quinta-feira, 19 de outubro de 2023

TEXTO: CÓDIGO DE MENORES X ECA - MUDANÇAS DE PARADÍGMAS - COM GABARITO

 Texto: Código de Menores x ECA

           Mudanças de Paradigmas – 02 de dezembro de 2016

        Lembrando o início da década de 90, veremos um período em que as organizações sociais, o MNMMR e vários profissionais engajados na luta pelos direitos da criança, comemorarem conquistas. A inclusão desses direitos na Constituição Federal Brasileira (1988) e a promulgação do ECA (1990). Quem pôde presenciar (mesmo que em filme, como eu) a participação de crianças e adolescentes num voto simbólico que ocorreu na Câmara Federal, dizendo sim ao ECA, sabe o quanto essa experiência foi gratificante.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjE1-Rw9Xmh8_V6DyMww4UcR9-f-EfLOLFULSEHGdN6sB1h6wFH5ECNWoRt7UdRZDw14G7UhGkCfxnLfeEfv4cd1bPz1I7eZAtYW2xJf3kye-VkXTAxX1jfswUaBzlTu_39K_Py3sv13NAS7cBqEeSW_jur-RjuycwI6dCsbbGN5YV-8kjmBMTQGPFUZ-A/s1600/ECA.jpg


        Já refletindo sobre as mudanças entre o Código de Menores e o ECA, podemos afirmar que o ECA foi elaborado com a participação dos movimentos sociais. O caráter participativo deste processo é uma primeira e importante diferença. O protagonismo da sociedade se impõe pela expressão de seus interesses. É a democracia, também recentemente conquistada, se revelando pela prática da participação popular. É a proposição de nova ordem jurídica a partir da proposta de mudança de mentalidade da sociedade em relação às suas crianças e adolescentes.

        Uma segunda mudança que merece destaque é o caráter universal dos direitos conferidos. Reside no reconhecimento legal do direito de todas as crianças e adolescentes à cidadania independentemente da classe social (Pino, 1990). Enquanto o antigo CM destinava-se somente àqueles em “situação irregular” ou inadaptados, a nova Lei diz que TODAS as crianças e adolescentes são sujeitos de direitos. Eis, no meu ponto de vista, uma mudança de paradigma.

        No Código, havia um caráter discriminatório, que associava a pobreza à “delinquência”, encobrindo as reais causas das dificuldades vividas por esse público, a enorme desigualdade de renda e a falta de alternativas de vida. Essa inferiorização das classes populares continha a ideia de norma, à qual todos deveriam se enquadrar. Como se os mais pobres tivessem um comportamento desviante e uma certa “tendência natural à desordem”. Portanto, inaptos a conviver em sociedade. Natural que fossem condenados à segregação. Os meninos que pertenciam a esse segmento da população, considerados “carentes, infratores ou abandonados” eram, na verdade, vítimas da falta de proteção. Mas, a norma lhes impunha vigilância.

        Além disso, o antigo Código funcionava como instrumento de controle, transferindo para o Estado a tutela dos “menores inadaptados” e assim, justificava a ação dos aparelhos repressivos. Ao contrário, o ECA serve como instrumento de exigibilidade de direitos àqueles que estão vulnerabilizados pela sua violação.

        O reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, e não mais como simples portadores de carências (Costa,1990), despersonaliza o fenômeno, e principalmente, responsabiliza toda sociedade pela criação das condições necessárias ao cumprimento do novo direito.

        Isso não significa negar a relação de dependência das crianças aos adultos e nem a responsabilidade que os últimos têm quanto ao desenvolvimento dos primeiros. Contudo, significa impedir a ocorrência daquilo que, nesta relação, traz a marca do autoritarismo, da violência e do sofrimento (Teixeira, 1991). Ao assumir que a criança e o adolescente são “pessoas em desenvolvimento”, a nova Lei deixa de responsabilizar algumas crianças pela irresponsabilidade dos adultos. Agora, são TODOS os adultos que devem assumir a responsabilidade pelos seus atos em relação às TODAS as crianças e aos adolescentes.

        A mudança na referência nominal também contém uma diferença de paradigma. A expressão “menor” é substituída por “criança ou adolescente” para negar o conceito de incapacidade na infância. O conceito de infância ligado à expressão “menoridade” contém em si a ideia de não ter. Ser “menor” significa não ter dezoito anos e, portanto, não ter capacidades, não ter atingido um estágio de plenitude e não ter, inclusive, direitos (Volpi, 2000). O paradigma evolucionista aqui revelado, fundamentava a teoria de desenvolvimento infantil desenvolvida a partir das competências específicas dos adultos.

