domingo, 10 de agosto de 2025

CONTO: BANDEIRA BRANCA - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM GABARITO

 Conto: Bandeira branca

           Luís Fernando Veríssimo

              Ele, tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhToRZ6ko-BJohIY-KX2Ey_JKeMKZ9L98P8WQsevq8nxMBNP7HFUn1SpDkACnMTNsVMlWd7Ruq_emlq-3FatT3iCrM9BdvrvuG-ANPEc-WKurTOUSE5iR_fRsHh-tM4Zbz3MVOP5KmXIikHkH91s1G9mjkuVFLEqHD5mNeujOy502fBROx5P768ci0LcnE/s320/clube.jpg


        Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.

        Só no terceiro Carnaval se falaram.

        — Como é teu nome?

        — Janice. E o teu?

        — Píndaro.

        — O quê?!

        — Píndaro.

        — Que nome!

        Ele de legionário romano, ela de índia americana.

        Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.

        — Ah.

        Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse "Até o Carnaval que vem" e saiu correndo.

        No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:

        — Me dá alguma coisa.

        — O quê?

        — Qualquer coisa.

        — O leque.

        O leque de bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.

        No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que aconteceu?

        — Você vomitou a alma — disse a mãe.

        — Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.

        Mas no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube — e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.

        — Sei lá. Bávara tropical — disse ela, rindo.

        Estava diferente. Era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.

        — E aquela bailarina espanhola?

        — Nem me fala. E o toureiro?

        — Aposentado.

        A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse "Píndaro?!", e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão.

        O Marcelão tinha o que ele precisava para preencher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi "pelo menos o meu tirolês era autêntico" e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo "não vale, você cresceu mais do que eu" e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.

        Encontraram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse "quase não reconheci você sem fantasias". Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele dissera fora "preciso te dizer uma coisa", e ela dissera "no Carnaval que vem" e no Carnaval seguinte ela não aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara...

        — O que você ia me dizer, no outro Carnaval? – perguntou ela.

        — Esqueci – mentiu ele.

        Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil... E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu...

Extraído de: Os melhores contos brasileiros, organizado por Ítalo Mariconi. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 582 a 585.

Fonte: Programa de Formação de Professores Alfabetizadores. Coletânea de textos – Módulo 1. p. 285-287.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o papel do Carnaval na relação dos personagens principais, Janice e Píndaro?

      O Carnaval atua como o único ponto de encontro e o palco principal para o desenvolvimento da relação entre Janice e Píndaro. É o momento em que se veem anualmente, em meio à atmosfera lúdica e desinibida das festas, permitindo que a conexão entre eles floresça e se transforme ao longo dos anos, desde a infância até a vida adulta. Fora dessa época, suas vidas se desenrolam separadamente.

02 – Como a inocência da infância é retratada no início do conto?

      A inocência da infância é retratada pela capacidade de Janice e Píndaro de se entenderem e se conectarem de forma simples, apesar de suas fantasias "de culturas muito diferentes". Eles demonstram essa inocência ao resistir aos apelos maternos para brincar e, em vez disso, preferir fazer um "montinho de confete, serpentina e poeira". Essa pureza é reforçada pela narração, que afirma que "No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro."

03 – Qual é o significado da música "Bandeira Branca" dentro do conto?

      A música "Bandeira Branca" simboliza um momento de reconciliação, rendição e, principalmente, de conexão autêntica entre Janice e Píndaro. Em diversos momentos cruciais da história, quando parecem distantes ou há um desentendimento, a canção surge como um catalisador para que se unam, simbolizando a trégua de suas diferenças e a celebração de sua ligação. O momento mais marcante é quando, aos quinze anos, Píndaro se sente amargurado e Janice o puxa para dançar ao som da música, restaurando a proximidade entre eles.

04 – Como a passagem do tempo afeta a relação e a percepção dos personagens?

      A passagem do tempo afeta a relação de Janice e Píndaro de forma ambígua e, por vezes, dolorosa. Na infância, a cada ano, a intimidade cresce, culminando em beijos e na troca do leque. No entanto, o tempo também traz a ausência, a perda de ilusões (especialmente para Píndaro após a ausência de Janice e a decepção com o riso dela sobre seu nome), e a inevitável transformação física e pessoal. No reencontro adulto, quinze anos depois, há um choque de realidade, a fantasia da juventude se esvai, e a dificuldade de reconhecer o outro fisicamente contrasta com a persistência de memórias e sentimentos.

05 – Que elemento revela a persistência do sentimento de Píndaro por Janice mesmo após anos?

      O elemento que revela a persistência do sentimento de Píndaro é o leque de bailarina que Janice lhe deu. Mesmo após sua ausência e o sofrimento que isso lhe causou, Píndaro guarda o leque, "às vezes tirando o leque do esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile". No reencontro adulto, a revelação de que ele "ainda tenho o leque" sublinha a força e a permanência de sua memória e afeto por ela.

06 – Qual é a principal diferença entre o reencontro na adolescência e o reencontro na vida adulta?

