quinta-feira, 2 de outubro de 2025

CONTO: EMÍLIA FORMA PALAVRAS - EMÍLIA NO PAÍS DA GRAMÁTICA - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: Emília forma palavras – Emília no país da gramática

           Monteiro Lobato

        — Pois é isso — continuou a velha, ainda tonta da sapequice gramatical da Emília. — A Raiz das palavras não muda; de modo que, para formar palavras novas, a gente faz como o jardineiro: poda o que não é Raiz e enxerta o Sufixo.

        — Em vez de enxertar o Sufixo no fim não é possível enxertá-lo no começo? — quis saber Narizinho.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhu9GEldQz9ewdS0pRE5_yMDT1bDfFGReuEiU4FagBIU_vLnxqXNFVk7aU2tBfrAtWULVzIwULn2ruNY1BULCuxeT6OWGl7rc7S8e6Xl1TSWJkej3nD4jYnOER1P13_XFUHM6MmCeeofX7QiOq7N4Q_pwrarSFVvB51_Ntza63JLQY6SoFyJ3kXtFNK9Mo/s320/prefixos-e-sufixos.jpg


        — Não — respondeu à velha. — Os Sufixos, assim como os rabos dos animais, só se usam na parte traseira. Há, porém, os irmãos dos Sufixos, que servem justamente para enxertos no começo da Raiz.

        — E como se chamam?

        — Prefixos: Pre quer dizer antes. Re, Trans, A e Com, por exemplo, são Prefixos. Se tomamos o Verbo Formar e grudarmos na frente dele esses Prefixos, teremos os novos Verbos Reformar, Transformar e Conformar, todos com sentido diferente.

        — Voltemos aos Sufixos, que são mais engraçadinhos — propôs Emília. — Diga uma porção deles, Dona Timótea.

        A velha, que já estava cansada de tanto falar, tomou mais um gole de chá, e prosseguiu, apontando para um armário:

        — Os Sufixos estão todos nas gavetas daquele armário. Vá lá e mexa com eles quanto quiser — mas não me chame mais de Timótea, ouviu?

        Emília não esperou segunda ordem. Correu ao armário, abriu as gavetas e tirou de dentro um punhado de Sufixos. Depois espalhou-os sobre a mesa para aprender a usá-los. Pedrinho e a menina vieram tomar parte no brinquedo.

        — Olhe, Narizinho — disse a boneca —, ali está uma caixa de Substantivos. Traga-me um; e você, Pedrinho, agarre aquela faca.

        Os dois meninos assim fizeram. Narizinho depôs sobre a mesa um Substantivo pegado ao acaso — Pedra.

        — Segure-o bem, senão ele escapa — recomendou Emília —, e agora, Pedrinho, corte a Desinência deste Substantivo dum só golpe. Vá!

        — Mas esta faca será capaz de cortar Pedra? — indagou o menino, de brincadeira, só para ver o que a boneca dizia. A diabinha, porém, estava tão interessada na operação cirúrgica que apenas gritou:

        — Corte e não amole!

        Apesar da recomendação, o menino amolou a faca na sola do sapato e só depois disso é que — Zás!... atorou a Desinência de Pedra, a qual deu um gritinho agudo.

        — Pronto! — exclamou Emília. — O pobre Substantivo está reduzido a uma simples Raiz. Venha ver, Dona Etimologia, como é engraçadinha esta Raiz.

        Mas a velha, que andava farta e refaria de lidar com Raízes, nem se mexeu do lugar. Emília, então, tomou um dos Sufixos tirados da gaveta, justamente o Ária, e fez a ligação com um pouco de cuspo. Imediatamente surgiu a palavra Pedraria.

        — Viva! Viva! — gritou ela batendo palmas. — Deu certinho! Venha ver, Dona Eufrásia! Com uma Raiz e um Sufixo fabricamos uma palavra nova, que quer dizer muitas pedras. Deixe esse chá sem graça e venha brincar.

        Mas a velha estava muito velha para brincadeiras e limitou-se a tomar novo gole de chá.

        — Vamos ver outro Sufixo — propôs Narizinho. Emília pegou outro, o sufixo Ada, e experimentou a ligação. Deu a palavra Pedrada.

        — Ótimo! Este também dá certinho. Pedrada todos sabemos o que é. Vamos ver outro.

        Emília pegou um terceiro Sufixo — Eria, e experimentou a ligação. Deu a palavra Pedreria, que não tinha sentido.

        — Este não presta — gritou Pedrinho. — Não dá nada que se entenda. Veja outro, Emília — esse Eiro.

