CRÔNICA:
PSICOPATA AO VOLANTE
                    Fernando Sabino
David Neves passava de carro
às onze horas de certa noite de sábado por uma rua de Botafogo, quando um
guarda o fez parar:
— Seus documentos, por favor.
 Os documentos estavam
em ordem, mas o carro não estava: tinha um dos faróis queimado.
— Vou ter de multar–
advertiu o guarda.
— Está bem– respondeu David,
conformado.
— Está bem? O senhor acha
que está bem?
 O guarda resolveu
fazer uma vistoria mais caprichada, e deu logo com várias outras irregularidades:
— Eu sabia! Limpador de
para-brisa quebrado, folga na direção, freio desregulado. Deve haver mais
coisa, mas para mim já chega. Ou o senhor acha pouco?
— Não, para mim também já
chega.
— Vou ter de recolher o
carro, não pode trafegar nessas condições.
— Está bem– concordou David.
— Não sei se o senhor me entendeu: eu disse que vou 
ter de recolher o carro.
— Entendi sim: o senhor
disse que vai ter de recolher o carro. E eu disse que está bem.
— O senhor fica aí só
dizendo está bem.
— Que é que o senhor queria
que eu dissesse? Respeito sua autoridade.
— Pois então vamos.
— Está bem.
Ficaram parados, olhando um
para o outro. O guarda, perplexo: será que ele não está entendendo? Qual é a
sua, amizade? E David, impassível: pode desistir, velhinho, que de mim tu não
vê a cor do burro de um tostão. E ali ficariam o resto da noite a se olhar, em
silêncio, a autoridade e o cidadão flagrado em delito, se o guarda enfim não se
decidisse:
— O senhor quer que eu mande
vir o reboque ou prefere levar o carro para o depósito o senhor mesmo?
— O senhor é que manda.
— Se quiser, pode levar o
carro o senhor mesmo.
 Sem se abalar, David
pôs o motor em movimento:
— Onde é o depósito?
 O guarda contornou
rapidamente o carro pela frente, indo sentar-se na boleia:
— Onde é o depósito…O senhor
pensou que ia sozinho? Tinha graça!
 Lá foram os dois por
Botafogo afora, a caminho do depósito.
— O senhor não pode imaginar
o aborrecimento que ainda vai ter por causa disso — o guarda dizia.
— Pois é — David concordava:
— Eu imagino.
 O guarda o olhava,
cada vez mais intrigado:
— Já pensou na aporrinhação
que vai ter? A pé, logo numa noite de sábado. Vai ver que tinha aí o seu
programinha para esta noite…E amanhã é Domingo, só vai poder pensar em liberar
o carro a partir de Segunda-feira. Isto é, depois de pagar as multas todas…
 — É isso aí– e David o
olhou, penalizado: — Estou pensando também no senhor, se aborrecendo por minha
causa, perdendo tempo comigo numa noite de Sábado, vai ver que até estava de
folga hoje…
 — Pois então? —
reanimado, o guarda farejou um entendimento: — Se o senhor quisesse, a gente
podia dar um jeito…O senhor sabe, com boa vontade, tudo se arranja.
— É isso aí, tudo se
arranja. Onde fica mesmo o depósito?
 O guarda não disse
mais nada, a olhá-lo, fascinado. De repente ordenou, já à altura do Mourisco:
— Pare o carro! Eu salto
aqui.
 David parou o carro e
o guarda saltou, batendo a porta, que por pouco não se despregou das
dobradiças. Antes de se afastar, porém, debruçou-se na janela e gritou:
— O senhor é um
psicopata! 
(Fernando Sabino. A
falta que ela me faz. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 94)
Entendendo o texto
01. Qual seria a função social ou intenção da crônica
lida?
  (A) informar.                                  (C)
relatar memórias.
  (B) entreter/divertir.                       (D) trazer uma reflexão.
02. No trecho “— Se o senhor quisesse, a gente
podia dar um jeito…O senhor sabe, com boa vontade, tudo se arranja.” A
expressão “boa vontade” significa
    (A) propina.                                                   (C)
recompensa.
    (B)
dinheiro.                                                  (D)
desacato.
 03. Associe conforme o seguinte código
      (A) Apresentação do
conflito.                          
      (B) Desenvolvimento do conflito.
      (C) Clímax.
      (D) Desfecho do texto.
    (D) O momento em que o
policial sai do carro e xinga o motorista de psicopata.                                           
    (B) As ameaças sucessivas
de multar e prender o carro.
    (C) É o momento em que o
policial propõe explicitamente  “um
           
entendimento”.
    (A) O trecho em que o
motorista é parado pelo policial.
04. Marque o vocábulo no qual apresenta ironia.
      (A) “Psicopata ao
volante.”
      (B) “... O senhor acha que está bem?”
      (C) “O guarda resolveu fazer uma vistoria
mais caprichada,...”
      (D) “Pare o carro! Eu salto aqui.”
 05. O objetivo do texto é
       (A)
mostrar a inversão de valores, entre o policial e o motorista.
      
(B) mostrar a imprudência no trânsito.
       (C) mostrar o movimento de propina
por infratores no trânsito.
       (D) mostrar a vistoria de documentos
feito no trânsito.
06. De modo concluído, o tema do texto é
      (A) ética e cidadania.
      (B) propina e suborno.
      (C) autoridade
e cidadão flagrado em delito.
      (D) desacato e infração.
 07. Marque o vocábulo em que há registro de
informalidade.
       (A) “... quando um
guarda o fez parar: ...”
       (B) “... Se o
senhor quisesse, a gente podia dar um jeito…”
       (C) “David parou o carro e o
guarda saltou, ...”
       (D) “O guarda o olhava, cada vez mais
intrigado: ...”
 08. No trecho “Os documentos estavam em ordem,
mas o carro não estava: ...”, de quem é esta fala?
       (A) do
motorista.                                (C) do narrador.
       (B) do
policial.                                    (D)
de outro personagem.
09. O texto apresenta com maior ênfase, um dos
recursos de sinalização, muito utilizado em uma conversa
       (A) a
reticência.                                  (C)
as aspas.
       (B) os dois
pontos.                             (D) o travessão.
10. No trecho do texto a seguir “... E
David, impassível: pode desistir, velhinho, que de mim tu não vê a cor do burro
de um tostão.” A palavra IMPASSÍVEL pode ser trocada sem perda
de sentido por
     (A)
tranquilo.                               (C)
aborrecido.
     (B) perturbado.                           (D)
indiferente.