      A principal diferença é a perda da magia e da idealização. No reencontro da adolescência (aos 15 anos), apesar das transformações físicas, a conexão e a atração ainda são fortes, culminando em mais um momento significativo ao som de "Bandeira Branca", reafirmando a paixão adolescente. Já no reencontro na vida adulta, em um aeroporto, a cena é marcada pela realidade crua e pela quebra da fantasia. Há uma dificuldade de reconhecimento físico, uma desconexão com as "fantasias" do passado, e uma sensação de que a vida real, com seus casamentos e filhos, eclipsou a magia dos Carnavais. A mentira de Píndaro sobre ter esquecido o que ia dizer e a dificuldade de Janice em lembrar seu nome evidenciam essa perda.

07 – O que a reflexão final de Píndaro e Janice sobre seus pensamentos sugere sobre a natureza do amor e da memória?

      A reflexão final sugere a complexidade e a subjetividade do amor e da memória. Píndaro idealiza um momento específico ("Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro") como o ápice de sua vida, indicando que o amor para ele foi um instante mágico e irrecuperável. Ele questiona se "todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida?", o que aponta para uma nostalgia e uma sensação de que o melhor já passou. Janice, por outro lado, luta para lembrar o nome de Píndaro, o que pode indicar que, para ela, a intensidade daquele passado não teve o mesmo impacto duradouro ou simplesmente que a vida adulta trouxe outras prioridades. Essa dualidade entre a memória vívida e idealizada de um e a dificuldade de recordar do outro mostra como as experiências afetivas podem ser processadas e valorizadas de maneiras muito diferentes por cada indivíduo.

 

Entendendo o conto:

01 – Qual é o papel do Carnaval na relação dos personagens principais, Janice e Píndaro?

      O Carnaval atua como o único ponto de encontro e o palco principal para o desenvolvimento da relação entre Janice e Píndaro. É o momento em que se veem anualmente, em meio à atmosfera lúdica e desinibida das festas, permitindo que a conexão entre eles floresça e se transforme ao longo dos anos, desde a infância até a vida adulta. Fora dessa época, suas vidas se desenrolam separadamente.

02 – Como a inocência da infância é retratada no início do conto?

      A inocência da infância é retratada pela capacidade de Janice e Píndaro de se entenderem e se conectarem de forma simples, apesar de suas fantasias "de culturas muito diferentes". Eles demonstram essa inocência ao resistir aos apelos maternos para brincar e, em vez disso, preferir fazer um "montinho de confete, serpentina e poeira". Essa pureza é reforçada pela narração, que afirma que "No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro."

03 – Qual é o significado da música "Bandeira Branca" dentro do conto?

      A música "Bandeira Branca" simboliza um momento de reconciliação, rendição e, principalmente, de conexão autêntica entre Janice e Píndaro. Em diversos momentos cruciais da história, quando parecem distantes ou há um desentendimento, a canção surge como um catalisador para que se unam, simbolizando a trégua de suas diferenças e a celebração de sua ligação. O momento mais marcante é quando, aos quinze anos, Píndaro se sente amargurado e Janice o puxa para dançar ao som da música, restaurando a proximidade entre eles.

04 – Como a passagem do tempo afeta a relação e a percepção dos personagens?

      A passagem do tempo afeta a relação de Janice e Píndaro de forma ambígua e, por vezes, dolorosa. Na infância, a cada ano, a intimidade cresce, culminando em beijos e na troca do leque. No entanto, o tempo também traz a ausência, a perda de ilusões (especialmente para Píndaro após a ausência de Janice e a decepção com o riso dela sobre seu nome), e a inevitável transformação física e pessoal. No reencontro adulto, quinze anos depois, há um choque de realidade, a fantasia da juventude se esvai, e a dificuldade de reconhecer o outro fisicamente contrasta com a persistência de memórias e sentimentos.

05 – Que elemento revela a persistência do sentimento de Píndaro por Janice mesmo após anos?

      O elemento que revela a persistência do sentimento de Píndaro é o leque de bailarina que Janice lhe deu. Mesmo após sua ausência e o sofrimento que isso lhe causou, Píndaro guarda o leque, "às vezes tirando o leque do esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile". No reencontro adulto, a revelação de que ele "ainda tenho o leque" sublinha a força e a permanência de sua memória e afeto por ela.

06 – Qual é a principal diferença entre o reencontro na adolescência e o reencontro na vida adulta?

      A principal diferença é a perda da magia e da idealização. No reencontro da adolescência (aos 15 anos), apesar das transformações físicas, a conexão e a atração ainda são fortes, culminando em mais um momento significativo ao som de "Bandeira Branca", reafirmando a paixão adolescente. Já no reencontro na vida adulta, em um aeroporto, a cena é marcada pela realidade crua e pela quebra da fantasia. Há uma dificuldade de reconhecimento físico, uma desconexão com as "fantasias" do passado, e uma sensação de que a vida real, com seus casamentos e filhos, eclipsou a magia dos Carnavais. A mentira de Píndaro sobre ter esquecido o que ia dizer e a dificuldade de Janice em lembrar seu nome evidenciam essa perda.

07 – O que a reflexão final de Píndaro e Janice sobre seus pensamentos sugere sobre a natureza do amor e da memória?

