Crônica: Glória
Carlos Drummond de Andrade
— Meu filho é artista de televisão, contando o senhor não acredita. Eu mesmo às vezes penso que é ilusão. Com oito anos, imagine. Estava brincando na pracinha lá da vila quando passaram uns homens e olharam muito pra ele. Meu filho, não é pra me gabar, mas é uma lindeza de Menino Jesus, aí um dos homens falou assim pra ele. Quer fazer um teste, ó garoto? O que é teste? ele respondeu. Aí o homem explicou, não sei bem qual é a explicação, levaram ele pra um edifício na cidade, tiraram um bocado de retratos dele, depois falaram assim: Você foi aprovado. Aí ele se espantou:
Mas eu não fiz exame, que troço é esse? Não é nada de exame não, eles
responderam, você foi aprovado pra fazer um comercial, tá bem? Ele neca de
saber o que é um comercial, nem eu, mas agora eu fiquei sabendo, é uma coisa à
toa, a pessoa nem precisa falar, fica só fazendo uma coisa, comendo doce de
leite, devagarinho, com uma carinha alegre, quando acaba passa a língua nos
beiços, assim, olha, e pisca o olho, ele é tão engraçado, antes de acabar de
comer ele já estava fazendo isso, um negócio. Aí mandaram ele de volta pra
casa, não, antes falaram assim pra ele: manda seu pai aqui na agência receber o
cachet. Ele ficou espantado, falou assim: Que troço é esse? Eles responderam. É
tutu. Aí ele baixou a cabeça e respondeu baixinho: Eu não tenho pai. E mãe você
tem? Ele respondeu que mãe ele tinha, e levantou a cabeça. Então manda ela
aqui, mas o garoto é esperto, deu uma de sabido: Eu mesmo não posso receber? se
fui eu que fiz tudo sozinho. Não, você não pode, tem que ser sua mãe, diz a ela
que venha das duas às quatro, trazendo carteira de identidade. Bonito, e eu que
nunca tive carteira, já pelejei pra tirar uma, dei duro, pedi pro compadre
Julião me quebrar esse galho, compadre explicou que carece antes tirar certidão
de nascimento, essa é muito boa, então a gente tem que provar que nasceu, eu
não estou viva com a graça de Deus e forte e trabalhando? O pior é que nem sei
se fui registrada lá em Pilão dos Palmares, chão do meu nascimento, não tenho
parentes neste mundo, só tenho no outro, e nem a poder de oração consegui até
hoje tirar o papel da tal certidão, afinal eu falei assim pro compadre: Deixa
pra lá, sem carteira vivi até hoje, sem ela vou viver até Nosso Senhor me
fechar os olhos. Vou lá na agência assim mesmo. Larguei meu serviço. Fui. Tinha
um mundão de gente, eu não sabia quem é que podia me atender, andei rolando de
uma sala pra outra, até que afinal um cara de bigodão, atrás da parede de vidro
com um óculo no meio, falou assim: É comigo, trouxe a carteira? Eu expliquei
que carteira eu não tinha, mas sou lavadeira muito acreditada na Zona Norte,
muitas madamas da rua Conde de Bonfim podem atestar que eu sou eu mesma e mãe
de meu filho, há vinte e cinco anos que trabalho de lavar roupa. Ele abanou a
cabeça, falou assim: Nada feito, não tenho ordem de pagar sem identidade. Mas o
meu filho trabalhou, moço, eles ficaram satisfeitos com o trabalho dele, tanto
que prometeram pagar um tal de cachet, como é que pra pagar a ele é preciso a
carteira de outra pessoa, o senhor acha isso direito? Ele não respondeu nada,
tornou a abanar a cabeça e eu fiquei matutando: O que tu vai fazer pra sair
dessa, Clementina da Anunciação? E comecei a chorar. Aí eles me viram chorando,
ficaram com pena de mim, um barbudo que passava disse assim pro bigodão: Paga a
ela, Reginaldo. O bigodão resmungou: Tá legal, e me deu um papel passado em
três folhas iguais, pra eu assinar nelas todas. Aí eu disse: O senhor me
desculpe, mas eu não sei escrever, a cabeça não dá. Então nada feito outra vez,
o bigodão respondeu. Aí, eu não tinha mais vontade de chorar e disse assim pra
ele: Escuta aqui, moço, quanto é que meu filho tem pra receber? Ele respondeu:
cinquenta cruzeiros. Ah, é isso? respondi. Pode ficar pra agência. Perdi meu
dia de trabalho, gastei trem, gastei ônibus, andei a pé neste solão, não vou me
chatear por causa dessa mixaria. Um cara que estava escutando falou assim: A
senhora vai jogar fora esses cinquenta mangos? E daí? respondi pra ele. Meu
filho vale muito mais, a gente não fica mais pobre por causa disso, ele agora é
artista, amanhã se Deus e a Virgem Maria ajudar, vai ganhar milhões. Nem
precisa ganhar, só o orgulho que eu sinto por ele ter passado no teste! Saí de
lá com esse orgulho bonito no coração, meu filho é artista, meu filho é
artista, ia repetindo sozinha, na rua me olhavam admirados mas eu nem dei bola,
fui pra casa e ligo a televisão o dia inteiro, trabalho vendo ela, até chegar a
hora de meu filho aparecer no comercial comendo doce de coco. Pobre tem
televisão, na vila todos têm, vai ser um estouro quando meu boneco aparecer e
piscar o olho, então isso não vale mais que cinquenta, que quinhentos ou cinco
mil cruzeiros, ou todos os cruzeiros do mundo?
E seu rosto enrugado cintilava de
glória.
Carlos Drummond de
Andrade, in De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica
Entendendo a crônica:
01 – Quem é o autor da crônica
"Glória"?
O autor da crônica "Glória" é
Carlos Drummond de Andrade.
02 – Qual é o tema principal
abordado na crônica?
O tema principal
da crônica é o orgulho e a alegria de uma mãe cujo filho foi escolhido para
fazer um comercial de televisão.
03 – Como o filho da narradora
foi selecionado para o comercial de televisão?
O filho da narradora foi selecionado quando
ele estava brincando na pracinha e alguns homens o observaram. Eles o
convidaram para fazer um teste e, depois de tirar fotos dele, disseram que ele
foi aprovado para o comercial.
04 – Qual é a preocupação da
mãe em relação ao pagamento pelo comercial do filho?
A mãe fica
preocupada com a necessidade de apresentar uma identidade para receber o
pagamento pelo comercial, uma vez que ela não tem uma identidade e não sabe
escrever.
05 – Como a narradora resolve
o problema da identidade para receber o pagamento?
Um homem que
estava presente decide pagar à narradora mesmo sem uma identidade, após vê-la
chorar e se compadecer.
06 – Qual é o valor do
pagamento que a narradora recebe pelo comercial?
A narradora
recebe um pagamento de cinquenta cruzeiros pelo comercial.
07 – Qual é o sentimento da
narradora no final da crônica?
No final da
crônica, a narradora está cheia de orgulho e glória por seu filho ter se
tornado um artista de televisão, e ela acredita que isso é mais valioso do que
qualquer quantia de dinheiro.
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