quinta-feira, 14 de agosto de 2025

CRÔNICA: PARA MARIA DA GRAÇA - PAULO MENDES CAMPOS - COM GABARITO

 Crônica: Para Maria da Graça

              Paulo Mendes Campos

        Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.

        Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgYGgECNacZ9r1Wpbp127zluI7lBDNcDnibFyNnERd-XWVGICeuTGCCEXUl2rO29GjCKUCdmZF2WdOWhD6FBLqRfexPVhyoy1986-h_tCcuVibRCXDPKPJDA1_Irrf3Q_Yo8lSjKn8Am2w7HMd1KqK46JWumDUXvtueutgyLQ1Ag_V3g8V0xUWBLFMc0Aw/s1600/CRONICA.jpg


        Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.

        A realidade, Maria, é louca.

        Nem o papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade, Dinah, já comeste um morcego?".

        Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?" Essa indagação perplexa é o lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.

        A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!". O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.

        Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes consequências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.

        Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.

        A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon!". Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou a Alice: "Gostaria de gatos se fosses eu?".

        Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namoradas, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! Mas quem ganhou?". É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupes a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste.

        Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste!". Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem "Minha vida daria um romance!" Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.

        Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.

        E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos.

        O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor.

        Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.

        Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: "Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas".

        Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida. É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.

Extraído de: Para gostar de ler (volume 4 – crônicas) Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, São Paulo, Ática/Edição Didática.

Fonte: Programa de Formação de Professores Alfabetizadores. Coletânea de textos – Módulo 1. p. 288-289.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é o presente que o narrador oferece a Maria da Graça, e o que ele simboliza?

      O narrador presenteia Maria da Graça com o livro "Alice no País das Maravilhas". Este livro não é apenas uma história, mas um símbolo e um guia para que Maria da Graça aprenda a "ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas". Ele representa uma chave para compreender a realidade complexa, por vezes absurda, e para encontrar significado naquilo que parece sem sentido.

02 – Segundo o narrador, qual é a principal lição que Maria da Graça deve aprender sobre a "loucura" da realidade?

      A principal lição que Maria da Graça deve aprender é que "a realidade, Maria, é louca" e que é essencial descobrir um sentido nessa loucura para não acabar louca. O narrador enfatiza que, ao invés de se espantar com o mundo irreconhecível, ela deve aprender a decifrar a "charada" da existência e a inventar suas próprias respostas, mesmo que "seja mentira", para se fortalecer.

03 – Como a crônica aborda a questão da identidade e do autoconhecimento?

      A crônica aborda a questão da identidade através da indagação "Quem sou eu no mundo?", que o narrador descreve como o "lugar-comum de cada história de gente". Ele sugere que, quanto mais vezes Maria da Graça decifrar essa charada, mais forte ela se tornará. A crônica enfatiza que a resposta não é tão importante quanto o ato de dar ou inventar uma resposta, indicando que o autoconhecimento é um processo contínuo de construção pessoal.

04 – O que o narrador sugere sobre a "sabedoria de bolso" e como ela se relaciona com as interações sociais?

        A "sabedoria de bolso" é descrita como uma sabedoria prática e menos "grave", focada na convivência social. O narrador sugere a importância de pedir desculpas frequentemente ("Oh, I beg your pardon!") e de exercitar a empatia, tentando ver o mundo do ponto de vista do outro, como exemplificado pela pergunta do rato a Alice: "Gostaria de gatos se fosses eu?". Essa sabedoria visa à leveza e à compreensão nas relações humanas.

05 – Qual é a crítica do narrador em relação às "corridas" e competições na vida adulta?

      O narrador critica as competições incessantes e muitas vezes fúteis da vida adulta, sejam elas no trabalho, na política, nas artes ou mesmo nas relações pessoais. Ele as descreve como "confusas, cheias de truques, desnecessárias, fingindo que não é, ridículas". A crítica central é que muitas vezes as pessoas competem sem um propósito claro, e o mais importante não é ser o primeiro a chegar, mas sim chegar "aonde quiseres", independentemente da posição em relação aos outros.

06 – Como o conceito de "milagres" é redefinido pelo narrador na crônica?

      O narrador redefine o conceito de "milagres", afirmando que eles sempre acontecem na vida, mas "não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar". Ele sugere que os verdadeiros e mais profundos milagres são processos lentos e graduais. Essa visão contrasta com a expectativa comum de eventos súbitos e espetaculares, incentivando Maria da Graça a reconhecer as transformações lentas e importantes em sua vida.

07 – O que significa a metáfora das "três caixas para guardar humor" e qual a importância da "caixinha preciosa"?

      A metáfora das "três caixas para guardar humor" representa a necessidade de gerenciar o humor em diferentes situações da vida. A caixa grande é para o humor cotidiano; a média, para o humor pessoal, que permite rir de si mesma e perdoar-se. A "caixinha preciosa" é a mais importante e escondida, reservada para as "grandes ocasiões", ou seja, os momentos de dor ou vaidade extrema, em que se sente o fracasso ou o triunfo. Ela é crucial para manter o equilíbrio e o bom humor nessas situações de vulnerabilidade, evitando a autodestruição ou o excesso de presunção.

 

CRÔNICA: O RÁDIO APAIXONADO - MOACYR SCLIAR - COM GABARITO

 Crônica: O rádio apaixonado

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj2cbEg5fuEWJ4Jd9C4TzTnjg_lgh7RuRz8jPW5jCXkd8yNPl_HO3ILChiRUM-lW3w-_IJeA-Id9ae1lary1M-fl1mtbuyiAnUTya_QZ22xJ6SHFeJPkiSlBS9l7_hBUODamE8Pr5jshG5wlmSTlWe67eQ_kpmg1fD6438Vg68xU9Vy0bljnpcdVS9Bmkk/s320/Pinterest(1).png

               Moacyr Scliar

        MINHA QUERIDA DONA, sei que você anda se queixando de mim, publicamente, até. Você não pode imaginar o sofrimento que isto me causa, mesmo porque você provavelmente acha que rádios são objetos inanimados, sem vida própria.