      A reflexão final sugere a complexidade e a subjetividade do amor e da memória. Píndaro idealiza um momento específico ("Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro") como o ápice de sua vida, indicando que o amor para ele foi um instante mágico e irrecuperável. Ele questiona se "todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida?", o que aponta para uma nostalgia e uma sensação de que o melhor já passou. Janice, por outro lado, luta para lembrar o nome de Píndaro, o que pode indicar que, para ela, a intensidade daquele passado não teve o mesmo impacto duradouro ou simplesmente que a vida adulta trouxe outras prioridades. Essa dualidade entre a memória vívida e idealizada de um e a dificuldade de recordar do outro mostra como as experiências afetivas podem ser processadas e valorizadas de maneiras muito diferentes por cada indivíduo.. Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.

        Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.

        Só no terceiro Carnaval se falaram.

        — Como é teu nome?

        — Janice. E o teu?

        — Píndaro.

        — O quê?!

        — Píndaro.

        — Que nome!

        Ele de legionário romano, ela de índia americana.

        Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.

        — Ah.

        Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse "Até o Carnaval que vem" e saiu correndo.

        No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:

        — Me dá alguma coisa.

        — O quê?

        — Qualquer coisa.

        — O leque.

        O leque de bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.

        No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que aconteceu?

        — Você vomitou a alma — disse a mãe.

        — Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.

        Mas no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube — e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.

        — Sei lá. Bávara tropical — disse ela, rindo.

        Estava diferente. Era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.

        — E aquela bailarina espanhola?

        — Nem me fala. E o toureiro?

        — Aposentado.

        A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse "Píndaro?!", e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão.

        O Marcelão tinha o que ele precisava para preencher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi "pelo menos o meu tirolês era autêntico" e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo "não vale, você cresceu mais do que eu" e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.

        Encontraram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse "quase não reconheci você sem fantasias". Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele dissera fora "preciso te dizer uma coisa", e ela dissera "no Carnaval que vem" e no Carnaval seguinte ela não aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara...

        — O que você ia me dizer, no outro Carnaval? – perguntou ela.

        — Esqueci – mentiu ele.

        Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil... E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu...

Extraído de: Os melhores contos brasileiros, organizado por Ítalo Mariconi. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 582 a 585.

Fonte: Programa de Formação de Professores Alfabetizadores. Coletânea de textos – Módulo 1. p. 285-287.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o papel do Carnaval na relação dos personagens principais, Janice e Píndaro?

      O Carnaval atua como o único ponto de encontro e o palco principal para o desenvolvimento da relação entre Janice e Píndaro. É o momento em que se veem anualmente, em meio à atmosfera lúdica e desinibida das festas, permitindo que a conexão entre eles floresça e se transforme ao longo dos anos, desde a infância até a vida adulta. Fora dessa época, suas vidas se desenrolam separadamente.

02 – Como a inocência da infância é retratada no início do conto?

      A inocência da infância é retratada pela capacidade de Janice e Píndaro de se entenderem e se conectarem de forma simples, apesar de suas fantasias "de culturas muito diferentes". Eles demonstram essa inocência ao resistir aos apelos maternos para brincar e, em vez disso, preferir fazer um "montinho de confete, serpentina e poeira". Essa pureza é reforçada pela narração, que afirma que "No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro."

03 – Qual é o significado da música "Bandeira Branca" dentro do conto?

      A música "Bandeira Branca" simboliza um momento de reconciliação, rendição e, principalmente, de conexão autêntica entre Janice e Píndaro. Em diversos momentos cruciais da história, quando parecem distantes ou há um desentendimento, a canção surge como um catalisador para que se unam, simbolizando a trégua de suas diferenças e a celebração de sua ligação. O momento mais marcante é quando, aos quinze anos, Píndaro se sente amargurado e Janice o puxa para dançar ao som da música, restaurando a proximidade entre eles.

04 – Como a passagem do tempo afeta a relação e a percepção dos personagens?

      A passagem do tempo afeta a relação de Janice e Píndaro de forma ambígua e, por vezes, dolorosa. Na infância, a cada ano, a intimidade cresce, culminando em beijos e na troca do leque. No entanto, o tempo também traz a ausência, a perda de ilusões (especialmente para Píndaro após a ausência de Janice e a decepção com o riso dela sobre seu nome), e a inevitável transformação física e pessoal. No reencontro adulto, quinze anos depois, há um choque de realidade, a fantasia da juventude se esvai, e a dificuldade de reconhecer o outro fisicamente contrasta com a persistência de memórias e sentimentos.

05 – Que elemento revela a persistência do sentimento de Píndaro por Janice mesmo após anos?

      O elemento que revela a persistência do sentimento de Píndaro é o leque de bailarina que Janice lhe deu. Mesmo após sua ausência e o sofrimento que isso lhe causou, Píndaro guarda o leque, "às vezes tirando o leque do esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile". No reencontro adulto, a revelação de que ele "ainda tenho o leque" sublinha a força e a permanência de sua memória e afeto por ela.

06 – Qual é a principal diferença entre o reencontro na adolescência e o reencontro na vida adulta?

