domingo, 24 de maio de 2020

CRÔNICA: A CADEIRA DO DENTISTA - CARLOS EDUARDO NOVAES - COM GABARITO

Crônica: A cadeira do dentista
          
               Carlos Eduardo Novaes

   Fazia dois anos que não me sentava numa cadeira de dentista. Não que meus dentes estivessem por todo esse tempo sem reclamar um tratamento. Cheguei a marcar várias consultas, mas começava a suar frio folheando velhas revistas na antessala e me escafedia antes de ser atendido. Na única ocasião em que botei o pé no gabinete do odontólogo – tem uns seis meses –, quando ele me informou o preço do serviço, a dor transferiu-se do dente para o bolso.
        -- Não quero uma dentadura em ouro com incrustações em rubis e esmeraldas – esclareci –, só preciso tratar o canal.
        -- É esse o preço de um tratamento de canal!
        -- Tem certeza? O senhor não estará confundindo o meu canal com o do Panamá?
        Adiei o tratamento. Tenho pavor de dentista. O mundo avançou nos últimos 30 anos, mas a Odontologia permanece uma atividade medieval. Para mim não faz diferença um "pau-de-arara" ou uma cadeira de dentista: é tudo instrumento de tortura.
        Desta vez, porém, não tive como escapar. Os dentes do lado esquerdo já tinham se transformado em meros figurantes dentro da boca. Ao estourar o pré-molar do lado direito, fiquei restrito à linha de frente para mastigar maminhas e picanhas. Experiência que poderia ter dado certo, caso tivesse algum jeito para esquilo.
        A enfermeira convocou-me na sala de espera. Acompanhei-a, após o sinal-da-cruz, e entramos os dois no gabinete do dentista, que, como personagem principal, só aparece depois do circo armado.
        -- Sente-se – disse ela, apontando para a cadeira.
        -- Sente-se a senhora – respondi com educada reverência –, ainda sou do tempo em que os cavalheiros ofereciam seus lugares às damas.
        Minhas pernas tremiam. Ela tornou a apontar para a cadeira.
        -- O senhor é o paciente!
        -- Eu?? A senhora não quer aproveitar? Fazer uma obturaçãozinha, limpeza de tártaro? Fique à vontade. Sou muito paciente. Posso esperar aqui no banquinho.
        O dentista surgiu com aquele ar triunfal de quem jamais teve cárie. Ah! Como adoraria vê-lo sentado na própria cadeira extraindo um siso incluso! Mal me acomodei e ele já estava curvado sobre a cadeira, empunhando dois miseráveis ferrinhos, louco para entrar em ação. Nem uma palavra de estímulo ou reconforto. Foi logo ordenando:
        -- Abra a boca.
        Tentei, mas a boca não obedeceu aos meus comandos.
        -- Não vai doer nada!
        -- Todos dizem a mesma coisa – reagi. Não acredito mais em vocês!
        -- Abra a boca! – insistiu ele.
        Abri a boca. Numa cadeira de dentista sinto-me tão frágil quanto um recruta diante do sargento do batalhão.
        Ele enfiou um monte de coisas na minha boca e tocou o dente com um gancho.
        -- Tá doendo?
        -- Urgh argh hogli hugli.
        Os dentistas são tipos curiosos. Enchem a boca da gente de algodão, plástico, secadores, ferros e depois desandam a fazer perguntas. Não sou daqueles que conseguem responder apenas movendo a cabeça. Para mim, a dor tem nuances, gradações que vão além dos limites de um sim-não.
        -- A anestesia vai impedir a dor – disse ele, armado com uma seringa.
        -- E eu vou impedir a anestesia – respondi duro segurando firme no seu pulso.
        Ele fez pressão para alcançar minha pobre gengiva. Permaneci segurando seu pulso. Ele apoiou o joelho no meu baixo ventre. Continuei resistindo, em posição defensiva. Ele subiu em cima de mim. Miserável! Gemi quase sem forças. Ele afastou a mão que agarrava seu pulso e desceu com a seringa. Lembrei-me de Indiana Jones e, num gesto rápido, desviei a cabeça. A agulha penetrou a poltrona. Peguei o esguichador de água e lancei-lhe um jato no rosto. Ele voltou com a seringa.
        -- Não pense que o senhor vai me anestesiar como anestesia qualquer um – disse, dando-lhe um tapa na mão.
        A seringa voou longe e escorregou pelo assoalho. Corremos os dois pra alcançá-la, caímos no chão, embolados, esticando os braços para ver quem pegava a seringa. Tapei-lhe o rosto com meu babador e cheguei antes. A situação se invertera: eu estava por cima.
        -- Agora sou eu quem dá as ordens – vociferei, rangendo os dentes. – Abra a boca!
        -- Mas... não há nada de errado com meus dentes.
        -- A mim você não engana. Todo mundo tem problemas dentários. Por que só você iria ficar de fora? Vamos, abra essa boca!
        -- Não, não, não. Por favor – implorou. Morro de medo de anestesia.
        Era o que eu suspeitava. É fácil ser corajoso com a boca dos outros. Quero ver continuar dentista é na hora de abrir a própria boca. Levantei-me, joguei a seringa para o lado e disse-lhe, cheio de desprezo:
        -- Você não passa de um paciente!
                 Carlos Eduardo Novaes. A cadeira do dentista e outras crônicas.
 São Paulo: Ática, 1999.
Entendendo a crônica:

01 – Qual fato do cotidiano da vida das pessoas inspirou o autor a escrever a crônica?
      O fato é a ida ao dentista.

