quarta-feira, 20 de maio de 2020

CRÔNICA: ESTES JOVENS ENTREVISTADORES E SEUS FANTÁSTICOS GRAVADORES - MOACYR SCLIAR - COM GABARITO


Crônica: Estes jovens entrevistadores e seus fantásticos gravadores
          
                  Moacyr Scliar

    Se há coisa que comove e estimula um escritor gaúcho é o apoio, sempre dedicado e muitas vezes anônimo, que a literatura rio-grandense recebe em centenas de esmolas, às vezes no mais remoto interior. Ainda na semana que passou, vários colégios fizeram realizar a Semana do Escritor Gaúcho. Muitos escritores, entre eles eu, foram procurados para palestras, sessões de autógrafos e entrevistas.
        Não são todos os escritores que gostam de falar para estudantes, ou para quem quer que seja; Dalton Trevisan, por exemplo, distribui uma entrevista-padrão mimeografada, e pronto, todo o resto está em seus livros. Eu, porém, gosto de conversar com jovens ou com qualquer pessoa sobre literatura. É um oficio muito solitário, este, de modo que romper a casca de vez em quando é benéfico. Não essencial, mas benéfico; sempre é algum feedback. E também é bom ajudar gente moça, que está se iniciando na literatura, e que muitas vezes se aflige com o misterioso código dos textos. Eu às vezes recebo telefonemas aflitos:
        -- Rápido! Tenho prova amanhã! O que é que o senhor quer dizer com a sua obra?
        Não há dúvida que é um bom exercício de síntese e que deve ter alguma utilidade: acredito que, no dia do Juízo, o Senhor nos cobrará mais ou menos nesses termos – Rápido! Qual foi o sentido de sua vida? –, de modo que é bom a gente estar preparado. Mas mesmo quando não estão a algumas horas de um exame, os estudantes entram em ansiedade aguda ante a perspectiva de fazer perguntas a um escritor. Uma das causas deve ser o próprio escritor, sempre uma figura mítica; outra causa deve ser o temor de fazer perguntas inadequadas; mas eu acho que o principal fator de perturbação dos jovens é o gravador.
        Nas mãos de um aluno de primeiro ou segundo grau, o gravador se revela um instrumento maligno, simplesmente incapaz de ser controlado – ao menos na ocasião de entrevistar um escritor. É uma rotina que constantemente se repete: entra o grupo de alunos, e em meio a risinhos nervosos, se prepara para a entrevista de antemão combinada. A primeira providência é desdobrar a folha de papel com as mil quatrocentas e vinte perguntas preparadas; a segunda – conditio sine qua non para a entrevista – é fazer funcionar o gravador. A primeira coisa que descobrem é que está sem pilhas; nenhum problema, só que a dona do gravador esqueceu de coloca-las. Mas aí, quando ela procura na bolsa, vê que só tem três pilhas, não quatro. A quarta, simplesmente sumiu, e deve ser fornecida pelo escritor, de cujo equipamento intelectual as pilhas são hoje componente indispensável. Colocada a pilha, deveria começar a gravação – e então é aquela atrapalhação com as teclas; em vez de Record a menina aperta o Fast Forward ou Rewind.
        O resultado disto é que, quando a entrevista finalmente começa, os entrevistadores não conseguem desgrudar os olhos da cassete, para ver se ela está rodando mesmo, o que acaba contagiando o escritor – e no fim, estão todos mais preocupados com o gravador que com a literatura. Mesmo que a cassete tenha rodado, contudo, não há garantia de que a entrevista tenha saído boa, é possível que os entrevistadores se lembrem que esqueceram de regular o volume, com o que a cassete, tocada, revela apenas uns débeis murmúrios que nem a professora de mais boa vontade poderá identificar com uma voz poderosa da literatura. Começa tudo de novo: onde é que o senhor nasceu? Que livros já escreveu? – etc. E desta vez então dá certo, e os alunos sorriem triunfantes, o escritor se solidariza com eles – bom trabalho, pessoal! – e, como convém à literatura e à vida, chega-se a um final feliz. Que é, afinal, o supremo consolo para os ofícios solitários. Enquanto houver jovens dispostos a – com ou sem gravador – perguntar, valerá a pena escrever e falar sobre o escrever.
  Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar e outras crônicas. Porto Alegre, L&PM 2001.
 Fonte: Livro – Ler, entender, criar – Português – 6ª Série – Ed. Ática, 2007 – p. 160-2.

Entendendo a crônica:

01 – Releia esta frase, do primeiro parágrafo do texto: “Muitos escritores, entre eles eu, foram procurados para palestras, sessões de autógrafos e entrevistas.”
A quem se refere o pronome eu nesse trecho? O que lhe permitiu chegar a essa conclusão?
      Refere-se a Moacyr Scliar. A identificação é possível porque o nome do autor do texto vem registrado logo abaixo do título.

02 – No texto acima ficamos conhecendo a visão de um entrevistado sobre um tipo de entrevista. Qual é esse tipo?
      As entrevistas realizadas por estudantes para a escola.

03 – Com base nas informações contida no texto, responda: qual é a função de Moacyr Scliar?
      Ele é escritor.

04 – De acordo com o texto “Estes jovens entrevistadores e seus fantásticos gravadores”, os alunos ficam ansiosos ante a perspectiva de fazer perguntas a um escritor. Um dos motivos é o próprio escritor, sempre uma figura mítica. O que você entende por “figura mítica”?
      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: nesse contexto, é uma “figura idealizada, fabulosa, legendária”.

05 – Ainda que de modo brincalhão, o escritor faz duas críticas à organização das entrevistas pelos estudantes. Quais são essas críticas?
      O excesso de perguntas (possivelmente causado pela falta de seleção das mais significativas para os objetivos da entrevista) e o descuido e a inabilidades dos estudantes no manejo do gravador.

06 – Segundo Moacyr Scliar, nem todos os escritores gostam de conceder entrevistas. Que exemplo ele menciona para comprovar seu ponto de vista?
      O caso de Dalton Trevisan, que distribui uma entrevista-padrão mimeografada e espera que quaisquer outras informações sejam encontradas em sua própria obra.

07 – Em que trechos Moacyr Scliar justifica sua boa vontade em conceder entrevistas?
      “É um ofício muito solitário, este, de modo que romper [...] se aflige com o misterioso código dos textos”, “[...] e, como convém à literatura e à vida, chega-se a um final feliz. [...] valerá a pena escrever e falar sobre o escrever”.



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