quarta-feira, 17 de junho de 2020

CONTO: O CAVALO IMAGINÁRIO - MOACYR SCLIAR - COM GABARITO

Conto: O CAVALO IMAGINÁRIO

              Moacyr Scliar

        Nós todos frequentávamos o mesmo colégio, naquela pequena cidade do interior. Um colégio privado, e muito caro, o que, para nossos pais, não chegava a ser problema: éramos, meus amigos e eu, filhos de fazendeiros. Nossos pais tinham grandes propriedades. E tinham muito dinheiro. Nada nos faltava. Andávamos sempre muito bem-vestidos, comprávamos o que fosse necessário para o colégio e gastávamos bastante no bar da escola.

        Aos domingos nos reuníamos para andar a cavalo. Cavalos não faltavam nas fazendas de nossos pais, animais de puro-sangue e bela estampa. Cada um de nós tinha a sua própria montaria, e não estou falando de pôneis, aqueles cavalinhos mansos; não, estou falando de cavalos de verdade, cavalos que corriam muito e saltavam obstáculos. Estou falando de equitação, aquele nobre esporte. Nossos pais faziam questão de que fôssemos excelentes ginetes. Tínhamos até um professor, que nos treinava na arte de cavalgar.

        Eu disse que cada um de nós tinha um cavalo, mas isso não é verdade. Havia um que não tinha cavalo. O Francisco.

        O Francisco não era filho de fazendeiro. O pai dele tinha uma profissão humilde, era sapateiro. Na verdade, o Francisco só estava em nossa escola porque havia recebido uma bolsa de estudos – era um garoto muito inteligente e muito dedicado. Mas o que fazia em nosso grupo?

        Boa pergunta. Acho que nenhum de nós saberia como responder. Diferente dos outros garotos da escola – a maioria dos quais nos detestava –, ele tinha por nós uma admiração que beirava a reverência. Sempre que podia estava por perto. Mais do que isso, oferecia-se para prestar pequenos serviços. Se um de nós queria um refrigerante, o Francisco ia buscar. Se um de nós deixava de apresentar o trabalho solicitado pelo professor, Francisco se encarregava de fazê-lo. Por isso, e só por isso, nós o tolerávamos. Por isso, e só por isso, permitíamos que andasse conosco. Durante a semana, bem entendido; porque no domingo as coisas mudavam. No domingo ele voltava para o seu lugar. Domingo era o dia de cavalgar, e, do alto de nossas selas, nós contemplávamos, altaneiros, o mundo a nosso redor. Como eu disse, Francisco não tinha cavalo. Isso não impedia que cedo já estivesse no clube hípico, esperando por nós. Ficava a olhar-nos, enquanto galopávamos de um lado para o outro. E nós gostávamos de tê-lo como plateia, porque nos aplaudia entusiasticamente. Mais do que isso, procurava imitar-nos: galopava de um lado para o outro, como se estivesse montando um cavalo imaginário. Nós na pista, cavalgando – ele, ao lado da pista, trotando de um lado para outro e gritando como nós gritávamos, aqueles brados que os cavaleiros soltam quando se entregam ao esporte das rédeas.

        De um modo geral, achávamos engraçado aquilo. Não Rodrigo.

        Era um cara desagradável, aquele Rodrigo. Mesmo nós, que éramos amigos dele, tínhamos de reconhecer: um garoto intratável, agressivo com os colegas e até com os professores. A má fama que o nosso grupo tinha devia-se sobretudo a ele. Mas a verdade é que tínhamos de aceitá-lo: seu pai não apenas era o maior fazendeiro da região, como também ocupava o cargo de prefeito da cidade. Rodrigo era seu filho caçula – e o mais mimado. Um garoto estragado, como dizia meu pai.

        Rodrigo não gostou nada daquela história. E nos disse:

        – Não quero mais saber desse tal de Francisco nos imitando.

        Procuramos convencê-lo de que se tratava apenas de uma brincadeira. Inútil: Rodrigo estava furioso mesmo.

        – Vou resolver essa coisa à minha maneira – garantiu.

        Foi o que fez. Num domingo, enquanto Francisco cavalgava seu cavalo imaginário, Rodrigo se aproximou dele. Apeou e comandou:

        – Desça de seu cavalo.