        Você está enganada. Ao menos no meu caso, você está enganada. Ao contrário do que você pensa, tenho sentimentos, tenho emoções. É em nome desses sentimentos e dessas emoções que lhe falo agora, tanto em AM como em FM. Na verdade, eu nem tinha tomado conhecimento de minha própria existência, até que fui instalado em seu carro.

        Você estava muito feliz; tinham lhe dito que minha marca é ótima, e que você contaria com um som maravilhoso para lhe ajudar no estresse que é esse trânsito. E, eu colocado no meu lugar, você me acariciou, você tocou os meus botões. Senti um verdadeiro choque, eu que já deveria estar acostumado com eletricidade. Você fez de mim um ser vivo.

        Vivo e apaixonado. Daquele momento em diante, passei a ansiar por sua presença. Era para você que eu queria transmitir as melodias que recebia por meio de tantas canções. Você ao volante, minha felicidade era completa. Acontece que você não se deu conta disso, ou fingiu que não se dava conta disso. Você me ligava, você sintonizava uma emissora qualquer e pronto, voltava à sua vidinha. Pior: tratava-se de uma vidinha partilhada. Amigas embarcavam em seu carro. Amigos também. Você conversando com um homem, aquilo me dava ciúmes, ciúmes terríveis.

        O Bentinho, do Machado de Assis, aquele que desconfiava da Capitu, não sofreu tanto.

        Lá pelas tantas eu tinha ciúmes até do seu MP4.

        Agora: o que poderia eu fazer? Humanos têm como demonstrar seus ciúmes, têm como descarregar a frustração. Mas eu sou um rádio, um bom rádio, mas rádio, de qualquer maneira. A mim não estava facultado fazer cenas. Recorri, então, àquilo que estava a meu alcance: o som.

        Quando você estava com alguém de quem eu não gostava, eu aumentava meu volume – e volume, você sabe, é coisa que não me falta – até chegar a níveis insuportáveis, uma avalanche de decibéis. E aí, subitamente me calava. Para lembrar a você que o silêncio também fala, especialmente o silêncio dos traídos. Ah, sim, e queimei o seu MP4. Tinha de queimar: era ele ou eu.

        Você foi se queixar com um técnico, achando que eu estava desconfigurado. Num certo sentido você está certa: estou desconfigurado, estou desfigurado, estou perturbado – mas tudo isso por causa do sofrimento que você me causou.

        Querida dona, estas são minhas derradeiras palavras, antes de sair definitivamente do ar, antes do silêncio final. Minha última mensagem é esta: nunca brinque com os sentimentos de um rádio apaixonado. Você vai ter, no mínimo, surpresas desagradáveis.

SCLIAR, Moacyr. O rádio apaixonado. In: SCLIAR, Moacyr. Histórias que os jornais não contam. 3. ed. Porto Alegre: L&M Editores, 2018.p.14-16. (Adaptado).

Entendendo a crônica:

01 – Qual é a premissa inusitada que o narrador da crônica apresenta?

      A premissa inusitada é que o narrador é um rádio de carro que possui sentimentos e emoções, contrariando a percepção de sua dona de que ele é apenas um objeto inanimado.

02 – Como o rádio descreve o momento em que se tornou "vivo e apaixonado" por sua dona?

      O rádio descreve o momento como um "choque" elétrico, ocorrido quando a dona o instalou no carro e o acariciou e tocou seus botões, fazendo-o sentir-se vivo e despertar sua paixão.

03 – Quais são os principais motivos de ciúme do rádio em relação à sua dona?

      Os principais motivos de ciúme do rádio são a presença de amigas e, principalmente, de outros homens no carro da dona, além de ter ciúme até do MP4 dela.

04 – De que forma o rádio expressa sua frustração e ciúmes, já que não pode fazer cenas como os humanos?

      O rádio recorre ao som para expressar sua frustração e ciúmes. Ele aumentava o volume a níveis insuportáveis quando a dona estava com alguém de quem não gostava e, em seguida, calava-se subitamente para lembrá-la que "o silêncio também fala". Ele também queimou o MP4.

05 – Qual é a analogia que o rádio faz com um personagem da literatura brasileira?

      O rádio se compara a Bentinho, de Machado de Assis, aquele que desconfiava de Capitu, para ilustrar a intensidade de seu sofrimento com o ciúme.

06 – Qual a condição atual do rádio e qual sua última mensagem para a dona?

      O rádio está "desconfigurado, desfigurado, perturbado" pelo sofrimento e está prestes a "sair definitivamente do ar". Sua última mensagem é um alerta: "nunca brinque com os sentimentos de um rádio apaixonado. Você vai ter, no mínimo, surpresas desagradáveis."

07 – Qual o tom geral da crônica, considerando a personificação do rádio e suas "queixas" para a dona?

      O tom geral da crônica é bem-humorado e irônico, apesar de o rádio expressar sentimentos de sofrimento e ciúme. A personificação de um objeto inanimado com emoções humanas cria uma situação cômica e reflexiva sobre as relações e a negligência afetiva.

