domingo, 29 de outubro de 2023

CONTO: A MÚSICA DOS CHIFRES OCOS E PERFURADOS - LUÍS DA CÂMARA CASCUDO - COM GABARITO

 Conto: A MÚSICA DOS CHIFRES OCOS E PERFURADOS.

           Luís da Câmara Cascudo

        Na capoeira de Mamanguape pasta uma notável população de veados. Vivem soltos e perseguidos pelos caçadores impenitentes. Muitos vão dar na praia enlouquecidos pela perseguição. Ficam bêbedos de cansaço e desespero. Nestas circunstâncias não é difícil ser abatido pelos pescadores, que gostam muito de carne. O peixe é prato de todos os dias. Vez por outra não faz mal uma variação de alimento. E assim a espécie dos galhudos vai rareando.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgbiHc9PTXqvuSF-9YB_x6ptSkUcArWwX85lmPHMvhmpMB3K4iOhKgPpq6WcTztArYeYz3L6G2LVoUQsa8dkm-JfgNJ9_mevz1p0M-klx3DM-YcHVx3-UOmzh4SmIIqKsBDZz0sFRsJnA4FBM3PerYC5KEsOqIqsE-0z4T0FZ7_B27lq59PIxLmq89kHSE/s320/MAMANGUAPE.jpg


        Entretanto, a maioria dos caçadores não lhe comem a carne e até a abandona em pleno mato. Tirado o couro, gostam é de chegar com o troféu, exibindo-o só pelo prazer de ostentá-lo, e mais nada. A caça verifica-se em certos dias. Não se faz assim de repente apenas pela alegria da aventura. Veado nem sem sempre pode ser pegado pelos cachorros e pelas balas da espingarda.

        O motivo da escolha cuidadosa da ocasião de persegui-lo vem de um fato bem notório que toda gente entendida no negócio proclama como absolutamente verdadeiro. Existem nas capoeiras alguns veados chefes de bando que costumam reunir o seu povo para um remoer mais demorado na tranquilidade. A convocação é feita por intermédio de uma harmonia de música que toca a todos os corações. Ninguém poderá ouvi-la sem ficar inteiramente dominado e vencido nos seus propósitos inferiores.

        A beleza tem disso: amolece as energias empregadas no sentido do mal. E como caçar não deixa de ser uma impiedade, fica adiada a perseguição, fica para outro dia, pois o caçador foi posto à margem, é supersticioso e não ama contrariar as forças da natureza quando elas se manifestam tão maravilhosamente.

        A demonstração de uma intensa melodia (notas estranhas e deliciosas já bem conhecidas do homem que corre as matas de arma ao ombro e sacola de balas a tiracolo) vem como sinal de advertência generosa. Quem transgredir a norma histórica terá de arcar com as consequências nem sempre agradáveis. As surpresas então se tornarão constantes e prejudiciais. E não há necessidade de enfrenta-las assim de caso pensado. O melhor é aguardar outra vez. Fica para amanhã. Fica para depois. Em qualquer tempo é tempo para o prazer da perseguição. Aquela música divina não é ouvida com frequência, é mesmo coisa um tanto rara nas sextas-feiras, nos sábados e nos domingos. Nos outros dias da semana, a caça não se faz de preferência por causa do trabalho de campo e outras obrigações de ganha-pão a que o homem ordinariamente se acha sujeito. Portanto, não convém ir de encontro às determinações dos deuses ocultos que dirigem os movimentos na floresta ou nos tabuleiros.

        Rebanhos enormes se reúnem em torno dos chamados “galhudos”. Estes no meio como que dirigindo a sessão. Em torno se encontra a veadaria deitada em remansoso descanso. Os mateiros mais afeitos se arrastam cautelosamente até lá com o fim de apreciar o concerto incomparável. Impõe-se muito cuidado para evitar o menor barulho. Qualquer atrito de folha seca é razão para que os ouvidos fiquem atentos. Ficam à escuta para uma arrancada louca de precipitação. Mas quando acontece tal curiosidade é porque prevaleceu o enfeitiçamento do caçador arrastado pelos encantos de uma música que tem qualquer coisa de sortilégio. Não tem preocupações de fazer mal. Chega mesmo a abandonar as armas para melhor facilitar a aproximação sutil nos seus movimentos de caçador.

        Os veados velhos mostram vinte e três chifres ocos e perfurados como flauta. O vento sopra com uma suavidade de nordeste. E faz arrancar dos chifres os sons mais sentidos de uma orquestra completa que toca para amenizar a vida perseguida-e mesmo infeliz de uma raça que entre os animais da região faz as vezes do judeu escorraçado pela inveja dos que não possuem predicados de inteligência e habilidade. A reunião prossegue pela noite adentro. Não é difícil apurar o ouvido e sentir na madrugada fria dos tabuleiros as melodias mais belas que o vento arranca dos vinte e três chifres ocos e perfurados como flauta.

        Depois vem a dispersão. Cada qual para o seu canto. E que trate de livrar-se da sanha criminosa dos seus perseguidores. O fim da semana é para se viver debaixo de toda cautela. Muito cuidado.
Ainda assim é quando o caçador consegue livremente exercer a sua diversão extravagante e injusta. Sai para matar sem levar na alma a menor sombra de preocupação com os imprevistos maus que lhe possam acontecer.

Relato popular recontado pelos professores Ademar Vidal e Luís da Câmara Cascudo.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o cenário principal do conto?

      O cenário principal do conto é a capoeira de Mamanguape, onde vive uma população notável de veados.

02 – Qual é o dilema enfrentado pelos veados na capoeira de Mamanguape?

      Os veados são perseguidos pelos caçadores, o que os leva a viver constantemente em risco de serem abatidos.

03 – Qual é o motivo que leva os caçadores a escolher cuidadosamente a ocasião para perseguir os veados?

      Os caçadores esperam por uma melodia especial que é tocada pelos veados chefes de bando como sinal de convocação. Esta música os impede de caçar, pois é considerada divina e hipnotizante.

04 – Como os veados se reúnem em torno dos "galhudos" quando a música é tocada?

      Os veados se reúnem em grandes grupos em torno dos veados chefes de bando, que parecem dirigir a sessão enquanto o resto da veadaria descansa.

05 – O que acontece quando um caçador é enfeitiçado pela música dos veados?

      O caçador se deixa levar pelo encanto da música e, às vezes, até abandona suas armas para se aproximar furtivamente dos veados.

06 – Qual é a peculiaridade dos chifres dos veados velhos?

      Os chifres dos veados velhos têm vinte e três buracos ocos e perfurados, e quando o vento sopra, eles produzem sons que se assemelham a uma orquestra tocando melodias para acalmar a vida dos veados perseguidos.

07 – O que acontece depois da reunião dos veados em torno dos "galhudos"?

      Após a reunião, os veados se dispersam e cada um vai para o seu canto, tentando evitar a perseguição dos caçadores. O final de semana é um período de particular cautela.

 

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