        Com a formulação do ECA, inicia-se um debate para compreender as competências e capacidades da população infanto-juvenil. O paradigma muda, os menores passam a ser denominados crianças e adolescentes em situação peculiar de desenvolvimento. As crianças e adolescentes passam a ser vistos pelo seu presente, pelas possibilidades que têm nessa idade e não pelo futuro, pela esperança do que virão a ser. Isto significa trazer à tona a positividade do conceito de infância, que é marcada pela PROVISORIEDADE E SINGULARIDADE. Uma constante metamorfose. Um ser que é processual.

        Insisto na ideia da SINGULARIDADE vivida pelas crianças e adolescentes. São seres sócio-históricos que não apenas reagem às determinações sociais, mas são também SUJEITOS de ações. Participam de um momento histórico em que criam e transformam sua existência, a partir de suas experiências cotidianas, que são vividas de forma singular.

        Neste sentido, o que define a adolescência não é uma crise inerente à uma idade. Nem uma essência biológica universal. É um conjunto de características, que inscreve uma qualidade de pensamento que é diferente na infância e na idade considerada adulta. Uma qualidade de pensamento que possibilita a reflexão sobre os significados e sentidos de seus interesses.

        Ressalto com isso, que a adolescência não pode ser considerada como uma fase propícia à transgressão. A atuação do adolescente depende das relações que ele vive e das que ele conhece no meio social. Ele atribui SENTIDOS a estas vivências e estes vão servir como parâmetros para suas futuras relações. Sabemos que quanto mais amplo e diversificado for o universo cultural do indivíduo, maior a possibilidade de seu desenvolvimento, conhecimento do mundo, de seus próprios interesses e de sua capacidade de criação.

        Não podemos encarar as crises vividas na adolescência como patológicas e nem criar um modelo único de adolescência. Algumas concepções de adolescência negam os aspectos culturais e políticos. Descontextualizam a adolescência, criando estereótipos que impedem a compreensão mais ampla deste fenômeno. Aí veremos as crises como desarranjos, já que a harmonia é “pressuposto natural” (Vygotsky, 1998). O desenvolvimento de um indivíduo não é movido pela harmonia, mas pelas contradições, pelos confrontos. Essas contradições são próprias do desenvolvimento humano em qualquer momento da vida, não se limitam à adolescência. Esta forma de compreensão deve afastar a ideia de transgressão ligada à adolescência. Se pensarmos a adolescência como fenômeno psicossocial, não devemos considerá-los como potenciais agressores. A forma como a adolescência será vivida por cada indivíduo vai depender das condições dadas para seu desenvolvimento. Vai depender do respeito ao seu direito de sobreviver, da garantia de sua integridade física, psicológica e moral.

        Neste ponto, o ECA propõe um reordenamento institucional. Rompe com práticas fundadas na filantropia ou caridade (Pino, 1990) e institui uma nova ordem onde os direitos das crianças geram responsabilidades para a família, para o Estado e para a sociedade. Responsabilidades pela criação e implementação das políticas sociais relativas a esses direitos.

        Neste campo, o Estatuto introduz um elemento novo que é a constituição de Conselhos de direitos e dos tutelares. Elementos fundamentais para as novas políticas de atendimento, os conselhos também são espaços de participação da sociedade organizada. Governo e sociedade, juntos, assumem responsabilidade pela formulação e controle das ações relativas aos direitos da Criança e do Adolescente.

        Apesar das importantes mudanças de paradigma, sabemos que, olhando para a prática, o saldo destes 12 anos não é muito positivo. Sejamos mais claros/as: o ECA não foi implementado. É fato que algumas políticas públicas passaram por reformulações, mas, infelizmente, nem todos atendem às concepções expressas na legislação vigente.

        Destacamos aqui, o atendimento aos adolescentes autores de ato infracional. O próprio Ministério da Justiça fez, em 1997, um levantamento nacional do atendimento às medidas sócio educativas que mostrava a não implementação do ECA (Apud, Teixeira, 2002).

        No caso da privação de liberdade aqui em São Paulo, o problema está na persistência de uma prática repressiva e no descumprimento das garantias e prerrogativas legais. Estamos há doze anos transcorridos da promulgação do ECA e ainda não foram realizadas, na Febem Paulista, as necessárias adequações à nova legislação. Num rápido panorama deste quadro, vemos a omissão das autoridades responsáveis e a “preferência” pela aplicação de medidas de privação de liberdade nos casos em que caberiam medidas sócio educativas em meio aberto . Também é fato que os adolescentes autores de ato infracional que estão privados de liberdade, vivem esta situação sob a lógica da “Tranca e couro”, quer dizer, estão sendo TORTURADOS cotidianamente.

        As inúmeras rebeliões são um duro emblema da negligência aos direitos conquistados com a nova legislação, dita aliás, pelos próprios adolescentes que encontram-se encarcerados. No último sábado (13/07/02), assistimos a mais uma: Franco da Rocha com a entrada da Tropa de Choque para contê-la.