 

CRÔNICA: O BOM E O MAU - CARLOS HEITOR CONY - COM GABARITO

 Crônica: O bom e o mau

              Carlos Heitor Cony

        Se me perguntarem (ninguém me pergunta nada há muito tempo) o que mais me irrita atualmente e o que mais me gratifica, eu responderei que é o computador. Na verdade, fica difícil imaginar a vida profissional sem ele, seus recursos de memória e arquivo, a capacidade de fazer correções, eliminar ou acrescentar palavras e parágrafos.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiJUzbNTraRpfZmnP2jmMHjPzhQFfCBliXl2rOEjNiM6SMIrCtzIBqpLXpYLroDBN5ZwaLLbkq5MDMzBIR9QnJtgvBqrbh1Bg4M0bQuqgbCG1gesxMXUjMyLALIPrVoMDi24L_M7g1jyE4bIm9BrKQlHzed9wumntiUxBORycO6yq9S8mM_580x3uFC78M/s1600/lossy-page1-250px-Carlos_Heitor_Cony_autografa_seu_livro_%E2%80%9CO_ato_e_o_fato%E2%80%9D,_1964.tif.jpg


        É também irritante, sobretudo com os programas cada vez mais avançados que bolam para os usuários. Não sei qual foi o gênio que programou os dias da semana (segunda, terça, quarta etc.) com maiúsculas. Não os uso assim, e toda vez que começo a escrever "na segunda fila" ou "ter ou não ter, eis a questão" sou obrigado a eliminar a maiúscula, pois o computador, para melhor e mais rapidamente me servir, acha que eu vou escrever o que não quero nem preciso escrever.

        Acho que já contei esta história. Se contei, conto-a outra vez, pois ela expressa exatamente o que o computador pode nos dar de bom e ruim. Um escritor norte-americano escreveu um romance em que o personagem principal teria o nome de Julieta. Um amigo, que leu os originais, achou que o nome italianado não combinava com a mocinha do oeste dos Estados Unidos, que devia se chamar Bárbara, Carol ou Kate.

        O autor concordou e usando o recurso do "replace", ordenou que toda a vez que aparecesse a palavra "Julieta", fosse ela substituída pela palavra "Bárbara". Mandou o original assim emendado para a editora e quando recebeu o primeiro exemplar de sua obra, verificou que os seus personagens haviam ido ao teatro assistir a uma peça de Shakespeare intitulada "Romeu e Bárbara".

        Ao computador pode-se aplicar aquele pensamento do cão de Quincas Borba, que para facilitar as coisas, tinha o mesmo nome do dono: "Nada é completamente bom, nada é completamente mau".

CONY, Carlos Heitor. In: Manuel da Costa Pinto (Org.). Crônica brasileira contemporânea: antologia de crônicas. São Paulo: Salamandra, 2005. p. 30-31.

Fonte: Língua Portuguesa: Singular & Plural. Laura de Figueiredo; Marisa Balthasar e Shirley Goulart – 6º ano – Moderna. 2ª edição, São Paulo, 2015. p. 266.

Entendendo a crônica:

01 – O que o autor Carlos Heitor Cony aponta como a coisa que mais o irrita e mais o gratifica atualmente?

      O autor aponta o computador como a coisa que mais o irrita e, ao mesmo tempo, mas o gratifica.

02 – Quais são os principais benefícios do computador, de acordo com o cronista?

      Os principais benefícios do computador, segundo Cony, são seus recursos de memória e arquivo, e a capacidade de fazer correções, eliminar ou acrescentar palavras e parágrafos, tornando a vida profissional muito mais fácil.

03 – Qual é um dos aspectos "irritantes" do computador mencionados pelo autor, relacionado aos programas?

      Um dos aspectos irritantes é a autocorreção e sugestão de escrita dos programas. Cony se irrita com o fato de o computador, por exemplo, escrever os dias da semana com maiúsculas, forçando-o a fazer correções constantes para o que ele realmente quer escrever.

04 – Qual a história que Carlos Heitor Cony utiliza para ilustrar os lados bom e ruim do computador?

      Cony conta a história de um escritor norte-americano que, ao decidir mudar o nome de sua personagem principal de "Julieta" para "Bárbara", usou o recurso "replace" no computador. O problema é que o programa substituiu todas as ocorrências da palavra "Julieta", resultando na infame peça "Romeu e Bárbara", demonstrando uma falha cômica do uso indiscriminado da ferramenta.

05 – Que citação de Quincas Borba o autor usa para resumir sua visão sobre o computador?

      Para resumir sua visão sobre o computador, o autor aplica o pensamento do cão de Quincas Borba: "Nada é completamente bom, nada é completamente mau".

 

CRÔNICA: NA CONTRAMÃO DA HISTÓRIA - MOACYR SCLIAR - COM GABARITO

 Crônica: Na Contramão da História

              Moacyr Scliar

        Ao entrar na rodovia ficou surpreso em ver um carro vindo em sua direção – e aquela era uma pista de mão única. Acenou nervosamente para o motorista para que desviasse, e aí nova surpresa: o homem também lhe acenava, com o mesmo propósito. Passaram um ao lado do outro, de raspão. “Contramão!”, ele gritou indignado. O motorista do outro carro também gritou: “Contramão!”.

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        Ele mal se refizera do susto quando, de novo, avistou um veículo – um caminhão – igualmente em sentido contrário ao seu. E logo uma moto, uma van, e carros de passeio, e um ônibus – todos na contramão. Meu Deus, ele se perguntava, o que está acontecendo? Será que todo mundo enlouqueceu nesta rodovia, neste estado, neste país?

        A dúvida então lhe ocorreu: não seria ele o errado? Não estaria ele na contramão?

        Não. Ele não estava na contramão, disso tinha absoluta certeza. Conhecia bem aquela rodovia, era um caminho habitual para ele. Teria havido, sem que ele soubesse, uma inversão de pistas? Talvez, mas isso não lhe tirava a razão. Uma alteração tão significativa deveria ter sido previamente divulgada; e teria sido necessário colocar avisos na rodovia.

        Não. Ele estava certo, e continuaria em seu rumo, mesmo que todos os outros fizessem o contrário. Não seria a primeira vez na História que tal aconteceria. Afinal, Galileu Galilei tinha sido condenado pela Inquisição por dizer que a Terra girava em torno do Sol, quando todos afirmavam o contrário. Enfrentara corajosamente o julgamento, sem mudar de opinião. E ele não mudaria de pista. Continuaria dirigindo e fazendo sinais para os imprudentes até que todos se dessem conta da verdade.

        Não demorou muito e foi detido pela polícia. O que ele aceitou com resignação. A conspiração não era só dos motoristas, era das autoridades, dos seres humanos em geral. Um dia, porém, a Verdade apareceria naquela estrada. Avançando celeramente, e na mesma mão em que ele estava.