02 – Que recursos o autor usa em seu texto que o torna diferente do relato de um fato cotidiano? Identifique aspectos presentes na crônica que a diferenciam dos relatos pessoais em relação ao “mesmo” fato do cotidiano: Uma ida ao dentista.
      Ele usa pequeno fato do cotidiano (ida ao dentista) e promove com trechos mais longos uma argumentação.
      Os aspectos presentes que diferenciam dos relatos pessoais são os diálogos com enfoque humorístico.

03 – Releia o trecho a seguir, de “A cadeira do dentista”:
        “Ele subiu em cima de mim. Miserável! Gemi quase sem forças. Ele afastou a mão que agarrava seu pulso e desceu com a seringa. Lembrei-me de Indiana Jones e, num gesto rápido, desviei a cabeça. A agulha penetrou a poltrona. Peguei o esguichador de água e lancei-lhe um jato no rosto. Ele voltou com a seringa.”

        Nessa passagem, aparece a referência a Indiana Jones. Por que o narrador da crônica faz alusão a essa personagem?
      Porque a personagem aproxima a crônica do universo dos filmes de aventura e faz o leitor imaginar que “lutar” contra o dentista é como travar uma luta de aventura.

04 – De acordo com o texto, observe a formação das frases:
I – Ele subiu em cima de mim.
II – Miserável.
III – Gemi quase sem forças.
IV – Ele afastou a mão que agarrava seu pulso e desceu com a seringa.

a)   Qual dessa frases concentra mais informações? Por quê?
É a frase IV, porque é mais longa e tem mais verbos (palavras que indicam ações e processos).

b)   Quantos verbos há em cada uma das frases citadas?
Em I e III, há um verbo, em II não há verbo e em IV há três verbos.

c)   Indique qual é a frase nominal.
É a frase II.

d)   Em uma das frases, há uma oração adjetiva. Indique qual é a frase e qual é a oração.
Na frase IV: “que agarrava seu pulso”.

e)   Uma oração é a frase ou a parte da frase que se organiza em torno de um verbo. Sabendo disso, diga quantas orações há em cada uma das frases I, II, III e IV.
Em I e III, há uma oração. Em IV, há três. Em II, não há oração.

05 – As frases que contêm apenas uma oração são chamadas de períodos simples. As que contêm duas ou mais orações formam os períodos compostos.
        Observe a maior parte das frases a crônica e verifique: há mais períodos simples ou compostos?
      Há mais períodos compostos do que simples.

06 – Qual é a tipologia textual?
      É a narrativa.

07 – Nesse texto, qual trecho mostra que o narrador é um personagem da história?
a)   “Fazia dois anos que não me sentava numa cadeira de dentista.”.
b)   “O dentista surgiu com aquele ar triunfal de quem jamais teve cárie.”.
c)   “A seringa voou longe e escorregou pelo assoalho.”.
d)   “É fácil ser corajoso com a boca dos outros.”.

08 – A expressão “... a dor transferiu-se do dente para o bolso.” foi usada para:
a)   Destacar a parte do corpo que mais doía.
b)   Exagerar a dor de dente sentida pelo paciente.
c)   Indicar que o tratamento de dente era caro.
d)   Sugerir que a dor se espalhou pelo corpo.

09 – Nesse texto, o trecho “Levantei-me, joguei a seringa para o lado e disse-lhe, cheio de desprezo: ...” apresenta linguagem:
a)   Culta.
b)   Informal.
c)   Regional.
d)   Técnica.

10 – De acordo com o trecho “Cheguei a marcar várias consultas, mas começava a suar frio...”, o narrador estava:
a)   Cansado.
b)   Com calor.
c)   Com medo.
d)   Irritado.

11 – Nesse texto, um dos trechos que apresenta humor é:
a)   “Cheguei a marcar várias consultas, mas começava a suar frio...”.
b)   “Adiei o tratamento. Tenho pavor de dentista.”.
c)   “Ele afastou a mão que agarrava seu pulso e desceu com a seringa.”.
d)   “Não, não, não. Por favor [...]. Morro de medo de anestesia”.

12 – Nesse texto, no trecho “– Abra a boca!”, o ponto de exclamação reforça a ideia de:
a)   Surpresa.
b)   Irritação.
c)   Dúvida.
d)   Admiração.

13 – No trecho “Corremos os dois pra alcançá-la...”, o termo em destaque está substituindo a palavra:
a)   Anestesia.
b)   Mão.
c)   Seringa.
d)   Boca.

14 – O texto apresenta um sentimento comum a muitas pessoas em relação à ida ao dentista. Que sentimento seria esse?
      Sentimento de medo, pavor.

15 – Quantos personagens aparecem no texto? Quem são eles?
      Três personagens: A secretaria, o paciente e o dentista.

16 – O texto provoca humor ou procura fazer uma reflexão sobre a ida ao dentista?
      Provoca humor acerca das cenas e acontecimentos dentro do consultório do dentista.

17 – “--Eu?? A senhora não quer aproveitar? Fazer uma obturaçãozinha, limpeza de tártaro?” Qual seria o motivo que leva o paciente a estar aparentemente tão gentil com a enfermeira?
      Ele estava nervoso, apavorado.

18 – Que efeito de sentido tem a expressão “a dor transferiu-se do dente para o bolso?
      Significa que o tratamento era caro, por isso doía o bolso para pagar.

19 – Que passagem, no desfecho, expressa a ironia no final da crônica?
      “É fácil ser corajoso com a boca dos outros. Quero ver continuar, dentista é na hora de abrir a própria boca”.

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