      A principal diferença é a perda da magia e da idealização. No reencontro da adolescência (aos 15 anos), apesar das transformações físicas, a conexão e a atração ainda são fortes, culminando em mais um momento significativo ao som de "Bandeira Branca", reafirmando a paixão adolescente. Já no reencontro na vida adulta, em um aeroporto, a cena é marcada pela realidade crua e pela quebra da fantasia. Há uma dificuldade de reconhecimento físico, uma desconexão com as "fantasias" do passado, e uma sensação de que a vida real, com seus casamentos e filhos, eclipsou a magia dos Carnavais. A mentira de Píndaro sobre ter esquecido o que ia dizer e a dificuldade de Janice em lembrar seu nome evidenciam essa perda.

07 – O que a reflexão final de Píndaro e Janice sobre seus pensamentos sugere sobre a natureza do amor e da memória?

      A reflexão final sugere a complexidade e a subjetividade do amor e da memória. Píndaro idealiza um momento específico ("Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro") como o ápice de sua vida, indicando que o amor para ele foi um instante mágico e irrecuperável. Ele questiona se "todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida?", o que aponta para uma nostalgia e uma sensação de que o melhor já passou. Janice, por outro lado, luta para lembrar o nome de Píndaro, o que pode indicar que, para ela, a intensidade daquele passado não teve o mesmo impacto duradouro ou simplesmente que a vida adulta trouxe outras prioridades. Essa dualidade entre a memória vívida e idealizada de um e a dificuldade de recordar do outro mostra como as experiências afetivas podem ser processadas e valorizadas de maneiras muito diferentes por cada indivíduo.

CONTO: ASSOMBRAÇÕES DE AGOSTO - GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ - COM GABARITO

 Conto: Assombrações de agosto

           Gabriel García Márquez

        Chegamos a Arezzo, pouco antes do meio-dia, e perdemos mais de duas horas buscando o castelo renascentista que o escritor venezuelano Miguel Ottero Silva havia comprado naquele rincão idílico da planície toscana. Era um domingo de princípios de agosto, ardente e buliçoso, e não era fácil encontrar alguém que soubesse alguma coisa nas ruas abarrotadas de turistas. Após muitas tentativas inúteis voltamos ao automóvel, abandonamos a cidade por uma trilha de ciprestes sem indicações viárias e uma velha pastora de gansos indicou-nos com precisão onde estava o castelo. Antes de se despedir perguntou-nos se pensávamos dormir por lá, e respondemos, pois era o que tínhamos planejado, que só íamos almoçar.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhnTkGn0w60LGB3df5WFbZ7KwbLPUbeiD102C0NrCfeAz3BUCiPck41ozOWRr5nip0waLGCYPAotQFjqRDaH2rtaozky1VkgkO8GG9z_SmrqwQd0cdYuC8GTcvY61RQbRkhXxchDx7esroTRqz_pFU2p_KhrsMpQCC11BS6DqZoz9R3WYKRZS1rd9ExQo0/s320/sddefault.jpg


        — Ainda bem, — disse ela —, porque a casa é assombrada.

        Minha esposa e eu, que não acreditamos em aparição do meio-dia, debochamos de sua credulidade. Mas nossos dois filhos, de nove e sete anos, ficaram alvoroçados com a ideia de conhecer um fantasma em pessoa.

        Miguel Ottero Silva, que além de bom escritor era um anfitrião esplêndido e um comilão refinado, nos esperava com um almoço de nunca esquecer. Como havia ficado tarde não tivemos tempo de conhecer o interior do castelo antes de sentarmos à mesa, mas seu aspecto, visto de fora, não tinha nada de pavoroso, e qualquer inquietação se dissipava com a visão completa da cidade vista do terraço florido onde almoçávamos. Era difícil acreditar que naquela colina de casas empoeiradas, onde mal cabiam noventa mil pessoas, houvessem nascido tantos homens de gênio perdurável. Ainda assim, Miguel Ottero Silva nos disse, com seu humor caribenho, que nenhum de tantos era o mais insigne de Arezzo.

        — O maior — sentenciou — foi Ludovico.

        Assim, sem sobrenome, Ludovico, o grande senhor das artes e da guerra, que havia construído aquele castelo de sua desgraça, e de quem Miguel Ottero nos falou durante o almoço inteiro. Falou-nos de seu poder imenso, de seu amor contrariado e de sua morte espantosa. Contou-nos como foi que, num instante de loucura do coração, havia apunhalado sua dama no leito onde tinham acabado de se amar, e depois atiçara contra si mesmo seus ferozes cães de guerra que o despedaçaram a dentadas. Garantiu-nos muito a sério que a partir da meia-noite o espectro de Ludovico perambulava pela casa em trevas, tentando conseguir sossego em seu purgatório de amor.

        O castelo, na realidade era imenso e sombrio. Mas em pleno dia, com o estômago cheio e o coração contente, o relato de Miguel só podia parecer outra de suas tantas brincadeiras para entreter seus convidados. Os 82 quartos que percorremos sem assombro depois da sesta tinham padecido de todo tipo de mudanças, graças aos seus donos sucessivos. Miguel havia restaurado por completo o primeiro andar e tinha construído para si um dormitório moderno, com piso de mármore e instalações para sauna e cultura física, e o terraço de flores imensas onde havíamos almoçado. O segundo andar, que tinha sido mais usado no curso dos séculos, era uma sucessão de quartos sem nenhuma personalidade, com móveis de diferentes épocas abandonados à própria sorte. Mas no último andar era conservado um quarto imenso, por onde o tempo tinha esquecido de passar. Era o dormitório de Ludovico.

