sexta-feira, 1 de maio de 2020

REPORTAGEM: OS FILHOS DE NINGUÉM - JOAQUIM DE CARVALHO - COM GABARITO

Reportagem: Os filhos de ninguém
                 
      Joaquim de Carvalho

      M. S. M., de 03 anos, não se cansa de escutar elogios do tipo: “Que criança bonitinha”. Mas ela quer muito mais do que isso. No fim de semana passado, ela percorria todo o abrigo em que mora, em São Paulo, pilotando a bicicleta que acabara de ganhar. M. S. M. é uma daquelas crianças que o jargão dos assistentes sociais classifica de “institucionalizada”. M. é uma órfã. Ao nascer, ela foi abandonada pela mãe, também órfã. M. ainda tem dificuldade para falar, mas dá um jeito de dizer que quer uma família só sua – e é urgente. Ao ver um adulto, ela se aconchega, faz graça, prende e solta os cabelos. Se tem lápis e papel por perto, faz desenhos caprichosos. Para alguns, pede até que que lhe deem comida na boca. Com pouco mais de conversa, pergunta se o interlocutor vai leva-la dali. M. tem uma família interessada na sua adoção. Pode ser que deixe o orfanato. Pode ser que consiga esquecer que aprendeu a fazer fila antes mesmo de aprender a andar.
        Segundo estimativa da Secretaria de Assistência Social, órgão do Ministério da Previdência, existem no Brasil cerca de 200.000 meninos e meninas abandonados, dos quais 195.000 estão em entidades de amparo, públicas ou privadas. Dentre os que estão em orfanatos, a maioria, 120.000, tem mais de 6 anos e menos de 14 anos. Os demais, 75.000 crianças, tem menos de 6 anos de idade. Chamados em geral de orfanatos, o que menos há nesses abrigos são crianças órfãs. A maioria são meninos e meninas expelidos da família pela miséria material e pela loucura doméstica – um levantamento realizado nos orfanatos de Belo Horizonte revelou que 15% são filhos de mães que trabalham fora e moram nos empregos, 18% são filhos de pais sem-casa e 7% vêm de famílias paupérrimas, que não podem garantir o sustento da prole. Quinze por cento vão para os abrigos por ter sido vítimas de violência praticada por suas próprias famílias. Só 14% vão para essas instituições por morte ou ausência do pai ou da mãe.
        L. C. M., que passou cinco de seus 10 anos na Fundação Romão Duarte, no Rio de Janeiro, disfarça o trauma de ter sido abandonado pelos pais imaginando como seria uma nova mãe. Em tempo de sociedades globalizadas, ele, que assiste à TV todos os dias, estabelece seus critérios sobre a mãe ideal: “Ela tem de ser francesa e loira”. Mas por que francesa? “Porque na França tem neve”. L. sente saudade da mãe de carne e osso, negra como ele, mas prefere que ela não esteja por perto. “Não queria que minha mãe viesse aqui: ela me bate, faz o que quer, e eu prefiro outra”. Confundindo os tempos verbais, L. fala como se a mãe francesa estivesse por perto. “Eu gosto de abraçar a mãe que eu ainda vou ter”, afirma. A casa de L. é um prédio imponente, casarão construído ainda no tempo do império, com cômodos amplos. Tudo organizado e limpo. E também um tanto frio, apesar das boas intensões dos que nele trabalham.
        Nos grandes orfanatos, tirando o sapato do pé, tudo é coletivo. Roupa, brinquedo, toalha, sabonete, xampu – quando há –, lençol e cobertor pertencem a todos. “Estimulamos o espírito de grupo para facilitar a adaptação das crianças no caso de uma adoção”, explica o padre Clodoveo Piazza, diretor da Organização do Auxílio Fraterno, de Salvador. No Sampaio Vianna, em São Paulo, um dos maiores orfanatos brasileiros, com 350 internos, só se admite como objeto particular aquilo que couber num saco plástico de 5 quilos, que as crianças prendem no espaldar da cama. No caso das roupas, trocadas diariamente, quem faz a escolha é a educadora de plantão. Não há sequer um espaço privativo em armários. “As crianças exigem os sapatos como um bem particular e nós deixamos”, diz Wilson Barbalho da Fonseca Junior, diretor do Sampaio Vianna.