        Francisco obedeceu: desceu do fictício cavalo.

        – Nós vamos fazer uma aposta – disse Rodrigo. – Se eu perder, entrego-lhe o meu cavalo. Se você perder, entrega-me o seu.

        – Que aposta é? – indagou Francisco, numa voz trêmula.

        – Uma corrida – disse Rodrigo. Apontou umas árvores, a uns duzentos metros de distância: – Até ali, e voltamos. Quem chegar aqui primeiro, ganha.

        Lembro-me de que o sangue me subiu à cabeça.

        – Olhe aqui, Rodrigo – comecei a dizer –, você não pode –

        Francisco me interrompeu:

        – Eu aceito a aposta – disse, com voz firme, ainda que meio embargada. – Quero correr.

        Foi uma coisa patética de se ver. Os dois se colocaram lado a lado e, a um sinal, começou aquela coisa maluca. Rodrigo simplesmente trotava em seu magnífico cavalo, Francisco corria atrás – sem conseguir alcançá-lo. Rodrigo foi até as árvores, voltou. Minutos depois chegou Francisco, ofegante. Rodrigo mirou-o com arrogância:

        – Parece que eu ganhei, não é mesmo?

        Francisco, ainda ofegante, permanecia calado.

        – Seu cavalo agora é meu – continuou Rodrigo. – E sabe o que vou fazer com ele? Vou soltá-lo no campo. Ele agora está livre, você não pode mais montar, entendeu?

        Francisco, quieto. Rodrigo apanhou as rédeas imaginárias e foi até o portão do clube. Ali, espantou o suposto cavalo aos gritos. Feito isso, montou em seu próprio cavalo e foi embora.

        Francisco nunca mais foi ao clube. Aliás, ele nem ficou na cidade. Segundo o pai, tinha ido morar com os avós num lugar bem distante.

        Nunca mais o vi. Não sei o que foi feito dele. Dizem que vende automóveis, não sei. Mas tenho certeza de que sei com o que sonha: com um belo cavalo, no qual, montado, galopa à vontade por um imenso campo que não tem limites.

                              Boa Companhia – Contos – p.15-18.

Entendendo o conto:

01 – Em relação à estrutura narrativa do conto, qual:

a)   O tempo?

É cronológico, pois é possível determinar quando acontece (infância do narrador). Narrado no passado.

b)   O enredo?

A história se passa em uma cidade do interior, onde um menino humilde e inteligente sonhava em ter um cavalo. Ele também desejava ter amigos e ser aceito por eles, mas o que mais queria era ter seu próprio cavalo. Já que não tinha capacidade financeira para ter um, usava sua criatividade e imaginação para fazer seu próprio cavalo. Andava em seu cavalo imaginário perto de seus “amigos”, como se ele fosse de verdade.

02 – Qual é a tipologia predominante no conto?

a)   Narrativa.

b)   Argumentativa.

c)   Descritiva.

03 – Quais os personagens que fazem parte dessa narrativa?

      Francisco, o grupo de amigos e Rodrigo.

04 – Em que espaços se desenrola a história?

      Os espaços são determinados, mas não são caracterizados muito detalhadamente. São: escola, clube hípico, fazenda, bar da escola e cidadezinha do interior.

05 – Que temas são abordados no conto?

      Os temas são: o preconceito e a discriminação social.


5 comentários:

  1. Não tem mais respostas?
    De outras perguntas.

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  2. “(...) Ele tinha por nós uma admiração que beirava a reverência.”
    “Isso não impedia que cedo já estivesse no clube hípico, esperando por nós.”

    Em um caso, trata-se de complemento verbal; em outro de complemento nominal. Explique a situação.

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  3. Numa compreensão básica do texto, existem dois antagonismos: Nós x Francisco e Rodrigo x Francisco. Explique em que consiste essas oposições.



    NÓS X
    FRANCISCO




    RODRIGO X
    FRANCISCO









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  4. Eu disse que cada um de nós tinha um cavalo, mas isso não é verdade. Havia um que não tinha cavalo. O FRANCISCO.


    reescreva a frase, adotando a pontuação de acordo com a gramática normativa.

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  5. como e possivel perceber que o narrador e um personagem da historia ?

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