        Foi um instante mágico. Lá estava a cama de cortinas bordadas com fios de ouro, e o cobre-leito de prodígios de passamanarias ainda enrugado pelo sangue seco da amante sacrificada. Estava a lareira com as cinzas geladas e o último tronco de lenha convertido em pedra, o armário com suas armas bem escovadas e o retrato a óleo do cavalheiro pensativo numa moldura de ouro, pintado por algum dos mestres florentinos que não teve a sorte de sobreviver ao seu tempo. No entanto, o que mais me impressionou foi o perfume de morangos recentes que permanecia estancado sem explicação possível no ambiente do dormitório.

        Os dias de verão são longos e parcimoniosos na Toscana, e o horizonte se mantém em seu lugar até as nove da noite. Quando terminamos de conhecer o castelo, eram mais de cinco da tarde, mas Miguel insistiu em levar-nos para ver os afrescos de Piero della Francesca na igreja de São Francisco, depois tomamos um café com muita conversa debaixo das pérgulas da praça, e quando regressamos para buscar as maletas, encontramos a mesa posta. Portanto, ficamos para o jantar.

        Enquanto jantávamos, debaixo de um céu de malva com uma única estrela, as crianças acenderam algumas tochas na cozinha e foram explorar as trevas nos andares altos. Da mesa ouvíamos seus galopes de cavalos, errantes pelas escadarias, os lamentos das portas, os gritos felizes chamando Ludovico nos quartos tenebrosos. Foi deles a má ideia de ficarmos para dormir, Miguel Ottero Silva apoiou-os encantado e nós não tivemos a coragem civil de dizer não.

        Ao contrário do que eu temia, dormimos muito bem, minha esposa e eu num dormitório do andar térreo e meus filhos no quarto contíguo. Ambos haviam sido modernizados e não tinham nada de tenebrosos. Enquanto tentava conseguir sono, contei os doze toques insones do relógio de pêndulo da sala e recordei a advertência pavorosa da pastora de gansos. Mas estávamos tão cansados que dormimos logo, num sono denso e contínuo, e despertei depois das sete com um sol esplêndido entre as trepadeiras da janela. Ao meu lado, minha esposa navegava no mar aprazível dos inocentes. "Que bobagem", disse a mim mesmo, "alguém continuar acreditando em fantasmas nestes tempos." Só então estremeci com o perfume de morangos recém-cortados, e vi a lareira com as cinzas frias e a última lenha convertida em pedra e o retrato do cavalheiro triste que nos olhava há três séculos por trás na moldura de ouro. Pois não estávamos na alcova do térreo onde havíamos deitado na noite anterior, e sim no dormitório de Ludovico, debaixo do dossel e das cortinas poeirentas e dos lençóis empapados ainda quentes de sua cama maldita.

Gabriel García Márquez In Doze contos peregrinos, Rio de Janeiro, Record, 1993.

Fonte: Programa de Formação de Professores Alfabetizadores. Coletânea de textos – Módulo 1. p. 91-92.

Entendendo o conto:

01 – Onde e em que circunstâncias os narradores chegam ao castelo de Miguel Ottero Silva?

      Os narradores chegam a Arezzo, Itália, em um domingo de princípios de agosto, um dia quente e movimentado por turistas. Eles perdem mais de duas horas procurando o castelo renascentista do escritor venezuelano antes de serem guiados por uma velha pastora de gansos.

02 – Qual a primeira menção à assombração no conto e como os adultos e as crianças reagem a ela?

      A primeira menção à assombração é feita pela velha pastora de gansos, que adverte que a casa é "assombrada". Os narradores (adultos), que "não acreditam em aparição do meio-dia", debocham da credulidade dela. No entanto, os dois filhos (crianças), de nove e sete anos, ficam "alvoroçados com a ideia de conhecer um fantasma em pessoa".

03 – Quem é Ludovico e qual a história trágica associada a ele, segundo Miguel Ottero Silva?

      Ludovico é descrito como o "grande senhor das artes e da guerra" que construiu o castelo onde a história se passa. Miguel Ottero Silva conta que Ludovico, num acesso de loucura por amor, apunhalou sua dama no leito após terem se amado e, em seguida, atiçou seus cães de guerra contra si mesmo, sendo despedaçado. Seu espectro, segundo a lenda, perambula pela casa após a meia-noite.

04 – Que particularidade é notada no quarto de Ludovico pelos narradores durante a visita ao castelo, antes do jantar?

      No quarto de Ludovico, os narradores se impressionam com o perfume de morangos recentes que permanece "estancado sem explicação possível no ambiente", além da cama com cortinas bordadas, o cobre-leito manchado de sangue seco, a lareira com cinzas frias e o retrato do cavalheiro.

05 – Qual foi a "má ideia" das crianças que leva os adultos a pernoitar no castelo?

      A "má ideia" das crianças foi explorar os andares altos do castelo à noite, com tochas, e brincar de chamar Ludovico. Isso as fez querer ficar para dormir no castelo, e Miguel Ottero Silva as apoiou, fazendo com que os adultos não tivessem "coragem civil de dizer não".

06 – Onde os narradores (o casal) pensaram ter dormido e onde realmente acordaram?