Moacyr Scliar. Folha de São Paulo.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a situação inicial que causa surpresa e indignação ao protagonista da crônica?

      O protagonista fica surpreso e indignado ao ver um carro vindo em sua direção em uma rodovia de mão única, e mais ainda quando outros veículos, como caminhão, moto, van e ônibus, também aparecem no sentido contrário.

02 – Que dúvida surge na mente do protagonista diante do grande número de veículos na contramão?

      A dúvida que lhe ocorre é se não seria ele o errado, se não estaria ele mesmo na contramão, em vez de todos os outros motoristas.

03 – Com que figura histórica o protagonista se compara para justificar sua convicção de estar certo?

      Ele se compara a Galileu Galilei, que foi condenado pela Inquisição por defender que a Terra girava em torno do Sol, mesmo quando todos afirmavam o contrário. Ele usa essa comparação para reforçar sua decisão de não mudar de rumo.

04 – Como o protagonista interpreta sua detenção pela polícia no final da crônica?

      Ele aceita a detenção com resignação, interpretando-a como parte de uma conspiração não apenas dos motoristas, mas também das autoridades e dos seres humanos em geral.

05 – Qual é a principal mensagem ou reflexão que a crônica "Na Contramão da História" pretende transmitir?

      A crônica é uma alegoria sobre a teimosia, a convicção individual e a resistência contra a maioria, mesmo quando essa maioria parece estar equivocada. Ela explora a ideia de que, por vezes, a verdade pode parecer estar na "contramão" do que a maioria acredita ou pratica.

 

CRÔNICA: MINHA MÃE - NIKI DE SAINT PHALLE - COM GABARITO

 Crônica: Minha Mãe

               Niki de Saint Phalle

        Quando nasci, a 29 de outubro de 1930, em Paris, o cordão umbilical estava enrolado duas vezes em meu pescoço. Você me contou que o doutor me salvou deslizando a mão entre o cordão umbilical e meu pescoço. Senão eu teria nascido estrangulada.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgHlisfOipJDqD8fEJ8QtcymdRlvho6D4tnQNPE_AoKKU-3jsxtrobUQa2I1o6X47VreCIrNJQq_PJCsDvNMzKBg7bkWCw22wyNcHv9ye1iMbb1li9PaStW6vHX0_bhYqcb5Cx6JuVKuZWwRXRxtqjuK4FZ9Kl0C0J_HdLAXtvHlTqGVRReBxUqlmjntYE/s320/capa-materia-signo-escorpiao.jpg


        Desde o princípio, o perigo esteve presente. Eu aprenderia a amar o perigo, o risco, a ação. Toda a vida eu seria torturada pela asma e por problemas respiratórios.

        Meu signo é Escorpião, com ascendente em Escorpião. Todo um programa para vencer obstáculos, para amar os obstáculos.

        Você me disse ainda que, em meu nascimento, você perdeu todo o dinheiro no craque da Bolsa de Nova Iorque. E, enquanto me esperava, descobriu a primeira infidelidade de meu pai. Eu trazia aborrecimentos.

        Eu tinha três meses quando fomos separadas. Você foi para Nova Iorque e me mandou para a casa de meus avós, em Nièvre. Lá passei meus primeiros três anos. Minha mãe, minha mãe, onde está você? Por que me deixou? Você nunca vai voltar? Tudo é minha culpa. Cada mulher se transforma em Você, Mamãe, Mamãe. Eu não preciso de você. Saberei viver sem você.

        Sua péssima opinião sobre mim, minha mãe, foi extremamente dolorosa e útil. Aprendi a só contar comigo. A opinião dos outros não me importava. Isso me deu imensa liberdade. A liberdade de ser eu mesma. Eu rejeitaria seu sistema de valores e inventaria o meu. Muito cedo, decidi tornar-me uma heroína. Quem eu seria? George Sand, Joana D'Arc? Napoleão de saias? Com quinze anos, ganhei o prêmio de poesias. Quem sabe eu escreveria?

        O que quer que eu fizesse no futuro, queria que fosse difícil, excitante, grandioso.

        Eu não me pareceria com você, minha mãe. Você aceitou o que lhe tinha sido transmitido por seus pais: a religião, os papéis masculino e feminino, as ideias sobre a sociedade e a segurança.

        Eu passaria minha vida questionando. Ficaria apaixonada pelo ponto de interrogação. Por você conquistei o mundo. Você era quem me faltava. Sou uma lutadora. O que teria feito de uma mãe me afogando de amor? Quando eu tinha vinte e cinco anos e vivia com Harry Mathews, algumas vezes você me visitava em meu atelier. Você escondia os olhos com as mãos, sobretudo para não ver minhas horríveis pinturas... Deus, como era estimulante!

        Você detestava o Harry. Um dia, viu-o passar o aspirador no apartamento e pensou que ele me roubava o papel de mulher. Você não podia compreender.

        Você era muito linda, minha mãe. Sua beleza e seu charme (quando queria usá-los) eram mágicos.

        Você poderia ter sido uma grande atriz, minha mãe. Como era teatral!

        Lembre-se da primeira vez que lhe apresentei Jean Tinguely. Nós nos encontramos no Coupole para almoçar. Você fechou seus olhos magníficos e disse tragicamente: "Não posso comer com o amante de minha filha... Por que você não pode ficar com o seu marido e ter um amante em segredo como todo mundo?".

        Isso divertiu muitíssimo Jean, mas eu deixei a mesa, furiosa. A partir desse momento, a cada vez que via Jean, ele flertava com você e você adorava isso. Você nunca foi a grande santa que pretendia ser. Lembro-me muito bem de seus amantes, quando eu era adolescente. Havia um ruivo, jornalista, sedutor, que eu odiava com todas as minhas forças.

        Para você, tudo deveria ficar escondido.

