Conto: Nas asas do condor
Milton Hatoum
Quase morri de medo nas asas do Condor.
Voei, voei muito alto, mas a verdade é que renasci...
-- Quando?
Faz muito tempo, mas me lembro do dia,
mês e ano: 7 de setembro de 1958. Lembro-me também do lugar, pois há lugares da
infância que ficam bem guardados na memória. Naquela época, na manhã do dia da
Independência, eu estava na beira do rio Xapuri, lá no Acre, brincando com meus
amigos... Nós cavávamos buracos na areia a fim de encontrar ovos de tracajá. Em
cada buraco havia dezenas de ovos que as nossas mãos transformavam em pequenas
pirâmides e colinas brancas... Suávamos sob o calor inclemente, e, de vez em
quando, a gente mergulhava no rio, nadava e voltava para a praia à procura de
ovos... Quando terminei de construir a terceira pirâmide, tive minha primeira
crise de asma. Senti falta de ar, e abri a boca para tentar respirar...
Não há nada pior do que sentir falta de
ar, porque, sem ar, eu, você e o mundo inteiro não podemos viver. Meus amigos,
assustados, correram à minha casa e viram minha tia Leila limpando um peixe na
varanda. Apontaram para a beira do rio e um deles disse que meu rosto estava
estufado e vermelho. Tia Leila, a mais dramática de minhas tias, pensou que eu
tinha me afogado no rio e correu para avisar a minha mãe, que correu para o rio
e entrou nas águas do Xapuri. Estava tão nervosa que não me viu na beira do rio
e, é claro, não me veria nas águas do rio. Quando voltou para a praia, seu
vestido azul colado no corpo e seus cabelos longos escorridos lhe davam um ar
engraçado. Assim, vi minha mãe e tive vontade de rir, mas, se eu mal conseguia
respirar, imagine se podia rir.
Minha mãe, atônita, correu para avisar a meu pai e, no meio do caminho, ela se
lembrou de que meu pai não estava em casa, nem na cidade. Meu pai estava
viajando num barco. Ele descia e subia o rio Acre, vendendo tecidos e roupas ou
trocando tecidos e roupas por pelas de borracha e sacos de castanha. Nossa casa
ficava na praça Plácido de Castro, a menos de cem metros da prefeitura da
cidade.
Minha mãe se lembrou de que havia um médico em Xapuri, o doutor Monte, um
médico de Rio Branco que a cada dois meses visitava a cidade. Mas o doutor
Monte tinha ido atender a um doente em Brasiléia, lá na fronteira com a
Bolívia. Então, apavorada, ela se dirigiu à prefeitura, pois o prefeito era
primo de meu pai. O prefeito correu para a praia e me viu estendido na areia,
cercado por pirâmides e colinas de ovos de tracajá. Meu rosto devia estar vermelho
que nem melancia, porque o prefeito olhou para mim e disse:
-- Por Deus, o menino tá sufocado!
Ele olhou para o céu e disse para minha
mãe e tia Leila:
-- Fiquem aqui, eu vou cuidar desse
menino.
Ele me pegou pelos braços. Carregou-me
como se eu fosse um boneco de pano e me levou até o carro dele, um Ford velho e
enferrujado que nunca saía da cidade, porque não havia estrada de Xapuri a
nenhum lugar, nem de nenhum lugar a Xapuri.
Mas havia uma estrada de barro que cortava a floresta e terminava numa pista de
cascalho que devia ter uns duzentos metros.
Não sabia para onde o prefeito me levava. Então eu ouvi a voz dele:
-- Lá está ele, lá está o bonitão!
E quem era ele, o bonitão?
O Condor...
Nos braços do prefeito eu entrei no
Condor. Era um avião verde e prateado, um bimotor alemão que passava por Xapuri
a cada quinze dias e fazia uma viagem impressionante para São Paulo.
O Condor escalava em seis cidades (duas da Bolívia e quatro do Brasil) antes de
aterrizar na capital paulista. O prefeito, que sabia pilotar, disse ao dono do
Condor que ia dar uma volta comigo. Além da falta de ar, comecei a sentir medo.
Nunca viajara de avião, e agora estava numa aviãozinho que parecia um sapo
metálico. Tremia de medo, e, com medo e falta de ar, sentado na cabina, percebi
que o avião corria na pista de cascalho. Fechei os olhos...
Minha primeira aventura: voar com falta
de ar aos 10 anos de idade. Quando abri os olhos, a cidade parecia uma maquete,
uma cidade de brinquedo. Vi os dois rios, o Acre e o Xapuri, como se fossem
duas cobras amarelas. O Condor ainda chacoalhava, o barulho dos motores era
infernal e o vento que entrava pela janelinha da cabina tinha a força de um
furacão. Aos poucos, fui me acostumando com aquela ideia louca de voar. Estava
nervoso, mas no ar. Era um milagre... e também uma alegria, pois navegando no
espaço, não sei por que comecei a respirar melhor...