      Os narradores (o casal) pensaram ter dormido em um dormitório modernizado no andar térreo. No entanto, eles acordaram no dormitório de Ludovico, no último andar, identificando o local pelo perfume de morangos, a lareira com cinzas frias e o retrato do cavalheiro.

07 – Qual é o elemento final que confirma a "assombração" para o narrador ao despertar?

      Ao despertar, o narrador, que inicialmente duvidava de fantasmas, sente o perfume de morangos recém-cortados e, ao olhar ao redor, vê a lareira com as cinzas frias, a lenha "convertida em pedra" e o retrato de Ludovico, confirmando que eles estavam no quarto assombrado, e não no quarto térreo onde acreditavam ter dormido.

CONTO: AS LONGAS COLHERES - GRUPO GRANADA DE CONTADORES DE HISTÓRIAS - COM GABARITO

 Conto: As longas colheres

        Uma vez, num reino não muito distante daqui, havia um rei que era famoso tanto por sua majestade como por sua fantasia meio excêntrica.

        Um dia ele mandou anunciar por toda parte que daria a maior e mais bela festa de seu reino. Toda a corte e todos os amigos do rei foram convidados.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiMtN00Io5Tbz1uVr_1oAONZkr1xBCBbw0pMIHFJy9O0S_FPJmptDpP_Ye875ol2yQs4JOzBAn4WTe1mWkyM1_zyE-JJVTGVHYO2a8YGbSjJT2sfeyYRxUCVxqv8-CueLoNBD8txWSKkVA4-PVVaOnwfhsTAwVHF50bTBqg2PzETaZBuJ7s-k3KUMvFjro/s1600/images.jpg


        Os convidados, vestidos nos mais ricos trajes, chegaram ao palácio, que resplandecia com todas as suas luzes.

        As apresentações transcorreram segundo o protocolo, e os espetáculos começaram: dançarinos de todos os países se sucediam a estranhos jogos e aos divertimentos mais refinados.

        Tudo, até o mínimo detalhe, era só esplendor. E todos os convidados admiravam fascinados e proclamavam a magnificência do rei.

        Entretanto, apesar da primorosa organização da festa, os convidados começaram a perceber que a arte da mesa não estava representada em parte alguma.

        Não se podia encontrar nada para acalmar a fome que todos sentiam mais duramente à medida que as horas passavam.

        Essa falta logo se tornou incontrolável.

        Jamais naquele palácio nem em todo o país aquilo havia acontecido.

        A festa não parava de esforçar-se para atingir o auge, oferecendo ao público uma profusão de músicos maravilhosos e excelentes dançarinos.

        Pouco a pouco o mal-estar dos espectadores se transformou numa surda, mas visível contrariedade.

        Ninguém, no entanto, ousava elevar a voz diante de um rei tão notável.

        Os cantos continuaram por horas e horas. Depois foram distribuídos presentes, mas nenhum deles era comestível.

        Finalmente, quando a situação se tomou insustentável, e a fome, intolerável, o rei convidou seus hóspedes a passarem para uma sala especial, onde uma refeição os aguardava. Ninguém se fez esperar. Todos como um conjunto harmonioso, correram em direção ao delicioso aroma de uma sopa que estava num enorme caldeirão no centro da mesa.  

        Os convidados quiseram servir-se, mas grande foi sua surpresa ao descobrirem, no caldeirão, enormes colheres de metal, com mais de um metro de comprimento. E nenhum prato, nenhuma tigela, nenhuma colher de formato mais acessível.

        Houve tentativas, mas só provocaram gritos de dor e decepção. Os cabos desmesurados não permitiam que o braço levasse à boca a beberagem suculenta, porque não se podiam segurar as escaldantes colheres a não ser por uma pequena haste de madeira em suas extremidades.

        Desesperados, todos tentavam comer, sem resultado. Até que um dos convidados, mais esperto ou mais esfaimado, encontrou a solução: sempre segurando a colher pela haste situada em sua extremidade, levou-a à… boca de seu vizinho, que pôde comer à vontade.

        Todos o imitaram e se saciaram, compreendendo enfim que a única forma de alimentar-se, naquele palácio magnífico, era um servindo ao outro.

Extraído de: Grupo Granada de Contadores de Histórias (seleção e tradução) & Nícia Grillo (coord.). Histórias da tradição Sufi. Edições Dervish/Instituto Tarika, 1993.

Fonte: Programa de Formação de Professores Alfabetizadores. Coletânea de textos – Módulo 1. p. 168-169.

Entendendo o conto:

01 – Qual era a característica mais notável do rei mencionado no início do conto?

      O rei era famoso tanto por sua majestade quanto por sua fantasia meio excêntrica.

02 – O que os convidados começaram a perceber durante a festa, apesar de toda a magnificência?

      Eles começaram a perceber que a arte da mesa não estava representada em parte alguma, ou seja, não havia comida para acalmar a fome.

03 – Como a contrariedade dos convidados se manifestou, mesmo sem ninguém ousar falar abertamente?

      O mal-estar dos espectadores transformou-se numa surda, mas visível contrariedade.

04 – O que o rei fez quando a fome dos convidados se tornou insuportável?

