Conto: Uma nova Interjeição – Emília no
país da gramática
Monteiro
Lobato
Houve um rebuliço de pânico lá dentro,
e logo depois surgiram, a fugir pelas janelas, mais filólogos e gramáticos e
dicionaristas do que fogem ratazanas duma despensa quando o gatão aparece. A
casa da velha ficou completamente vazia.
Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiZYoJ_Pw5RNtRxJJK9vTfTpJrHMZfqROhF8cAw5iZRDpaE4bDRHCu3aG50GUxm_Rvf154v0XhOkSXJbhE58hG8BJm0YdghcCa9au_04qivmPFytp5uG3mCEA-qO5tlke8kiykU6LKZt3v4Fnwb9mnzUTQD4cLvPcm956kSA-7niS2BlU6Ksc0n4E17Zkk/s320/INTERJEI%C3%87%C3%83O.jpg
— Sim, senhor! O seu berro, Quindim, é
que nem Flit, e merece ir para a Casa das Interjeições com um letreiro novo:
Interjeição espantativa de gramáticos...
Desimpedida que ficou a casa da velha,
entraram todos, menos o rinoceronte, que não cabia na porta. Toparam a
Etimologia intrigadíssima com aquele Muuu!... som jamais ouvido na zona.
— Não conheço essa interjeição —
declarou ela, assim que os meninos a rodearam. — Só conheço o Mu! dos bois, mas
este que ouvi não me parece nada bovino.
— Este é rinocerontino, minha
senhora! — explicou Emília, com toda a
sapequice. — Veio da África. A senhora conhece a África?
A Etimologia não conhece as coisas; só
conhece as palavras que designam as coisas. De modo que, ao ouvir aquela
pergunta, julgou que a boneca se referisse à palavra África, e respondeu:
— Sim, é uma palavra de origem latina,
ou melhor, puramente latina, porque não mudou. A propósito...
— Espere — interrompeu Emília. — A
história da palavra África não nos interessa. Preferimos conhecer a história de
outras palavras mais importantes, como, por exemplo, Boneca.
A velha riu-se da presunção da
criaturinha e respondeu:
— Boneca, minha cara, é o feminino de
Boneco, palavra que veio do holandês Manneken, homenzinho. Houve mudança do M
para B — duas letras que o povo inculto costuma confundir. A palavra Manneken
entrou em Portugal transformada em Banneken, ou Bonneken, e foi sendo
desfigurada pelo povo até chegar à sua forma de hoje, Boneco. Dessa mesma palavra
holandesa nasceu para o português uma outra — Manequim.
— Mas então o povo, isto é, os
ignorantes ou incultos, influi assim na língua? — disse Pedrinho.
— Os incultos influíram e ainda influem
muitíssimo na língua — respondeu à velha. — Os incultos formam a grande
maioria, e as mudanças que a maioria faz na língua acabam ficando.
— Engraçado! Está aí uma coisa que
nunca imaginei...
— É fácil de compreender isso —
observou a velha. — As pessoas cultas aprendem com professores e, como
aprendem, repetem certo as palavras. Mas os incultos aprendem o pouco que sabem
com outros incultos, e só aprendem mais ou menos, de modo que não só repetem os
erros aprendidos como perpetram erros novos, que por sua vez passam a ser repetidos
adiante. Por fim há tanta gente a cometer o mesmo erro que o erro vira Uso e,
portanto, deixa de ser erro. O que nós hoje chamamos certo, já foi erro em
outros tempos. Assim é a vida, meus caros meninos.
Tomemos a palavra latina Speculum — continuou
a velha. — Essa palavra emigrou para Portugal com os soldados romanos, e foi
sendo gradativamente errada até ficar com a forma que tem hoje — Espelho.
— E os ignorantes de hoje continuam a
mexer nela — observou Narizinho. — A gente da roça diz Espeio.
— Muito bem lembrado — concordou a
velha. — Essa forma Espeio é hoje repelida com horror pelos cultos modernos,
como a forma Espelho devia ter sido repelida com horror pelos cultos de dantes.
Mas como os cultos de hoje aceitam como certo o que já foi erro, bem pode ser
que os cultos do futuro aceitem como certo o erro de hoje. Eu, que sou muito
velha e tenho visto muita coisa, de nada me admiro. O homem é um animal
comodista. Daí a sua tendência a adotar os erros que exigem menor esforço para
a pronúncia. Espelho exige menor esforço do que Speculum, e por isso venceu.