Já não sentia a angústia de estar perdendo o fôlego, de abocanhar em vão um
punhado de ar.
Voltava a ser como você, que respira
pelo nariz, normalmente, sem ânsia, sem sufoco. O prefeito-piloto, ao notar
minha melhora, sorriu. Logo depois ele riu e disse:
-- Agora vamos conhecer as nuvens.
Ele puxou um pouquinho o manche, o
Condor começou a subir, subir... E subimos tanto que entramos nas nuvens, essas
nuvens que lá de baixo parecem enormes blocos de mármore, que nem esculturas
aéreas flutuando no céu azul da Amazônia.
Nuvens de todos os tamanhos e formas: nuvem-dragão, nuvem-serpente,
nuvem-tartaruga, nuvens que são formas do céu da minha infância. Depois
começamos a baixar, e sobrevoamos o rio Acre, sinuoso, barrento, como uma
cobra-d'água sem fim. Vi um barquinho navegando perto de uma vila, imaginei que
podia ser o barco de meu pai e dei um adeus na janelinha da cabina. Depois o
Condor baixou ainda mais. O piloto apontou para uma árvore e disse: uma
sumaumeira. Outras árvores: a castanheira, a seringueira, árvores enormes que
eu via do alto. No meio da floresta, vi uma cortina esverdeada, com tons de
amarelo. O piloto me disse que era um bambuzal.
Vi o barracão de um seringal, o
Soledad, e canoas que pareciam de papel pardo, pequeninas e frágeis. Em 20 de voo
vi coisas que só podia imaginar.
Hoje, quase 40 anos depois desse voo,
penso que escrever uma história se parece com isso: voar, ver o que nunca
vimos... imaginar.
Aterrissamos na pista de cascalho. No
galpãozinho à beira da pista, minha mãe e tia Leila estavam ao lado do dono do
avião.
Minha mãe xingou o prefeito-piloto de louco e irresponsável; tia Leila, de cara
emburrada, mal falou com ele. Mas, quando me viram são e salvo, respirando como
uma criança sadia, ficaram aliviadas.
Olhei para o avião na pista, e me
despedi daquele sapo metálico que me havia curado. Enfim, agradeci aos céus,
mas nunca perdi o medo de voar. Anos depois, iria voar muito, e em aviões ainda
menores que o Condor. Mas aquele voo foi inesquecível.
Até hoje me lembro daquela manhã em que
voei no Condor e vi lá do alto o mundo da minha infância.
Fonte: Era uma vez um
conto. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002.
Entendendo o conto:
01 – Qual foi a data em que o
protagonista teve sua primeira experiência de voar no Condor?
A primeira
experiência de voar no Condor ocorreu em 7 de setembro de 1958.
02 – Onde o protagonista
estava quando teve sua primeira crise de asma?
O protagonista estava na beira do rio
Xapuri, no Acre, brincando com seus amigos.
03 – Como o prefeito de Xapuri
reagiu quando viu o protagonista com falta de ar na praia?
O prefeito ficou
preocupado e disse: "Por Deus, o menino tá sufocado!"
04 – Por que o protagonista
foi levado para o avião Condor?
O prefeito, que
sabia pilotar o avião, decidiu dar uma volta com o protagonista para ajudá-lo a
respirar melhor.
05 – Como o protagonista se
sentiu durante sua primeira experiência de voo no Condor?
Inicialmente, o
protagonista sentiu medo e falta de ar, mas gradualmente se acostumou com a
ideia de voar e começou a respirar melhor.
06 – O que o prefeito-piloto
disse ao protagonista quando o avião entrou nas nuvens?
O piloto disse:
"Agora vamos conhecer as nuvens."
07 – O que o protagonista viu
quando sobrevoou a floresta na aeronave Condor?
O protagonista
viu várias árvores, incluindo sumaumeira, castanheira, seringueira e um
bambuzal.
08 – Como o protagonista
descreve a sensação de escrever uma história no final do conto?
O protagonista
compara a sensação de escrever uma história a voar e ver coisas que nunca viu,
a uma experiência de imaginação.
09 – Como a mãe do
protagonista reagiu quando o viu a salvo após o voo?
A mãe do
protagonista xingou o prefeito-piloto de louco e irresponsável, mas ficou
aliviada ao ver o protagonista são e salvo.
10 – O que o protagonista
agradeceu no final do conto?
O protagonista agradeceu aos céus pela experiência de voar no
Condor que o havia curado, mas ele nunca perdeu o medo de voar.
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