domingo, 21 de junho de 2020

NOTÍCIA: QUEM TEM O DIREITO DE FALAR? VLADIMIR SAFATLE - COM GABARITO

Notícia: Quem tem o direito de falar?

             VLADIMIR SAFATLE

     Estabelecer que minorias só podem falar dos problemas de seu grupo é uma forma astuta de silenciamento

     A política não é uma questão apenas de circulação de bens e riquezas. Ou seja, ela não se funda simplesmente em uma decisão a respeito de como as riquezas e os bens devem circular, como eles devem ser distribuídos.

        Embora essa seja uma questão central que mobiliza todos nós, ela não é tudo, nem é razão suficiente de todos os fenômenos internos ao campo que nomeamos "política". Na verdade, a política é também uma questão de circulação de afetos, da maneira com que eles irão criar vínculos sociais, afetando os que fazem parte destes vínculos.

        A maneira com que somos afetados define o que somos e o que não somos capazes de ver, o que somos e não somos capazes de sentir e perceber. Definido o que vejo, sinto e percebo, define-se o campo das minhas ações, a maneira com que julgarei, o que faz parte e o que está excluído do meu mundo.

        Percebam, por exemplo, como um dos maiores feitos políticos de 2015 foi a circulação de uma mera foto, a foto do menino sírio morto em um naufrágio no Mar Mediterrâneo.

        Nesse sentido, foi muito interessante pesquisar as reações de certos europeus que invadiram sites de notícias de seu continente com posts e comentários. Uma quantidade impressionante deles reclamava daqueles jornais que decidiram publicar a foto. Por trás de sofismas primários, eles diziam basicamente a mesma coisa: "parem de nos mostrar o que não queremos ver", "isto irá quebrar a força de nosso discurso".

        Pois eles sabiam que seu fascismo ordinário cresce à condição de administrar uma certa zona de invisibilidade. É necessário que certos afetos não circulem, que a humanização bruta produzida pela morte estúpida de um refugiado não nos afete. Todo fascismo ordinário é baseado em uma desafecção.

        Toda verdadeira luta política é baseada em uma mudança nos circuitos hegemônicos de afetos. Prova disso foi o fato de tal foto produzir o que vários discursos até então não haviam conseguido: a suspensão temporária da política criminosa de indiferença em relação à sorte dos refugiados.

        Mas essa quebra da invisibilidade também se dá de outras formas. De fato, sabemos como faz parte das dinâmicas do poder decidir qual sofrimento é visível e qual é invisível. Mas, para tanto, devemos antes decidir sobre quem fala e quem não fala, qual fala ouvirei e qual fala representará, para mim, apenas alguma forma de ressentimento.

        Há várias maneiras de silêncio. A mais comum é simplesmente calar quem não tem direito à voz. Isso é o que nos lembram todos aqueles que se engajaram na luta por grupos sociais vulneráveis e objetos de violência contínua (negros, homossexuais, mulheres, travestis, palestinos, entre tantos outros).

        Mas há ainda outra forma de silêncio. Ela consiste em limitar sua fala. Assim, um será a voz dos negros e pobres, já que o enunciador é negro e pobre. O outro será a voz das mulheres e lésbicas, já que o enunciador é mulher e lésbica. A princípio, isto pode parecer um ato de dar voz aos excluídos e subalternos, fazendo com que negros falem sobre os problemas dos negros, mulheres falem sobre os problemas das mulheres, e por aí vai.

        No entanto, essa é apenas uma forma astuta de silêncio, e deveríamos estar mais atentos a tal estratégia de silenciamento identitário. Ao final, ela quer nos levar a acreditar que negros devem apenas falar dos problemas dos negros, que mulheres devem apenas falar dos problemas das mulheres.

        Pensar a política como circuito de afetos significa compreender que sujeitos políticos são criados quando conseguem mudar a forma como o espaço comum é afetado.

        Posso dar visibilidade a sofrimentos que antes não circulavam, mas quando aceito limitar minha fala pela identidade que supostamente represento, não mudarei a forma de circulação de afetos, pois não conseguirei implicar quem não partilha minha identidade na narrativa do meu sofrimento. Minha produção de afecções continuará circulando em regime restrito, mesmo que agora codificada como região setorizada do espaço comum.

        Ser um sujeito político é conseguir enunciar proposições que implicam todo mundo, que podem implicar qualquer um, ou seja, que se dirigem a esta dimensão do "qualquer um" que faz parte de cada um de nós. É quando nos colocamos na posição de qualquer um que temos mais força de desestabilização de circuitos hegemônicos de afetos.

        O verdadeiro medo do poder é que você se coloque na posição de qualquer um.

     Adaptado de Folha de S. Paulo, 25/09/2015.

Entendendo a notícia:

01 – A tragédia com o menino sírio no Mar Mediterrâneo foi divulgada pela imprensa, assim como as reações de leitores sobre a notícia. De acordo com o texto, as reações contrárias à divulgação da foto do menino sírio representam uma postura de:

a)   Retaliação.

b)   Desrespeito.

c)   Insensibilidade.

d)   Sentimentalismo.

02 – No segundo parágrafo, observa-se a alternância no emprego da primeira pessoa do plural com a do singular. O emprego da primeira pessoa do singular estabelece o efeito de:

a)   Revelar uma culpa.

b)   Antecipar um preconceito.

c)   Interpretar uma individualidade.

d)   Reafirmar um posicionamento.

03 – “Essa dimensão do ‘qualquer um’ que faz parte de cada um de nós”. No parágrafo final, o uso da expressão indefinida destaca a seguinte tese presente na argumentação do autor:

a)   Crítica à polêmica entre concepções políticas.

b)   Recusa às interpretações dos veículos de média.

c)   Defesa da importância dos movimentos migratórios.

d)   Questionamento das fronteiras entre segmentos da população.

04 – Leia as questões:

I – Segundo o autor, grupos de minorias estão sendo silenciados, pois vivemos em um regime autoritário, não democrático.

II – O autor defende que os políticos sejam os legítimos representantes dos grupos minoritários, já que as minorias tendem a ser silenciadas na sociedade.

III – A publicação da foto do menino sírio, morto no naufrágio ao tentar chegar a Europa como imigrante foi, segundo o texto, uma forma de sensacionalismo da imprensa e, por isso, gerou conflitos políticos. Assinale a alternativa correta.

a)   Todas as afirmativas são corretas.

b)   Apenas as afirmativas I e II são corretas.

c)   Apenas as afirmativas II e III são corretas.

d)   Apenas a afirmativa III é correta.

e)   Nenhuma alternativa é correta.

 


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