        Quanto a mim, eu me mostraria. Mostraria tudo. Meu coração, minhas emoções. Verde-vermelho-amarelo-azul-violeta. Ódio, amor, riso, medo, ternura.

        Gostaria que você ainda estivesse aqui, minha mãe. Gostaria de tomá-la pelas mãos e lhe mostrar o Jardim do Tarô. Bem que você poderia não ter mais uma opinião tão negativa sobre mim. Quem sabe?

        Minha mãe, obrigada. Que vida tediosa eu teria tido sem você. Sinto saudades.

Niki de Saint Phalle. Catálogo da Exposição de Niki de Saint Phalle, São Paulo, Pinacoteca, 1997.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 228-229.

Entendendo a crônica:

01 – Qual evento no nascimento da autora prefigura sua personalidade e os desafios que enfrentaria?

      O cordão umbilical enrolado duas vezes em seu pescoço ao nascer, quase a estrangulando, prefigura que o perigo esteve presente desde o início, e que ela aprenderia a "amar o perigo, o risco, a ação", além de ser torturada por problemas respiratórios.

02 – Como a separação precoce da mãe e a "péssima opinião" dela sobre a autora impactaram seu desenvolvimento?

      A separação e a opinião negativa da mãe foram, ironicamente, "extremamente dolorosas e úteis". Elas a fizeram aprender a contar apenas consigo mesma, a não se importar com a opinião alheia, o que lhe deu "imensa liberdade" para ser quem era e inventar seu próprio sistema de valores, decidindo muito cedo tornar-se uma "heroína".

03 – Quais são as principais diferenças que a autora destaca entre sua personalidade e a de sua mãe?

      A autora se descreve como alguém que questionaria tudo, apaixonada pelo "ponto de interrogação", uma "lutadora" que "mostraria tudo" (emoções, cores). Sua mãe, por outro lado, é descrita como alguém que aceitou os valores tradicionais (religião, papéis de gênero, ideias sobre sociedade e segurança) e preferia manter as coisas "escondidas".

04 – Como a mãe de Niki de Saint Phalle reagiu às pinturas da filha e ao relacionamento dela com Harry Mathews?

      A mãe detestava as pinturas da filha, chegando a esconder os olhos para não vê-las, o que a autora achava "estimulante". Em relação a Harry Mathews, a mãe o detestava por vê-lo passar o aspirador, interpretando que ele "roubava o papel de mulher" da filha, sem conseguir compreender a dinâmica do casal.

05 – Apesar das tensões e das diferenças, qual é a atitude final de Niki de Saint Phalle em relação à sua mãe, expressa no último parágrafo?

      Apesar de todas as dificuldades e desaprovações, a atitude final de Niki de Saint Phalle é de gratidão e saudade. Ela reconhece a influência da mãe em sua vida, afirmando que teria tido uma "vida tediosa" sem ela, e expressa o desejo de que a mãe ainda estivesse presente para ver seu trabalho e talvez mudar sua opinião negativa.

 

CRÔNICA: MEMÓRIA DO LIVROS - JOÃO UBALDO RIBEIRO - COM GABARITO

 Crônica: Memória de Livros

              João Ubaldo Ribeiro

        Aracaju, a cidade onde nós morávamos no fim da década de 40, começo da de 50, era a orgulhosa capital de Sergipe, o menor Estado brasileiro (mais ou menos do tamanho da Suíça). Essa distinção, contudo, não lhe tirava o caráter de cidade pequena, provinciana e calma, à boca de um rio e a pouca distância de praias muito bonitas. Sabíamos do mundo pelo rádio, pelos cinejornais que acompanhavam todos os filmes e pelas revistas nacionais. A televisão era tida por muitos como mentira de viajantes, só alguns loucos andavam de avião, comprávamos galinhas vivas e verduras trazidas à nossa porta nas costas de mulas, tínhamos grandes quintais e jardins, meninos não discutiam com adultos, mulheres não usavam calças compridas nem dirigiam automóveis e vivíamos tão longe de tudo que se dizia que, quando o mundo acabasse, só íamos saber uns cinco dias depois.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgv7-kb8Z4nDYXVSQnHnSvOqtictbxQ7wC5T5mSkvYLo01JFRDjAp59k2W3BsSEOMf00drccGSm78W7Iq1hxTSfXoHH5IZ2qcGoMpM1sh6hQrCkJYgnIVTAwmlGO9-BqOoaU-N0sEsiQW4n7lded6E1i7gP4FAwnJshx9ReB2SvctNCfpQgxSBY7HRdYPE/s1600/images.jpg


        Mas vivíamos bem. Morávamos sempre em casarões enormes, de grandes portas, varandas e tetos altíssimos, e meu pai, que sempre gostou das últimas novidades tecnológicas, trazia para casa quanto era tipo de geringonça moderna que aparecia. Fomos a primeira família da vizinhança a ter uma geladeira e recebemos visitas para examinar o impressionante armário branco que esfriava tudo. Quando surgiram os primeiros discos long-play, já tínhamos a vitrola apropriada e meu pai comprava montanhas de gravações dos clássicos, que ele próprio se recusava a ouvir, mas nos obrigava a escutar e comentar.

        Nada, porém, era como os livros. Toda a família sempre foi obcecada por livros e às vezes ainda arma brigas ferozes por causa de livros, entre acusações mútuas de furto ou apropriação indébita. Meu avô furtava livros de meu pai, meu pai furtava livros de meu avô, eu furtava livros de meu pai e minha irmã até hoje furta livros de todos nós. A maior casa onde moramos, mais ou menos a partir da época em que aprendi a ler, tinha uma sala reservada para a biblioteca e gabinete de meu pai, mas os livros não cabiam nela — na verdade, mal cabiam na casa. E, embora os interesses básicos dele fossem Direito e História, os livros eram sobre todos os assuntos e de todos os tipos. Até mesmo ciências ocultas, assunto que fascinava meu pai e fazia com que ele às vezes se trancasse na companhia de uns desenhos esotéricos, para depois sair e dirigir olhares magnéticos aos circunstantes, só que ninguém ligava e ele desistia temporariamente.

