quarta-feira, 24 de junho de 2020

CRÔNICA: A CASA MATERNA - VINÍCIUS DE MORAES - COM GABARITO

Crônica: A Casa Materna          

                 Vinícius de Moraes

   Há, desde a entrada, um sentimento de tempo na casa materna. As grades do portão tem uma velha ferrugem e o trinco se encontra num lugar que só a mão filial conhece. O jardim pequeno parece mais verde e úmido que os demais, com suas palmas, tinhorões e samambaias, que a mão filial, fiel a um gesto de infância, desfolha ao longo da haste.

  É sempre quieta a casa materna, mesmo aos domingos, quando as mãos filiais se pousam sobre a mesa farta do almoço, repetindo uma antiga imagem. Há um tradicional silêncio em suas salas e um dorido repouso em suas poltronas. O assoalho encerado, sobre o qual ainda escorrega o fantasma da cachorrinha preta, guarda as mesmas manchas e o mesmo taco solto de outras primaveras. As coisas vivem como em preces, nos mesmos lugares onde as situaram as mãos maternas quando eram moças e lisas. Rostos irmãos se olham dos porta-retratos, a se amarem e compreenderem mutuamente. O piano fechado, com uma longa tira de flanela sobre as teclas, repete ainda passadas valsas, de quando as mãos maternas careciam sonhar.

        A casa materna é o espelho de outras, em pequenas coisas que o olhar filial admirava ao tempo em que tudo era belo: o licoreiro magro, a bandeja triste, o absurdo bibelô. E tem um corredor à escuta, de cujo teto à noite pende uma luz morta, com negras aberturas para os quartos cheios de sombra. Na estante junto à escada há um Tesouro da juventude com o dorso puído de tato e de tempo. Foi ali que o olhar filial primeiro viu a forma gráfica de algo que passaria a ser para ele a forma suprema da beleza: o verso.

        Na escada há o degrau que estala e anuncia aos ouvidos maternos a presença dos passos filiais. Pois a casa materna se divide em dois mundos: o térreo, onde se processa a vida presente, e o de cima, onde vive a memória. Embaixo há sempre coisas fabulosas na geladeira e no armário da copa: roquefort amassado, ovos frescos, mangas-espadas, untuosas compotas, bolos de chocolate, biscoitos de araruta – pois não há lugar mais propício do que a casa materna para uma boa ceia noturna. E porque é uma casa velha, há sempre uma barata que aparece e é morta com uma repugnância que vem de longe. Em cima ficam os guardados antigos, os livros que lembram a infância, o pequeno oratório em frente ao qual ninguém, a não ser a figura materna, sabe porque queima às vezes uma vela votiva. E a cama onde a figura paterna repousava de sua agitação diurna. Hoje, vazia.

        A imagem paterna persiste no interior da casa materna. Seu violão dorme encostado junto à vitrola. Seu corpo como que se marca ainda na velha poltrona da sala e como que se pode ouvir ainda o brando ronco de sua sesta dominical. Ausente para sempre de sua casa materna, a figura paterna parece mergulhá-la docemente na eternidade, enquanto as mãos maternas se fazem mais lentas e as mãos filiais ainda mais unidas em torno à grande mesa, onde já agora vibram também vozes infantis.

 Vinícius de Moras.

Entendendo a crônica:

01 – Pesquise e responda:

·        Dorido: que tem e/ou expressa alguma dos (física ou moral).

·        Untuoso: gorduroso.

·        Votivo: ofertado em promessa.

02 – No 1° parágrafo se observa um sentimento de saudosismo do narrador em relação à casa materna, sugerido pela passagem do tempo. Segundo o texto, o que NÃO sugere a passagem do tempo, quando ele entra em casa?

a)   A ferrugem nas grades do portão.

b)   A lembrança do local do trinco do portão, que só os filhos conheciam.

c)   O pequeno jardim transformado desde a entrada da casa.

d)   O hábito infantil de tirar as folhas da haste de samambaia.

03 – O silêncio estende-se por toda a casa materna, cheia de imagens do passado. Nesta frase: “As coisas vivem em prece [...]”, o significado é:

a)   Os problemas começaram a se resolver com tranquilidade.

b)   Os fatos vão acontecendo pouco a pouco, sem atropelos.

c)   Com o passar do tempo, tudo se modifica rápido.

d)   A vida parece igual, tudo continua da mesma forma.

04 – Em que passagem do texto é possível entender que a mãe, já idosa, ainda continua na casa e que o pai havia falecido?

a)   “Ausente para sempre de sua casa materna, a figura paterna parece mergulhá-la docemente na eternidade, enquanto as mãos maternas se fazem mais lentas [...]”.

b)   “A imagem paterna persiste no interior da casa materna. Seu violão dorme encostado junto à vitrola”.

c)   “E a cama onde a figura paterna repousava de sua agitação diurna. Hoje, vazia”.

d)   “Na escada há o degrau que estala e anuncia aos ouvidos maternos e presença dos passos filiais”.

05 – Com base no texto, considere as afirmativas abaixo:

I – O andar térreo continua a ser utilizado.

II – O corredor é visto como personagem dos fatos que ocorrem na casa materna.

III – O piano fechado simboliza todo passado de alegria e sonhos que ficou para trás e deu lugar à saudade.

Está CORRETO o que se afirma em:

a)   I e II, apenas.

b)   I e III, apenas.

c)   II e III, apenas.

d)   I, II e III.

06 – Qual é a função do termo destacado na oração abaixo? “As grades do portão têm uma velha ferrugem”.

a)   Objeto indireto.

b)   Adjunto adnominal.

c)   Complemento nominal.

d)   Aposto.

 


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