Espeio exige menor esforço do que Espelho. Quem nos diz que não acabará
vencendo nestes mil ou dois mil anos?
Hoje está mais difícil a ação dos
ignorantes sobre a língua, por causa do grande número de livros e jornais que
existem e fixam a forma atual das palavras. Mas antigamente quem fazia a língua
era justamente o ignorante.
Dona Etimologia tomou fôlego e bebeu um
golinho de chá. Emília foi cheirar a xícara para saber se era chá-da-índia ou
de erva-cidreira...
— Mas qual a sua principal ocupação
nesta cidade, minha senhora? — perguntou o menino.
— Eu ensino a origem e a formação de
todas as palavras.
— Pois então nos conte a origem de
algumas.
Dona Etimologia bebeu mais um golinho
de chá (enquanto Emília cochichava para Narizinho: "É de cidreira!")
e começou:
— As palavras desta cidade nova, onde
estamos, vieram quase todas da cidade velha, que fica do outro lado do mar. Lá
na cidade velha, porém, essas palavras levaram uns dois mil anos para se
formarem.
— Como foi isso? Explique.
— Nos começos, as terras em redor dessa
cidade haviam sido ocupadas pelos soldados romanos, que só falavam latim.
Esses soldados moravam em acampamento
(ou Castra, como se dizia em latim), de modo que foi em redor dos acampamentos
que a língua nova começou a surgir.
— Que língua nova?
— A portuguesa. Os moradores das terras
ocupadas pelos romanos, ou Aborígines, eram bárbaros incultíssimos, que foram
aprendendo o latim lá à moda deles — isto é, estropiadamente, todo errado e com
muita mistura de termos e modos de falar locais. Tanto estropiaram o pobre
latim, que ele virou um Dialeto ou uma variante do latim puro. Depois os
romanos se retiraram, mas o dialeto ficou vivendo a sua vidinha, e foi
evoluindo, ou mudando, até tornar-se o que chamamos hoje língua portuguesa.
— Então a língua portuguesa não passa
dum dialeto do latim?
— Perfeitamente. E também a língua
francesa, a espanhola e a italiana não passam de outros tantos dialetos do
mesmo latim. No começo, esses dialetos eram muito pobres em palavras e modos de
dizer. Com o tempo, entretanto, as palavras foram aumentando enormemente e também
foram aparecendo novos jeitos de combinar entre si as palavras. E desse modo
essas línguas enriqueceram-se.
— Mas as palavras foram aumentando
como? Donde vinham? Quem era o fabricante? — quis saber a menina.
— Umas nasciam lá mesmo, inventadas
pelo povo; outras eram criadas pelos eruditos, que são os sabidões; outras eram
importadas dos países estrangeiros.
— Mas o povo? Como é que o povo forma
palavras?
— Muito simplesmente. O povo combina
entre si palavras já existentes e forma novas.
— Isso lá no sítio se chama "tirar
cria" — lembrou Pedrinho.
— Em Gramática se chama DERIVAÇÃO,
querendo dizer que uma palavra sai de outra, ou deriva de outra. Neste processo
de Derivação há umas certas palavrinhas, sem sentido próprio, que possuem uma
função muito importante. São os PREFIXOS e SUFIXOS. Os prefixos grudam-se no
começo da palavra, e os sufixos grudam-se no fim. Estes constituem verdadeiros
rabinhos, que por si nada dizem, mas que, pregados a outras palavras, servem
para dar-lhes uma forma nova e um sentido novo.
— Espere! — gritou Emília. — Conheço um
rabinho desses muito usado na fabricação de Advérbios — o tal Mente. Basta
pregá-lo no traseiro dum Adjetivo para aparecer um lindo Advérbio novo. É
Sufixo o tal Mente?
— Sim, bonequinha — respondeu a velha,
admirada da esperteza da Emília. — Mente é um sufixo só de uso para fazer
Advérbios. Existem inúmeros outros, como Ária, Ado, Agem, Ume, etc. Este Ária,
por exemplo, é um Sufixo precioso, que permitiu a formação de grande número de
Substantivos novos. Ária em si não quer dizer coisa nenhuma, não passa dum
simples rabinho. Mas, ligado a uma palavra, cria outra nova, com ideia de
quantidade. Ligado ao Substantivo Cavalo, por exemplo, dá Cavalaria, que quer
dizer muitos cavalos.