      O rei convidou seus hóspedes a passarem para uma sala especial, onde uma refeição os aguardava.

05 – Qual foi a grande surpresa dos convidados ao tentar se servir da sopa?

      Eles descobriram que havia apenas enormes colheres de metal com mais de um metro de comprimento no caldeirão, e nenhum prato ou tigela.

06 – Por que as colheres gigantes dificultavam a alimentação dos convidados?

      Os cabos desmesurados não permitiam que o braço levasse a sopa à boca, pois só era possível segurar as colheres por uma pequena haste de madeira nas extremidades.

07 – Qual foi a solução encontrada para que todos pudessem se alimentar?

      Um dos convidados, mais esperto, descobriu que a única forma de comer era servindo a sopa na boca do vizinho, e todos o imitaram, saciando-se ao se servirem mutuamente.

 

CONTO: A MOURA TORTA - HENRIQUETA LISBOA - COM GABARITO

 Conto: A moura torta

           Henriqueta Lisboa.

        Era uma vez um rei que tinha um filho único, e este, chegando a ser rapaz, pediu para correr mundo. Não houve outro remédio senão deixar o príncipe seguir viagem como desejava.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEihAsJNmddnrAgCcdttNUPWvC86WYDir2sJBJ9sCATKX0dFGsXLdO22T4uj9dTNyH_v0UYQp0NPj0r5byGkQK0M99B_ZiBelMHuhwnMvMTyz9N5XVjGB3I9kIgMrpvOCGWnu4ixvkFl6sL70e9BxPxhQ_Jq-pjRSbi8FZJBrEomqegL_l0uAn1Wahq3Rtc/s320/DI03868.jpg


        Nos primeiros tempos nada aconteceu de novidades. O príncipe andou, andou, dormindo aqui e acolá, passando fome e frio. Numa tarde ia ele chegando a uma cidade quando uma velhinha, muito corcunda, carregando um feixe de gravetos, pediu uma esmola. O príncipe, com pena da velhinha, deu dinheiro bastante e colocou nos ombros o feixe de gravetos, levando a carga até pertinho das ruas. A velha agradeceu muito, abençoou e disse:

        – Meu netinho, não tenho nada para lhe dar; leve essas frutas para regalo mas só abra perto das águas correntes.

        Tirou do alforje sujo três laranjas e entregou ao príncipe, que as guardou e continuou sua jornada.

        Dias depois, na hora do meio-dia, estava morto de sede e lembrou-se das laranjas. Tirou uma, abriu o canivete e cortou. Imediatamente a casca abriu para um lado e outro e pulou de dentro uma moça bonita como os anjos, dizendo:

        – Quero água! Quero água!

        Não havia água por ali e a moça desapareceu. O príncipe ficou triste com o caso. Dias passados sucedeu o mesmo. Estava com sede e cortou a segunda laranja. Outra moça, ainda mais bonita, apareceu, pedindo água pelo amor de Deus.

        O príncipe não pôde arranjar nem uma gota. A moça sumiu-se como uma fumaça, deixando-o muito contrariado.

        Noutra ocasião o príncipe tornou a ter muita sede. Estava já voltando para o palácio de seu pai. Lembrou-se do sucedido com as duas moças e andou até um rio corrente. Parou e descascou a última laranja que a velha lhe dera. A terceira moça era bonita de fazer raiva. Muito e muito mais bonita que as duas outras. Foi logo pedindo água e o príncipe mais que depressa lhe deu. A moça bebeu e desencantou, começando a conversar com o rapaz e contando a história. Ficaram namorados um do outro. A moça estava quase nua e o príncipe viajava a pé, não podendo levar sua noiva naqueles trajes. Mandou subir para uma árvore, na beira do rio, despediu-se dela e correu para casa.

        Nesse momento chegou uma escrava negra, cega de um olho, a quem chamavam a Moura Torta. A negra baixou-se para encher o pote com água do rio mas avistou o rosto da moça que se retratava nas águas e pensou que fosse o dela. Ficou assombrada de tanta formosura.

        – Meu Deus! Eu tão bonita e carregando água? Não é possível… Atirou o pote nas pedras, quebrando-o e voltou para o palácio, cantando de alegria. Quando a viram voltar sem água e toda importante, deram muita vaia na Moura Torta, brigaram com ela e mandaram que fosse buscar água, com outro pote.

        Lá voltou a negra, com o pote na cabeça, sucumbida. Meteu o pote no rio e viu o rosto da moça que estava na árvore, mesmo por cima da correnteza. Novamente a escrava preta ficou convencida da própria beleza. Sacudiu o pote bem longe e regressou para o palácio, toda cheia de si.

        Quase a matam de vaias e de puxões. Deram o terceiro pote e ameaçaram a negra de uma surra de chibata se ela chegasse sem o pote cheio d’água. Lá veio a Moura Torta no destino. Mergulhou o pote no rio e tornou a ver a face da moça. Esta, não podendo conter-se com a vaidade da negra, desatou uma boa gargalhada. A escrava levantou a cabeça e viu a causadora de toda sua complicação.

        – Ah! É vossimicê, minha moça branca? Que está fazendo aí, feito passarinho? Desça para conversar comigo.