        Havia uns livros sobre hipnotismo e, depois de ler um deles, hipnotizei um peru que nos tinha sido dado para um Natal e que, como jamais ninguém lembrou de assá-lo, passou a residir no quintal e, não sei por que, era conhecido como Lúcio. Minha mãe se impressionou porque, assim que comecei meus passes hipnóticos, Lúcio estacou, pareceu engolir em seco e ficou paralisado, mas meu pai — talvez porque ele próprio nunca tenha conseguido hipnotizar nada, apesar de inúmeras tentativas — declarou que aquilo não tinha nada com hipnotismo, era porque Lúcio era na verdade uma perua e tinha pensado que eu era o peru. Não sei bem dizer como aprendi a ler. A circulação entre os livros era livre (tinha que ser, pensando bem, porque eles estavam pela casa toda, inclusive na cozinha e no banheiro), de maneira que eu convivia com eles todas as horas do dia, a ponto de passar tempos enormes com um deles aberto no colo, fingindo que estava lendo e, na verdade, se não me trai a vã memória, de certa forma lendo, porque quando havia figuras, eu inventava as histórias que elas ilustravam e, ao olhar para as letras, tinha a sensação de que entendia nelas o que inventara. Segundo a crônica familiar, meu pai interpretava aquilo como uma grande sede de saber cruelmente insatisfeita e queria que eu aprendesse a ler já aos quatros anos, sendo demovido a muito custo, por uma pedagoga amiga nossa. Mas, depois que completei seis anos, ele não aguentou, fez um discurso dizendo que eu já conhecia todas as letras e agora era só uma questão de juntá-las e, além de tudo, ele não suportava mais ter um filho analfabeto. Em seguida, mandou que eu vestisse uma roupa de sair, foi comigo a uma livraria, comprou uma cartilha, uma tabuada e um caderno e me levou à casa de D. Gilete.

        — D. Gilete — disse ele, apresentando-me a uma senhora de cabelos presos na nuca, óculos redondos e ar severo —, este rapaz já está um homem e ainda não sabe ler. Aplique as regras.

        "Aplicar as regras", soube eu muito depois, com um susto retardado, significava, entre outras coisas, usar a palmatória para vencer qualquer manifestação de falta de empenho ou burrice por parte do aluno. Felizmente D. Gilete nunca precisou me aplicar as regras, mesmo porque eu de fato já conhecia a maior parte das letras e juntá-las me pareceu facílimo, de maneira que, quando voltei para casa nesse mesmo dia, já estava começando a poder ler. Fui a uma das estantes do corredor para selecionar um daqueles livrões com retratos de homens carrancudos e cenas de batalhas, mas meu pai apareceu subitamente à porta do gabinete, carregando uma pilha de mais de vinte livros infantis.

        — Esses daí agora não — disse ele. — Primeiro estes, para treinar. Estas livrarias daqui são umas porcarias, só achei estes. Mas já encomendei mais, esses daí devem durar uns dias. Duraram bem pouco, sim, porque de repente o mundo mudou e aquelas paredes cobertas de livros começaram a se tornar vivas, frequentadas por um número estonteante de maravilhas, escritas de todos os jeitos e capazes de me transportar a todos os cantos do mundo e a todos os tipos de vida possíveis. Um pouco febril às vezes, chegava a ler dois ou três livros num só dia, sem querer dormir e sem querer comer porque não me deixavam ler à mesa — e, pela primeira vez em muitas, minha mãe disse a meu pai que eu estava maluco, preocupação que até hoje volta e meia ela manifesta.

        — Seu filho está doido — disse ela, de noite, na varanda, sem saber que eu estava escutando.

        — Ele não larga os livros. Hoje ele estava abrindo os livros daquela estante que vai cair para cheirar.

        — Que é que tem isso? É normal, eu também cheiro muito os livros daquela estante. São livros velhos, alguns têm um cheiro ótimo.

        — Ele ontem passou a tarde inteira lendo um dicionário.

        — Normalíssimo. Eu também leio dicionários, distrai muito. Que dicionário ele estava lendo?

        — O Lello.

        — Ah, isso é que não pode. Ele tem que ler o Laudelino Freire, que é muito melhor. Eu vou ter uma conversa com esse rapaz, ele não entende nada de dicionários. Ele está cheirando os livros certos, mas lendo o dicionário errado, precisa de orientação.

        Sim, tínhamos muitas conversas sobre livros. Durante toda a minha infância, havia dois tipos básicos de leitura lá em casa: a compulsória e a livre, esta última dividida em dois subtipos — a livre propriamente dita e a incerta. A compulsória variava conforme a disposição de meu pai. Havia a leitura em voz alta de poemas, trechos de peças de teatro e discursos clássicos, em que nossa dicção e entonação eram invariavelmente descritas como o pior desgosto que ele tinha na vida. Líamos Homero, Camões, Horácio, Jorge de Lima, Sófocles, Shakespeare, Euclides da Cunha, dezenas de outros. Muitas vezes não entendíamos nada do que líamos, mas gostávamos daquelas palavras sonoras, daqueles conflitos estranhos entre gente de nomes exóticos, e da expressão comovida de minha mãe, com pena de Antígona e torcendo por Heitor na Ilíada. Depois de cada leitura, meu pai fazia sua palestra de rotina sobre nossa ignorância e, andando para cima e para baixo de pijama na varanda, dava uma aula grandiloquente sobre o assunto da leitura, ou sobre o autor do texto, aula esta a que os vizinhos muitas vezes vinham assistir. Também tínhamos os resumos — escritos ou orais — das leituras, as cópias (começadas quando ele, com grande escândalo, descobriu que eu não entendia direito o ponto-e-vírgula e me obrigou a copiar sermões do Padre Antônio Vieira, para aprender a usar o ponto-e-vírgula) e os trechos a decorar. No que certamente é um mistério para os psicanalistas, até hoje não só os sermões de Vieira como muitos desses autores forçados pela goela abaixo estão entre minhas leituras favoritas. (Em compensação, continuo ruim de ponto-e-vírgula).

