sábado, 30 de maio de 2020

CONTO: O HOMEM QUE ENXERGAVA A MORTE - RICARDO AZEVEDO - COM GABARITO

Conto: O homem que enxergava a morte  
                                                        
  Ricardo Azevedo

        Era um homem pobre. Morava num casebre com a mulher e seis filhos pequenos. Vivia triste e inconformado pela miséria em que vivia.
        Um dia, sua esposa engravidou de novo. Assim que o sétimo filho nasceu, o homem disse à mulher:
        — Vou ver se acho alguém que queira ser padrinho de nosso filho.
        Temia que ninguém quisesse ser padrinho da criança, arranjar padrinho para o sexto filho já tinha sido difícil. Quem ia querer ser compadre de um pé-rapado como ele?
        E lá se foi o homem andando e pensando e quanto mais pensava mais inconformado e triste ficava.
        Mas no tempo, ninguém consegue colocar rédeas.
        O dia passou, o sol caiu na boca da noite e o homem ainda não tinha encontrado ninguém que aceitasse ser padrinho de seu filho.
        Desanimado, voltava para casa, quando deu uma grande ventania… que levantou poeira em seus olhos e surgiu uma figura curva, vestindo uma capa escura, apoiada numa bengala de osso. Com voz baixa ela ofereceu-se:
        — Se quiser, posso ser madrinha de seu filho.
        — Quem é você? perguntou o homem.
        A figura respondeu: -- Sou a Morte.
        O homem não pensou duas vezes:
        -- Aceito. Você sempre foi justa e honesta, pois leva para o cemitério todas as pessoas, sejam elas ricas ou pobres. Sim, quero que seja minha comadre, madrinha de meu sétimo filho!
        E assim foi. No dia combinado a Morte apareceu com sua capa escura e sua bengala de osso. O batismo foi realizado com muita festa e comida farta oferecida pela madrinha. Após a cerimônia, a Morte chamou o homem de lado.
        -- Fiquei muito feliz com seu convite. Já estou acostumada a ser maltratada. Em todos os lugares por onde ando as pessoas fogem de mim, falam mal, xingam … Essa gente não entende que não faço mais do que cumprir minha obrigação. Já imaginou se ninguém mais morresse no mundo? Não ia sobrar lugar para as crianças que iam nascer!  Você é a primeira pessoa que me trata com gentileza e compreensão.
        E disse mais:
        — Quero retribuir tanta consideração. Pretendo ser uma ótima madrinha para seu filho. E por isso vou transformá-lo numa pessoa rica, famosa e poderosa. Só assim, você poderá criar, proteger e cuidar de meu afilhado.  A partir de hoje você será um médico.
        — Médico? Eu? — perguntou o sujeito, espantado. — Mas eu de medicina não entendo nada!
        — Preste atenção — disse ela. Volte para casa e coloque uma placa dizendo-se médico. De hoje em diante, caso seja chamado para examinar algum doente, somente você poderá me enxergar. Se eu estiver na cabeceira da cama, isso será sinal de que a pessoa ficará boa, se me enxergar no pé da cama o doente logo, logo vai esticar as canelas.
        E nesse instante soprou um vento gelado, e a morte disse:— Daqui pra frente — você vai ter o dom de conseguir enxergar a Morte cumprindo sua missão. O homem pegou prego e martelo escreveu MÉDICO numa tabuleta e a pregou bem na frente de sua casa. Logo   apareceram as primeiras pessoas adoentadas.
        O tempo passava correndo feito um rio que ninguém vê.
        Enquanto isso, sua fama de médico começou a crescer, pois ele não errava uma. O doente podia estar muito mal e já desenganado. Se ele dizia que ia viver, dali a pouco o doente estava curado. Em outros casos, às vezes a pessoa nem parecia muito enferma, mas se o médico disse-se que não tinha jeito, não demorava muito e a pessoa batia as botas.
        A fama do homem pobre que virou médico correu mundo. E com a fama veio a fortuna. Como muitas pessoas curadas costumavam pagar bem, o sujeito acabou ficando rico.
        Mas o tempo é um trem que não sabe parar na estação.
        O sétimo filho do homem, o afilhado da Morte, cresceu e tornou-se adulto.
        Certa noite, bateram na porta da casa do médico. Quando o médico abriu soprou uma forte ventania e apareceu uma figura curva, vestindo uma capa escura, apoiada numa bengala de osso, que falou em voz baixa:
        — Caro compadre, tenho uma notícia triste: sua hora chegou. Seu filho já é homem feito. Estou aqui para levar você. O médico deu um pulo da cadeira. — Mas como! Fui pobre e sofri muito, agora tenho profissão, ajudo as pessoas, tenho riqueza e fartura, você aparece pra me levar! Isso não é justo!  O médico não se conformava. E argumentou, e pediu, e suplicou tanto que a Morte resolveu conceder mais um pouquinho de tempo.
        — Só porque somos compadres, só por ser madrinha de seu filho, vou lhe dar mais um ano de vida — disse isto e sumiu numa ventania.
        O velho médico continuou trabalhando. Um dia, recebeu um chamado urgente. Uma moça estava gravemente enferma. Ele pegou a maleta e saiu correndo. Assim que entrou no quarto da menina enxergou, parada ao pé da cama, a figura sombria e invisível da Morte, pronta para dar o bote.
        O médico examinou a moça, ela era tão bonita e delicada, que ele sentiu pena. Uma pessoa tão jovem, com uma vida inteira pela frente, não podia morrer assim sem mais nem menos. Então ele pensou e tomou uma decisão. “Já estou velho, não tenho nada a perder. Pela primeira vez na vida vou ter que desafiar minha comadre.”
        E rápido, de surpresa, antes que a Morte pudesse fazer qualquer coisa, deu um jeito de virar o corpo da menina na cama, e a cabeça ficou no lugar dos pés e os pés foram parar do lado da cabeceira. Fez isso e berrou:
        — Tenho certeza! Ela vai viver!
        A linda menina abriu os olhos e sorriu como se tivesse acordado de um sonho ruim.
        A Morte soltou um uivo e foi embora contrariada, e no dia seguinte apareceu na casa do médico num pé de vento.
        — Que história é essa? Ontem você me enganou!
        — Mas ela ainda era uma criança!
        --- E daí? Você contrariou o destino. Agora vai pagar caro. Vou levar você no lugar dela!
        O médico tentou negociar. Disse que queria viver mais um pouco.
        A Morte balançou a cabeça e disse: — Quero te mostrar uma coisa?
        E, num passe de mágica, transportou o médico para um lugar desconhecido e estranho. Era um salão imenso, cheio de velas acesas, de todas as qualidades, tipos e tamanhos.
        — O que é isso? — quis saber o velho.
        — Cada vela dessas corresponde à vida de uma pessoa.  As velas grandes, bem acesas, cheias de luz, são vidas que ainda vão durar muito. As pequenas são vidas que já estão chegando ao fim. Olhe a sua. E mostrou um toquinho de vela, com a chama trêmula, quase apagando.
        — Mas então minha vida está por um fio! Quer dizer que não me resta nenhuma esperança?
        A Morte fez “sim” com a cabeça. Em seguida, noutro passe de mágica transportou o médico de volta para casa.
        — Tenho um último pedido, antes de morrer, gostaria de rezar o pai nosso.
        A Morte concordou. Mas o velho médico não ficou satisfeito.
        — Quero que me prometa uma coisa. Jure de pé junto que só vai me levar embora depois que eu terminar a oração.
        A Morte jurou e o homem começou a rezar:
        — Pai-Nosso que…
        Começou, parou e gargalhou.
        — Vamos lá, compadre. Termine logo com isso que eu tenho mais o que fazer.
        — Coisa nenhuma!  Você jurou que só me levava quando eu terminasse de rezar. Pois bem, pretendo levar anos para acabar minha reza…
        Ao perceber que tinha sido enganada mais uma vez, a Morte rodopiou no vento e foi embora, mas antes fez uma ameaça:
        — Deixa que eu pego você!
Dizem que aquele homem ainda durou muitos e muitos anos.
        Mas, um dia, andando a cavalo por uma estrada, deu com um corpo caído. O velho médico bem que tentou, mas não havia nada a fazer.
        — Que tristeza! Morrer assim sozinho no meio do caminho!
        Antes de enterrar o infeliz, o bom homem tirou o chapéu e rezou o Pai-Nosso.
        Mal acabou de dizer amém, levantou uma grande ventania e o morto abriu os olhos e sorriu.
        Era a Morte fingindo-se de morto.
        — Agora você não me escapa!
        Naquele exato instante, uma vela pequena, num lugar desconhecido e estranho, estremeceu e ficou sem luz.
Ricardo Azevedo.
Entendendo o conto:

01 – Em relação ao espaço e ao tempo da narrativa em qualquer conto de assombração é possível saber quando e onde a história narrada acontece?
      A história se passa num casebre e o tempo é indeterminado.

02 – Neste conto a personagem principal tenta enganar a morte para continuar vivendo por mais tempo. Como o homem consegue enganá-la? Explique.
      Na primeira vez que ela veio busca-lo, ele pediu mais um ano de vida.
      Depois pediu para a morte espera-lo a rezar um Pai-Nosso e não terminava nunca, assim a morte desistiu de novo.

03 – Com base na leitura do texto, assinale as alternativas verdadeiras (V) ou falsas (F) que interpretam de forma adequada as informações presentes no conto.
(V) Ocorre o pacto entre a morte e o humilde homem.
(V) O sucesso profissional do homem que enxergava a morte percorre o mundo.
(V) São apresentadas informações sobre a vida do homem e de como era a sua família.
(F) Quando nasce o oitavo filho do homem, ele resolve escolher a morte como madrinha da criança.
(V) Uma figura curva, vestindo uma capa escura, apoiada numa bengala feita de osso, foi buscar o homem para leva-lo com ela.
(F) A morte dá instruções ao homem sobre como atuar na profissão de advogado.
(F) O encontro do homem com a morte foi interrompido pela mulher do homem.

04 – Mesmo tratando de um tema tão arrepiante como é a morte, Ricardo Azevedo consegue ser engraçado. Por que podemos dizer que há humor no conto? Explique.
      O humor está quando o homem engana a morte, várias vezes.

05 – O que você achou mais interessante a respeito dos contos de assombração?
      Resposta pessoal do aluno.

06 – Sobre o gênero textual “Contos de assombração”, marque com um X somente nas alternativas corretivas.
(X) As personagens, normalmente são fantasmas, monstros, caveiras e outros seres assombrosos.
(   ) Os contos de assombração são histórias verdadeiras.
(   ) O narrador participa da história.
(   ) O texto apresenta uma moral que fica no final da história.
(X) O tempo em que se passa a história é indeterminado.
(X) Vários contos de assombração possuem características próprias de uma região e geralmente são histórias contadas por pessoas mais velhas.


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