        A moça, de boba, desceu, e a Moura Torta pediu para pentear o cabelo dela, um cabelão louro e muito comprido que era um primor. A moça deixou. A Moura Torta deitou a cabeça no seu colo e começou a catar, dando cafuné e desembaraçando as tranças. Assim que a viu muito entretida, fechando os olhos, tirou um alfinete encantado e fincou-o na cabeça da moça. Esta deu um grito e virou-se numa rolinha, saindo a voar.

        A negra trepou-se na mesma árvore e ficou esperando o príncipe, como a moça lhe tinha dito, de boba.

        Finalmente o príncipe chegou, numa carruagem dourada, com os criados e criadas trazendo roupa para vestir a noiva. Encontrou a Moura Torta, feia como a miséria. O príncipe, assim que a viu, ficou admirado e perguntou a razão de tanta mudança. A Moura Torta disse:

        – O sol queimou minha pele e os espinhos furaram meu olho. Vamos esperar que o tempo melhore e eu fique como era antes.

        O príncipe acreditou e lá se foi a Moura Torta de carruagem dourada, feito gente. O rei e a rainha ficaram de caldo vendo uma nora tão horrenda como a negra. Mas palavra de rei não volta atrás e o prometido seria cumprido. O príncipe anunciou seu casamento e mandou convite aos amigos.

        A Moura Torta não acreditava nos olhos. Vivia toda coberta de seda e perfumada, dando ordens e ainda mais feia do que carregando o pote d’água. Todos antipatizavam com a futura princesa.

        Todas as tardes o príncipe vinha espairecer no jardim e notava que uma rolinha voava sempre ao redor dele, piando triste de fazer pena. Aquilo sucedeu tantas vezes que o príncipe acabou ficando impressionado. Mandou um criado armar um laço num galho e a rolinha ficou presa. O criado levou a rolinha ao príncipe e este a segurou com delicadeza, alisando as peninhas. Depois coçou a cabecinha da avezinha e encontrou um caroço duro. Puxou e saiu um alfinete fino. Imediatamente a moça desencantou-se e apareceu bonita como os amores.

        O príncipe ficou sabendo da malvadeza da negra escrava. Mandou prender Moura Torta e contou a todo o mundo a perversidade dela, condenando-a a morrer queimada e as cinzas serem atiradas ao vento.

        Fizeram uma fogueira bem grande e sacudiram a Moura Torta dentro, até que ficou reduzida a poeira.

        A moça casou com o príncipe e viveram como Deus com seus anjos, querida por todos. Entrou por uma perna de pinto e saiu por uma de pato, mandou dizer El-Rei Meu Senhor que me contassem quatro…

Conto popular. Recontado por Lourença Maria da Conceição, in Câmara Cascudo, Contos tradicionais do Brasil. Rio de Janeiro, Ediouro, data?

Entendendo o conto:

01 – Qual foi o pedido do príncipe ao seu pai e qual foi a condição inicial de sua viagem?

      O príncipe pediu ao seu pai, o rei, para correr mundo (viajar e conhecer lugares). Inicialmente, ele "andou, andou, dormindo aqui e acolá, passando fome e frio", ou seja, enfrentou dificuldades e privações.

02 – Como o príncipe ajudou a velhinha corcunda e qual presente ele recebeu dela?

      O príncipe ajudou a velhinha corcunda dando-lhe dinheiro e colocando o feixe de gravetos dela em seus próprios ombros, carregando-o até a cidade. Como agradecimento, a velhinha lhe deu três laranjas, com a instrução de só abri-las perto de águas correntes.

03 – Por que as duas primeiras moças que saíram das laranjas desapareceram?

      As duas primeiras moças desapareceram porque, ao saírem das laranjas, imediatamente pediram água, e o príncipe não conseguiu providenciar nenhuma gota de água por perto. A falta de água as fez sumir.

04 – Qual a atitude da Moura Torta ao ver o reflexo da moça na água e qual foi a consequência de suas ações para ela mesma?

      A Moura Torta, ao ver o reflexo da moça na água, pensou que fosse o seu próprio e ficou extremamente vaidosa com tanta formosura. Por causa dessa vaidade, ela quebrou os potes que deveria encher com água, o que resultou em "muita vaia", brigas e ameaças de surra por parte das pessoas do palácio.

05 – Como a Moura Torta enganou a moça encantada da laranja?

      A Moura Torta enganou a moça pedindo para pentear seu cabelo e, enquanto a moça estava relaxada e de olhos fechados, a negra fincou um alfinete encantado na cabeça dela, transformando-a em uma rolinha.

06 – De que forma o príncipe descobriu a verdadeira identidade da moça transformada em rolinha e o que ele fez com a Moura Torta?

      O príncipe notou uma rolinha piando triste no jardim e, impressionado, mandou um criado capturá-la. Ao alisar as peninhas e coçar a cabecinha da rolinha, encontrou um caroço duro e puxou um alfinete fino, o que fez a moça desencantar. Ao saber da maldade, o príncipe mandou prender a Moura Torta, condenando-a a morrer queimada e ter suas cinzas atiradas ao vento.

07 – Qual o desfecho da história para a moça e para o príncipe?

      A moça casou com o príncipe e, segundo o conto, "viveram como Deus com seus anjos, querida por todos", indicando um final feliz e harmonioso.