        A desumanidade e crueldade vão desnudando variadas formas e métodos de humilhação e agressão. A imagem vinda do relato de adolescentes que apanham com ferros/tacos que trazem inscritas as palavras Direitos Humanos e ECA, entre outras, é o próprio retrato/desenho esculpido do reverso da lei.

        Vemos ainda, projetos retrógrados de propostas de redução da idade de imputabilidade penal, além do discurso de pessoas que acreditam ainda que o ECA serve apenas para encobrir atos delituosos de adolescentes, protegê-los, retirando-lhes a responsabilidade. Aqui temos também um outro problema, o da mudança de mentalidade, tarefa esta que depende também de um processo histórico e da vontade política de educadores e profissionais na discussão do ECA.

        Mas como nos mostra Chauí (1994):

        “Se nascemos numa sociedade que nos ensina certos valores morais -justiça, igualdade, veracidade, generosidade, coragem, amizade, direito à felicidade – e, no entanto, impede a concretização deles porque está organizada e estruturada de modo a impedi-los, o reconhecimento da contradição entre o ideal e a realidade é o primeiro momento da liberdade e da vida ética como recusa da violência. O segundo momento é a busca de brechas pelas quais possa passar o possível, isto é, uma outra sociedade, que concretize no real aquilo que a nossa propõe no ideal…O terceiro momento é o da nossa decisão de agir e da escolha dos meios para a ação. O último momento da liberdade é a realização da ação para transformar um possível num real, uma possibilidade numa realidade” (Chauí, p.365).

        E essas últimas tarefas, se fazem, para nós, muito urgentes… não temos mais tempo a perder.

       É preciso comemorar os doze anos do ECA, com a certeza, de que, se ainda não conseguimos implementá-lo, buscamos caminhos. É preciso ousar sonhar e ousar transformar. É necessário uma maior e melhor organização de todos os setores da sociedade com a força e felicidade humanas, compartilhando a ideia de que a diferença e o outro são importantes para o desenvolvimento de cada um de nós…A lei já nos fortalece…

Referências bibliográficas

COSTA, A. C.  G. da, O novo direito da infância e da juventude do Brasil: 10 anos do EFA – Avaliando conquistas e projetando metas. Cad.1- Unicef, 1990.

PINO, A. Direitos e realidade social da criança no Brasil. A propósito do “Estatuto da Criança e do Adolescente”. Revista Educação & Sociedade, ano XI, n.36, p.61-79, ago., 1990.

TEIXIEIRA, M.L.T. O estudo da criança e do adolescente   e a questão do delito.  Cadernos Populares/n.3, Sitraemfa, 1991.

TEIXIEIRA, M.L.T. Adolescência – violência: uma ferida de nosso tempo. São Paulo, 2002. . Tese (Doutorado). Serviço Social, PUC/SP.

VOLPI, M. (UNICEF) I Encontro Estadual de Educação Social na rua. São Paulo, jul,2000 (Palestra).

VYGOTSKY, L. S. Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 5ªed., 1998.

Ana Silvia Ariza de Souza é psicóloga e mestre em Psicologia Social pela PUC-SP

Publicado em 20/04/2004

Entendendo o texto:

01 – Quando ocorreu a promulgação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente)?

      O ECA foi promulgado em 1990.

02 – Qual é a primeira diferença mencionada no texto entre o Código de Menores e o ECA?

      A primeira diferença destacada é o caráter participativo do processo de elaboração do ECA, com a participação dos movimentos sociais.

03 – O que o antigo Código de Menores associava à pobreza?

      O antigo Código de Menores associava a pobreza à "delinquência".

04 – Qual é a mudança de paradigma mencionada no texto em relação à infância?

      A mudança de paradigma envolve o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, não mais como simples portadores de carências.

05 – Como o ECA se relaciona com a responsabilidade em relação às crianças e adolescentes?

      O ECA torna todos os adultos responsáveis por seus atos em relação a todas as crianças e adolescentes.

06 – Qual é a mudança na referência nominal destacada no texto?

      A expressão "menor" foi substituída por "criança ou adolescente" para negar o conceito de incapacidade na infância.

07 – Como o ECA vê a adolescência em comparação com o Código de Menores?

      O ECA vê a adolescência como uma fase de singularidade e possibilidades no presente, não como uma fase propícia à transgressão.

08 – Que elementos institucionais o ECA introduz para promover os direitos das crianças?

      O ECA introduz a constituição de Conselhos de direitos e dos tutelares como elementos fundamentais para as novas políticas de atendimento.

09 – Como o texto descreve a implementação do ECA na prática?

      O texto afirma que, na prática, o ECA não foi totalmente implementado, especialmente no que diz respeito ao atendimento aos adolescentes autores de ato infracional.

10 – Quais são os desafios mencionados no texto em relação ao ECA?

      Os desafios incluem a necessidade de mudar a mentalidade, garantir o respeito aos direitos das crianças e adolescentes, e superar a persistência de práticas repressivas e desumanas, especialmente na privação de liberdade.

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