        A coletivização é uma exigência do gigantismo da instituição. Ela tem de funcionar como uma indústria de manter crianças em ordem. É por isso que até o próprio Fonseca acha que os grandes orfanatos deveriam ser desmembrados em unidades menores. “Nas pequenas unidades, as crianças poderiam ser atendidas como indivíduos, e não massa”, afirma ele. No Auxílio Fraterno, em Salvador, e no Romão Duarte, no Rio, os banhos são sempre coletivos e as refeições, servidas em horários rígidos. Se não comer no horário, passa fome. No Sampaio Vianna, em cada quarto dormem trinta crianças. O horário para dormir é livre, mas depois das 9 e meia da noite não se encontra ninguém acordado. As crianças podem assistir à televisão, mas o que elas preferem é que as educadoras contem ou leiam alguma história, ouvida em grupo.
        Para um garoto “institucionalizado”, por sua vez, a única riqueza possível é ter alguém que se preocupe especificamente com ele. Assim, os meninos e as meninas que são visitados pelos próprios pais, ainda que de vez em quando, se consideram mais importantes que outro que só tenha um voluntário a se preocupar com ele. E a criança que conta com a atenção de um profissional se julga em melhor conta do que aquela que não consegue sequer receber um presente de uma alma caridosa no Natal. Ser ou não objeto do afeto de alguém é o que distingue uma criança de outra.
        Uma das maneiras encontradas para substituir a família que os abandonou é inventar uma nova enquanto os pais adotivos não chegam – e eles raramente chegam.
        Embora haja mais adultos interessados na adoção do que crianças disponíveis, a adoção só se concretiza quando os candidatos a pai ou a mãe encontram uma criança próxima de seus sonhos. Em geral, a criança sonhada é ainda bebê e tem traços físicos parecidos com os do pai ou da mãe. Ou de ambos. Dificilmente, por exemplo, branco adota negro. E vice-versa.
        A realidade de uma adoção malsucedida é uma tragédia de consequências talvez ainda mais danosas do que a perda dos pais biológicos.
        Segundo o padre Piazza, é por volta dos 14 anos a fase mais aguda do desejo de conhecer os pais. Para os psicólogos, essa é uma curiosidade instintiva. A pessoa tem necessidade estrutural de saber de que corpo saiu. Sem essa informação, resta uma dúvida incômoda: qualquer namorado ou namorada pode ser seu irmão ou irmã. “Os pais adotivos devem informar seus filhos da adoção e compreender a curiosidade em relação aos pais biológicos”, afirma Antônio Carlos Gomes da Costa, ex-presidente da Febem de Minas Gerais.
        O orfandade tem uma longa história no Brasil. Em 1553, Dom João III, rei de Portugal, determina que as crianças órfãs tenham sua alimentação garantida pelos administradores da colônia. Não era apenas um ato humanitário do rei. Os órfãos tinham um papel fundamental no desenvolvimento da terra descoberta. Eram eles que aprendiam a língua indígena e serviam de intérpretes para os jesuítas e oficiais da coroa. Foi par isso que Portugal mandou uma legião de órfãos para o Brasil. Convivendo com os pequenos índios, arrancados de sua tribo, esses meninos e meninas aprendiam o novo idioma. Em razão de seu ofício, eram chamados de meninos-língua.
        A história da orfandade também registra a existência de um cilindro oco de madeira, com a abertura de um único lado, engenhosa inventada na França para facilitar o abandono de crianças. Era a Roda dos Expostos. Importada pelo Brasil em 1726, teve similares nas grandes cidades até 1948, quando foi desativada a unidade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Instalada no muro d fundo do hospital, girava no sentido da calçada para o interior da Santa Casa, levando um bebê, normalmente acompanhado de uma trouxa de roupas. Quem colocava o bebê na Roda não era visto por quem o apanhava, do outro lado do muro.
                 Revista Veja, 25 dez. 1996. p. 142-50. N° especial. (Texto adaptado).
Fonte: Linguagem Nova. Faraco & Moura. Editora Ática. 8ª série. p. 166-71.
Entendendo a reportagem:

01 – O texto trata da orfandade. Que diferença você pode notar no enfoque dado ao assunto no primeiro e no segundo parágrafo?
      O primeiro apresenta uma situação particular de uma criança órfã; o segundo mostra dados estatísticos sobre crianças em entidades de amparo no Brasil.

02 – Se o autor tivesse invertido a ordem de apresentação desses dois parágrafos, você acha que o impacto da leitura seria o mesmo? Justifique sua resposta.
      Resposta pessoal do aluno.

03 – Na sua opinião, por que o nome das crianças foi omitido e substituído pelas iniciais correspondentes?
      Resposta pessoal do aluno.

04 – Na linha 2, na frase “Mas ela quer muito mais do que isso”, a que termo do texto se refere a palavra destacada?
      Ela quer elogios.

05 – O que o autor quer dizer com “[...] aprendeu a fazer fila antes mesmo de aprender a andar”?
      As crianças ficam “na fila” à espera de adoção, e nas entidades de amparo devem fazer fila para tudo; tomar banho, receber presentes, etc.

06 – De acordo com o texto, nos grandes orfanatos, todos os objetos são coletivizados. Como essa coletivização é explicada:
a)   Pelo diretor de um dos orfanatos?
Estímulo do espírito de grupo para facilitar a adaptação das crianças em caso de adoção.

b)   Pelo autor do texto?
Exigência do gigantismo das instituições, que tem de funcionar como uma indústria de manter crianças em ordem.

c)   Com qual dessas explicações você concorda? Concorda com as duas? Com nenhuma? Justifique sua resposta.
Resposta pessoal do aluno.

07 – “Nos grandes orfanatos, tirando o sapato do pé, tudo é coletivo.” Por que o autor usou a expressão “do pé”, já que ela poderia parecer redundante?
      A expressão “do pé” reforça a ideia do sapato que está em uso. Um outro par de sapatos provavelmente seria passado a outra criança.

08 – Textos informativos geralmente apresentam dados estatísticos a respeito do assunto de que tratam. Dos dados apresentados nessa matéria jornalística, qual foi o que mais o impressionou? Por quê?
      Resposta pessoal do aluno.

09 – As estatísticas apresentadas mostram que a palavra orfanato não é rigorosamente adequada para denominar as instituições onde se encontram tais crianças, explique.
      As maiorias das crianças não são órfãs, no sentido estrito do termo; são crianças abandonadas pelas famílias. Os que perderam os pais (ou um deles) constituem a minoria 14%.

10 – Uma característica do texto informativo é a objetividade. No texto lido, apesar de informativo, o autor dá sua opinião, e a própria escolha que faz dos depoimentos das crianças tem intenção de emocionar o leitor, além de servir para dar veracidade ao texto. No trecho seguinte, que parte traz a informação mais objetiva e que parte está mais carregada de emoção? Leia-o: “No Auxílio Fraterno, em Salvador, e no Romão Duarte, no Rio, os banhos são sempre coletivos e as refeições servidas em horários rígidos. Se não comer no horário, passa fome.”
      O primeiro período contém a informação objetiva.

11 – Numa das entidades citadas no texto, as crianças preferem ouvir histórias contadas pelas educadoras a assistir a televisão. Considerando a situação dessas crianças, qual pode ser uma das razões dessa preferência?
      O fato de receber a atenção de uma pessoa, ainda que essa atenção venha de um profissional e seja dividida com o grupo.

12 – Do ponto de vista dos garotos e garotas institucionalizados, a preocupação em possuir coisas parece ser a menor. Qual é a maior?
      Segundo o texto, é ter alguém que se preocupe exclusivamente com eles(as).

13 – Releia: “Ser ou não objeto do afeto de alguém é o que distingue uma criança de outra.”
a)   Por que, nos orfanatos, esse critério acaba pesando tanto na distinção de uma criança da outra?
Por um lado, elas são “massificadas” pela coletivização do espaço e dos bens materiais, bem como pela uniformização dos hábitos. Por outro, há uma extrema carência de afeto.

b)   Você acha que nas famílias esse critério é idêntico? Por quê?
Resposta pessoal do aluno.

14 – Além de apresentar dados estatísticos e depoimentos de pessoas envolvidas, as boas matérias jornalísticas costumam apresentar informações históricas sobre o assunto de que tratam. O que mais o impressionou na história da orfandade no Brasil? Por quê?
      Resposta pessoal do aluno.

15 – Que informações novas você obteve ao ler essa matéria jornalística? E que sentimentos essa matéria provocou em você?
      Resposta pessoal do aluno.

16 – Agora, releia a data de publicação da revista da qual retiramos a matéria. Considerando o calendário cristão, comente a relação entre essa data e o tema da matéria jornalística.
      A revista foi às bancas na época do Natal, festa cristã que comemora o nascimento de cristo.


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