— Não, senhora — protestou Emília. —
Cavalo com o Ária atrás vira Cavaloaria, e não Cavalaria.
A velha riu-se da exigência daquele
espirro de criatura.
— Bom, minha filha — respondeu ela pachorrentamente
—, confesso que errei. Eu devia ter explicado que, antes de colocar um desses
rabinhos, é necessário primeiro cortar a DESINÊNCIA da palavra. Senão o Sufixo
não pega, ou não solda. Cada palavra se divide em duas partes — a RAIZ e a
DESINÊNCIA. Raiz é a parte fixa da palavra; Desinência é a parte final,
mudável. Reparem que, em todas as palavras formadas de Cavalo, a Raiz é Cavai,
e notem que essa Raiz nunca muda. Cavaleiro, Cava-laria, Caval-gadura,
Caval-hada...
— Caval-ência — ajuntou Emília.
— Essa palavra eu não conheço — disse a
velha, com expressão de surpresa nos olhos.
— É minha! — berrou a boneca. — Foi
inventada por mim com a invençãozinha que Deus me deu. Faz parte dos meus
"neologismos".
A velha fez uma careta igual à de Tia
Nastácia lá no sítio, quando pendurava o beiço e dizia — Credo!...
OBRA
INFANTO-JUVENIL DE MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País
da Gramática. As
figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.
Entendendo o conto:
01 – Qual foi o efeito do
berro ("Muu!") de Quindim no início do capítulo, e que nome Emília
sugere para essa "nova Interjeição"?
O berro causou um
rebuliço de pânico, fazendo com que os filólogos, gramáticos e dicionaristas
fugissem da casa da Etimologia. Emília sugere o nome "Interjeição
espantativa de gramáticos" para o som.
02 – Qual é a origem da
palavra "Boneca", de acordo com a Senhora Etimologia?
A palavra
"Boneca" (feminino de "Boneco") veio do holandês
"Manneken" (homenzinho). Ela entrou em Portugal como
"Banneken" ou "Bonneken" e foi desfigurada pelo povo (troca
do M para B) até chegar à forma atual.
03 – Qual é o papel do povo
inculto (os ignorantes) na evolução da língua, segundo a Etimologia?
Os incultos
influíram e ainda influem muitíssimo na língua porque formam a grande maioria.
As mudanças e erros cometidos por eles, ao serem repetidos por muitas pessoas,
acabam se tornando Uso e, consequentemente, deixam de ser erro e passam a ser
considerados a forma correta.
04 – Qual é a origem da língua
portuguesa segundo a explicação da Etimologia?
A língua
portuguesa não passa de um Dialeto do latim (falado pelos soldados romanos). Os
moradores originais (aborígines) aprenderam o latim de forma errada e com
misturas locais, o que fez com que ele evoluísse, através dos séculos, até se
tornar o que hoje é o português (assim como o espanhol, o francês e o
italiano).
05 – O que o processo de
formação de palavras chamado Derivação representa, e quais são as
"palavrinhas" (sem sentido próprio) que possuem uma função importante
nele?
Derivação é o
processo em que uma palavra "tira cria", ou sai de outra já
existente. As palavrinhas importantes nesse processo são os Prefixos (que
grudam no começo da palavra) e os Sufixos (que grudam no fim).
06 – O que é a Raiz e a
Desinência de uma palavra, e por que é necessário cortar a Desinência ao juntar
um Sufixo?
A Raiz é a parte
fixa e imutável da palavra (ex: Caval-). A Desinência é a parte final, mudável.
É necessário cortar a Desinência antes de colocar um Sufixo, pois, se não for
feito, o Sufixo "não pega, ou não solda".
07 – Que neologismo (palavra
nova) Emília afirma ter inventado, e como a Senhora Etimologia reagiu a essa
nova palavra?
Emília inventa o
neologismo "Caval-ência". A Senhora Etimologia reage com surpresa por
não conhecer a palavra e, ao descobrir que foi uma invenção de Emília, faz uma
careta de espanto ou descrença.