ondas e o vento
para conseguir, todo ensopado, capturar o remo acidentado. Não, não podia ser
verdade — quarenta e cinco minutos, e as bolhas estouravam-me nas mãos, a mais
de cem dias do destino! Do veleiro, só me lembro da tripulação tentando
levantar uma faixa, por certo preparada na véspera, onde se lia, num esforçado
castelhano, “Amyr, feliz viag...”, e vupt, o vento carregou a faixa. Não nos
vimos mais, e não houve despedida. Simplesmente sumiram. Assim, de modo
rocambolesco, eu havia partido e, ao me descobrir totalmente só, uma estranha
sensação me invadiu...
A situação a bordo era desoladora. O
vento ensurdecedor, o mar difícil, roupas encharcadas, muito frio e alguns estragos.
Pela frente, uma eternidade até o Brasil. Para trás, uma costa inóspita,
desolada e perigosamente próxima. Sabia melhor que ninguém avaliar as
dificuldades que eu teria daquele momento em diante. Estava saindo na pior
época do ano, final de outono, e teria pela frente um inverno inteiro no mar.
A fria e difícil corrente de Benguela,
meu caminho obrigatório até as proximidades da ilha de Santa Helena, é
particularmente perigosa no mês de junho. Planejei partir no verão, quando as
águas do Atlântico Sul são mais clementes, e estabeleci uma data-limite para a
partida, além da qual eu deveria reconsiderar seriamente a decisão de me fazer
ao mar. Essa data era o final do mês de maio, e já estava queimada. Uma
colossal avalanche de problemas contribuiu para isso. Mas, se tomei essa
decisão, não foi sem avaliar os riscos. Eu havia trabalhado nesse projeto
durante mais de dois anos, sem jamais fazer uma única concessão que lhe
comprometesse a segurança. Tinha um barco e um equipamento como sempre sonhei —
perfeitos. Estava preparado para o pior, e por um período tão longo no mar
seria impossível, cedo ou tarde, evitar o pior. Então, por que não partir?
Finalmente, meu caminho dependeria do
meu esforço e dedicação, de decisões minhas e não de terceiros, e eu me sentia
suficientemente capaz de solucionar todos os problemas que surgissem, de
encontrar saídas para os apuros em que porventura me metesse.
Se estava com medo? Mais que a espuma
das ondas, estava branco, completamente branco de medo. Mas, ao me encontrar
afinal só, só e independente, senti uma súbita calma. Era preciso começar a
trabalhar rápido, deixar a África para trás, e era exatamente o que eu estava
fazendo. Era preciso vencer o medo; e o grande medo, meu maior medo na viagem,
eu venci ali, naquele mesmo instante, em meio à desordem dos elementos e à
bagunça daquela situação. Era o medo de nunca partir. Sem dúvida, este foi o
maior risco que corri: não partir.
Não estava obstinado de maneira cega
pela ideia da travessia, como poderia parecer — estava simplesmente encantado.
Trabalhei nela com os pés no chão, e, se em algum momento, por razões de
segurança, tivesse que voltar atrás e recomeçar, não teria a menor hesitação.
Confiava por completo no meu projeto e não estava disposto a me lançar em cegas
aventuras. Mas não poder pelo menos tentar teria sido muito triste. Não
pretendia desafiar o Atlântico — a natureza é infinitamente mais forte do que o
homem —, mas sim conhecer seus segredos, de um lado ao outro. Para isso era
preciso conviver com os caprichos do mar e deles saber tirar proveito. E eu
sabia como.
Pelo simples fato de estar ali onde
estava, debatendo-me entre os remos, xingando as ondas e maldizendo a sorte, me
sentia profundamente aliviado. Feliz por ter partido.
KLINK, Amyr. Cem dias
entre céu e mar. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 17-22.
Entendendo o texto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras a abaixo:
·
Caça-minas: navio pequeno para abrir caminho em um campo minado.
·
Aduana: alfândega.
·
Estampilhas: selos fiscais.
·
Barlavento:
direção em que o vento sopra.
·
Proa: parte dianteira da embarcação.
·
Costado: parte aparente do casco na embarcação.
·
Adernado: inclinado.
·
Cockpit: espaço em que o piloto fica nas embarcações.
·
Panejando: tremulando, tremendo.
·
Escotas: cabos que seguram a vela da embarcação.