        Mas o bom mesmo era a leitura livre, inclusive porque oferecia seus perigos. Meu pai usava uma técnica maquiavélica para me convencer a me interessar por certas leituras. A circulação entre os livros permanecia absolutamente livre, mas, de vez em quando, ele brandia um volume no ar e anunciava com veemência:

        — Este não pode! Está proibido! Arranco as orelhas do primeiro que chegar perto deste daqui!

        O problema era que não só ele deixava o livro proibido bem à vista, no mesmo lugar de onde o tirara subitamente, como às vezes a proibição era para valer. A incerteza era inevitável e então tínhamos momentos de suspense arrasador (meu pai nunca arrancou as orelhas de ninguém, mas todo mundo achava que, se fosse por uma questão de princípios, ele arrancaria), nos quais lemos Nossa vida sexual do Dr. Fritz Kahn, Romeu e Julieta; O livro de San Michèle, Crônica escandalosa dos doze Césares, Salambô, O crime do Padre Amaro — enfim, dezenas de títulos de uma coleção estapafúrdia, cujo único ponto em comum era o medo de passarmos o resto da vida sem orelhas — e hoje penso que li tudo o que ele queria disfarçadamente que eu lesse, embora à custa de sobressaltos e suores frios.

        Na área proibida, não pode deixar de ser feita uma menção aos pais de meu pai, meus avós João e Amália. João era português, leitor anticlerical de Guerra Junqueiro e não levava o filho muito a sério intelectualmente, porque os livros que meu pai escrevia eram finos e não ficavam em pé sozinhos. "Isto é merda", dizia ele, sopesando com desdém uma das monografias jurídicas de meu pai. "Estas tripinhas que não se sustentam em pé não são livros, são uns folhetos". Já minha avó tinha mais respeito pela produção de meu pai, mas achava que, de tanto estudar altas ciências, ele havia ficado um pouco abobalhado, não entendia nada da vida. Isto foi muito bom para a expansão dos meus horizontes culturais, porque ela não só lia como deixava que eu lesse tudo o que ele não deixava, inclusive revistas policiais oficialmente proibidas para menores. Nas férias escolares, ela ia me buscar para que eu as passasse com ela, e meu pai ficava preocupado.

        — D. Amália — dizia ele, tratando-a com cerimônia na esperança de que ela se imbuísse da necessidade de atendê-lo —, o menino vai com a senhora, mas sob uma condição. A senhora não vai deixar que ele fique o dia inteiro deitado, cercado de bolachinhas e docinhos e lendo essas coisas que a senhora lê.

        — Senhor doutor — respondia minha avó —, sou avó deste menino e tua mãe. Se te criei mal, Deus me perdoe, foi a inexperiência da juventude. Mas este cá ainda pode ser salvo e não vou deixar que tuas maluquices o infelicitem. Levo o menino sem condição nenhuma e, se insistes, digo-te muito bem o que podes fazer com tuas condições e vê lá se não me respondes, que hoje acordei com a ciática e não vejo a hora de deitar a sombrinha ao lombo de um que se atreva a chatear-me. Passar bem, Senhor doutor.

        E assim eu ia para a casa de minha avó Amália, onde ela comentava mais uma vez com meu avô como o filho estudara demais e ficara abestalhado para a vida, e meu avô, que queria que ela saísse para poder beber em paz a cerveja que o médico proibira, tirava um bolo de dinheiro do bolso e nos mandava comprar umas coisitas de ler — Amália tinha razão, se o menino queria ler que lesse, não havia mal nas leituras, havia em certos leitores. E então saíamos gloriosamente, minha avó e eu, para a maior banca de revistas da cidade, que ficava num parque perto da casa dela e cujo dono já estava acostumado àquela dupla excêntrica. Nós íamos chegando e ele perguntava:

        — Uma de cada?

        — Uma de cada — confirmava minha avó, passando a superintender, com os olhos brilhando, a colheita de um exemplar de cada revista, proibida ou não-proibida, que ia formar uma montanha colorida deslumbrante, num carrinho de mão que talvez o homem tivesse comprado para atender a fregueses como nós.

        — Mande levar. E agora aos livros!

        Depois da banca, naturalmente, vinham os livros. Ela acompanhava certas coleções, histórias de Raffles, o ladrão de casaca, Ponson du Terrail, Sir Walter Scott, Edgar Wallace, Michel Zevaco, Emil Salgari, os Dumas e mais uma porção de outros, em edições de sobrecapas extravagantemente coloridas que me deixavam quase sem fôlego. Na livraria, ela não só se servia dos últimos lançamentos de seus favoritos, como se dirigia imperiosamente à seção de literatura para jovens e escolhia livros para mim, geralmente sem ouvir minha opinião — e foi assim que li Karl May, Edgar Rice Burroughs, Robert Louis Stevenson, Swift e tantos mais, num sofá enorme, soterrado por revistas, livros e latas de docinhos e bolachinhas, sem querer fazer mais nada, absolutamente nada, neste mundo encantado. De vez em quando, minha avó e eu mantínhamos tertúlias literárias na sala, comentando nossos vilões favoritos e nosso herói predileto, o Conde de Monte Cristo — Edmond de Nantès! como dizia ela, fremindo num gesto dramático. E meu avô, bebendo cerveja escondido lá dentro, dizia "ai, ai, esses dois se acham letrados, mas nunca leram o Guerra Junqueiro".

        De volta à casa de meus pais, depois das férias, o problema das leituras compulsórias às vezes se agravava, porque meu pai, na certeza (embora nunca desse ousadia de me perguntar), de que minha avó me tinha dado para ler tudo o que ele proibia, entrava numa programação delirante, destinada a limpar os efeitos deletérios das revistas policiais. Sei que parece mentira e não me aborreço com quem não acreditar (quem conheceu meu pai acredita), mas a verdade é que, aos doze anos, eu já tinha lido, com efeitos às vezes surpreendentes, a maior parte da obra traduzida de Shakespeare, O elogio da loucura, As décadas de Tito Lívio, D. Quixote (uma das ilustrações de Gustave Doré, mostrando monstros e personagens saindo dos livros de cavalaria do fidalgo me fez mal, porque eu passei a ver as mesmas coisas saindo dos livros da casa), adaptações especiais do Fausto e da Divina comédia, a Ilíada, a Odisséia, vários ensaios de Montaigne, Poe, Alexandre Herculano, José de Alencar, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Dickens, Dostoievski, Suetônio, os Exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola e mais não sei quantos outros clássicos, muitos deles resumidos, discutidos ou simplesmente lembrados em conversas inflamadas, dos quais nunca me esqueço e a maior parte dos quais faz parte íntima de minha vida.

        Fico pensando nisso e me pergunto: não estou imaginando coisas, tudo isso poderia ter realmente acontecido? Terei tido uma infância normal? Acho que sim, também joguei bola, tomei banho nu no rio, subi em árvores e acreditei em Papai Noel. Os livros eram brincadeira como outra qualquer, embora certamente a melhor de todas. Quando tenho saudades da infância, as saudades são daquele universo que nunca volta, dos meus olhos de criança vendo tanto que se entonteciam, dos cheiros dos livros velhos, da navegação infinita pela palavra, de meu pai, de meus avós, do velho casarão mágico de Aracaju.

Extraído de: Um brasileiro em Berlim. Editora Nova Fronteira, 1995.

Fonte: Programa de Formação de Professores Alfabetizadores. Coletânea de textos – Módulo 1. p. 70-74.

Entendendo a crônica:

01 – Como o narrador descreve Aracaju no final da década de 40 e começo da de 50?

      Aracaju é descrita como a orgulhosa capital de Sergipe, o menor estado brasileiro, mas com o caráter de cidade pequena, provinciana e calma, localizada à boca de um rio e perto de praias bonitas. O narrador enfatiza que o mundo era conhecido principalmente pelo rádio, cinejornais e revistas nacionais, com a televisão sendo vista com ceticismo e a vida sendo muito menos acelerada.

02 – O que diferenciava a família do narrador em termos de novidades tecnológicas?

      A família do narrador estava sempre à frente em termos de tecnologia. Eles foram a primeira família da vizinhança a ter uma geladeira e possuíam a vitrola apropriada para os primeiros discos long-play, mesmo que o pai não ouvisse os clássicos que comprava para os filhos.

03 – Qual era a grande paixão e causa de "brigas ferozes" na família do narrador?

      A grande paixão e causa de brigas na família era a obsessão por livros. Membros da família "furtavam" livros uns dos outros, incluindo avô, pai, narrador e irmã, em um ciclo contínuo de apropriação indébita de volumes.

04 – Descreva a organização e a quantidade de livros na casa do narrador.

      A maior casa onde moraram tinha uma sala reservada para a biblioteca e o gabinete do pai, mas os livros não cabiam nela, mal cabiam na casa. Eles estavam espalhados por todos os cômodos, inclusive na cozinha e no banheiro, cobrindo todos os assuntos, desde Direito e História até ciências ocultas.

05 – Qual foi a experiência do narrador com o hipnotismo e como seu pai reagiu a isso?

      Após ler um livro sobre hipnotismo, o narrador hipnotizou um peru chamado Lúcio que morava no quintal. Sua mãe ficou impressionada com a paralisia do peru, mas seu pai, que nunca havia conseguido hipnotizar nada, declarou que não era hipnotismo, e sim que Lúcio, sendo uma perua, pensou que o narrador era um peru.

06 – Como o narrador aprendeu a ler e qual a intervenção de seu pai nesse processo?

      O narrador convivia com os livros o tempo todo, fingindo ler e inventando histórias a partir das figuras. Aos seis anos, seu pai, cansado de ter um "filho analfabeto", levou-o a uma livraria para comprar material de estudo e o encaminhou a Dona Gilete, uma professora com fama de "aplicar as regras" (usar a palmatória). Felizmente, o narrador achou fácil juntar as letras e começou a ler rapidamente.

07 – Quais eram os dois tipos básicos de leitura praticados na casa do narrador durante sua infância?

      Havia a leitura compulsória e a leitura livre. A leitura livre era subdividida em "livre propriamente dita" e "incerta".

08 – Explique a "técnica maquiavélica" que o pai usava para incentivar certas leituras no filho.

      O pai usava uma técnica de proibição estratégica. Ele brandia um livro no ar, declarava-o proibido ("Este não pode! Está proibido! Arranco as orelhas do primeiro que chegar perto deste daqui!") e o deixava à vista, sabendo que a proibição despertaria a curiosidade do filho e o levaria a ler o livro, muitas vezes à custa de "sobressaltos e suores frios".

09 – Qual era a visão dos avós paternos do narrador sobre o conhecimento e os livros?

      O avô João, português e leitor anticlerical, não levava a sério os livros finos do pai do narrador, chamando-os de "folhetos". Já a avó Amália, embora respeitasse a produção do filho, achava que ele havia ficado "abobalhado" por tanto estudar. Ela, por outro lado, deixava o narrador ler tudo o que o pai proibia, incluindo revistas policiais, e o levava para comprar "uma de cada" revista e muitos livros.

10 – Como o narrador resume sua infância e qual o seu sentimento de saudade?

      O narrador reflete que teve uma infância normal, brincando de bola, nadando no rio e subindo em árvores, e que os livros eram a "melhor de todas" as brincadeiras. Sua saudade da infância é do universo que nunca volta, dos cheiros dos livros velhos, da navegação infinita pela palavra, e das lembranças de seus pais, avós e do "velho casarão mágico de Aracaju".