·
Rocambolesco: marcado por imprevistos e aventuras.
02 – A quem você acha que
esse texto é destinado?
Resposta pessoal
do aluno.
03 – Em sua opinião, por que
Amyr Klink escolheu o mar como cenário de sua aventura?
Resposta pessoal
do aluno.
04 – Os fatos expostos pelo
navegador são reais ou imaginários? Explique.
São reais, pois
são relatos de uma pessoa que realmente existe e que realizou a viagem
apresentada.
05 – Que experiências são
relatadas nesse texto?
São relatadas as
experiências de uma viagem do navegador Amyr Klink retornando para o Brasil em
um veleiro.
06 – Quem conta os fatos? O
narrador participa da história narrada ou expõe os fatos como alguém que apenas
observa os acontecimentos?
O narrador é Amyr
Klink, que vivenciou os fatos relatados.
07 – Em um relato de viagem,
é comum ocorrer a descrição de pessoas, lugares, objetos, e a rota e a
distância percorridas.
a)
Isso ocorre nesse texto? Justifique sua
resposta com exemplos.
Sim. Exemplos: “Tenso, andando em direção ao cais, senti que aqueles
seriam os meus últimos passos em terra firme. O cheiro de porto no escuro, a
areia quente sob os pés, os vagões enferrujados, o barulho de vozes humanas
[...]”.
b)
O texto é constituído somente de descrições?
Explique.
Não. Ele é constituído de narração, o que o difere dos relatos
convencionais em que predomina a descrição detalhada de um acontecimento.
08 – O relato apresenta
continuidade ou é registrado livremente, sem se preocupar com a linearidade dos
fatos?
Ele apresenta
continuidade, pois expõe os fatos na sequência em que ocorreram.
09 – Amyr Klink inicia o 6°
parágrafo destacando que estava tenso. Qual era a causa dessa tensão?
Ele estava tenso, pois novamente voltaria
ao mar e tinha receio de quando conseguiria estar a salvo em terra firme.
10 – No trecho: “A natureza é infinitamente mais forte do
que o homem”, Amyr afirma que não pretendia desafiar a natureza. Em sua
opinião, qual era o objetivo de sua viagem?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Superar seus próprios limites e aventurar-se no mar,
passando por lugares difíceis e perigosos.
11 – Muitas pessoas, assim
como Amyr Klink, buscam, por meio de aventuras, superar seus limites e,
consequentemente, vencer os medos.
a)
Como o medo pode ser superado para que as
pessoas atinjam seus objetivos?
Enfrentando-o para que ele não impeça a realização das atividades
pretendidas.
b)
Você já passou por alguma situação em que
teve medo e precisou superá-lo? Comente.
Resposta pessoal do aluno.
12 – Em sua opinião, que
contribuições expedições como a realizada por Amyr Klink podem trazer às
pessoas? Você as considera importantes?
Resposta pessoal do aluno.
13 – Observe algumas
palavras empregadas no texto: Cais –
proa – mastros – atracados – âncora. Por meio do emprego dessas palavras, é
possível reconhecer a área sobre a qual o texto trata. Que área é essa?
A área da
navegação.
14 – Releia o seguinte
trecho:
“[...]
E assim, às seis horas do dia 10 de junho de 1984, uma gelada manhã de domingo,
eu estava oficialmente autorizado a deixar o porto de Lüderitz, na Namíbia
(antiga África do Sudoeste), com destino ao Brasil, remando.”
a)
Identifique os advérbios e as locuções
adverbiais presentes nesse trecho, classificando-os.
Às seis horas do dia 10 de
junho de 1984, manhã de domingo: locução adverbial
de tempo. Oficialmente: advérbio de
modo; na Namíbia, ao Brasil: locução
adverbial de lugar.
b)
Por que o emprego de advérbios e locuções
adverbiais é imprescindível nesse gênero textual?
Porque esse gênero é importante a localização do espaço e do tempo
em que as ações ocorrem, a fim de contextualizar o leitor sobre os
acontecimentos.
15 – Identifique, em cada um
dos trechos a seguir, o sentido com que as expressões em destaque foram
empregadas.
a)
Se estava com medo? Mais que a espuma das
ondas, estava branco, completamente branco
de medo.
Pálido.
b)
Confiava por completo no meu projeto e não
estava disposto a me lançar em cegas
aventuras.
Sem um rumo predeterminado.