        Ligou bem. Deu Pedreiro.

        — Ótimo! — exclamou a boneca. — Vamos ver este Alha.

        Deu Pedralha, que eles não sabiam o que era, mas estava com jeito de ser qualquer coisa. Depois experimentaram os Sufixos Ulho, Ena, Io, Dade, Ame, Uje e AI, com resultados variáveis. Uns deram, outros não deram nada. Ulho, com um Eg no meio, deu uma beleza — Pedregulho. O Sufixo Dade deu asneira — Pedrade.

        Emília olhou para o rótulo da gaveta e viu que estava usando os Sufixos de COLEÇÃO.

        Na gaveta imediata estavam os Sufixos de AUMENTO: AO, Zarrao, Az, Aço, etc.

        Na terceira gaveta estavam os Sufixos de DIMINUIÇÃO: lnho, Zinho, Ito, Ebre, Ilho e mais uns trinta.

        Na quarta estavam os Sufixos de AGENTE PROFISSIONAL: Dor, Ante, Ario, Ária, Eiro, Eira, Ado.

        Na quinta, os Sufixos designativos de AÇÃO, QUALIDADE, ESTADO: Ada, Anca, Ção, Ência, Eza, Ice, Io, Ume, Ura, Mento, Vel.

        Na sexta estavam os Sufixos de ABUNDÂNCIA, EXCESSO: Oso, Udo.      

        Na sétima estavam os Sufixos que exprimem ORIGEM, NATURALIDADE:  Ano, Ão, Ense, Ino, Ês.

        Na oitava, os Sufixos designativos de LUGAR: Ario, Ária, Eiro, Douro, Orio.

        Apesar de serem muitos, os meninos fizeram experiência naquela Raiz com quase todos os Sufixos, conseguindo formar as seguintes palavras derivadas de Pedra — Pedraria, Pedrada, Pedral, Pedragem, Pedreiro, Pedrama, Pedrame, Pedrume, Pedregulho (neste caso foi preciso intercalar um E e um G para dar certo), Pedrão, Pedraço, Pedraça, Pedrázio, Pedralha, Pedrorra, Pedrinha, Pedrita, Pedrete, Pedrote, Pedrilha, Pedrica, Pedrisco, Pedracho e Pedreira, ou seja, vinte e quatro ao todo.

        — Vinte e quatro! — exclamou o menino. — Agora estou compreendendo por que há tantas palavras na língua. Pois se somente com esta porqueirinha de Raiz nós pudemos formar vinte e quatro palavras diversas, imagine quantas não formaríamos usando todas as raízes que existem!

        — E isso lidando só com os Sufixos próprios para fazer Substantivos — disse Dona Etimologia aproximando-se —, porque há ainda os Sufixos que servem para fabricar Verbos, como, por exemplo, Gotejar, que é a raiz do Substantivo Gota ligada ao Sufixo Ejar. Com esse Ejar, e ainda com Ear, Izar, Entar, Ecer, Itar, Inhar, Icar e outros, a Emília pode passar dias e dias brincando de transformar em Verbos todos os Substantivos que houver lá no sítio.

        — A senhora dá licença de levar para lá uma coleção de Sufixos? — pediu a boneca.

        — Dou — respondeu a velha —, mas primeiro trate de consertar a palavra Pedra e de juntar do chão todos esses Sufixos espalhados. Quero tudo direitinho como estava.

        Emília recolou a Desinência da palavra Pedra e varreu todos os Sufixos que tinham caído no chão. Depois arrumou-os, muito bem arrumadinhos, nas respectivas gavetas.

        Dona Etimologia ofereceu chá aos meninos e, enquanto eles o tomavam, teve ocasião de explicar que a palavra Chá viera da China, onde significava bebida feita de certa planta, o Thea sinensis; depois a palavra passou a ser usada para designar a infusão de folhas ou raízes de qualquer planta. Que velha sabida! Parecia Dona Benta.

        — Bom, bom, bom — exclamou ela, ao terminar o lanche e sem erguer-se da mesa. — Isso de que falei, e com que vocês estiveram brincando, chama-se a Derivação própria das palavras, porque há também a Derivação imprópria.

        — Já sei! — adivinhou Emília. — A tal Derivação imprópria é a que se faz sem Sufixo, nem Prefixo.

        A boa velha assombrou-se.

        — Como sabe, bonequinha?

          Esperteza — disse Emília, piscando um olho. — Eu muitas vezes arrisco opiniões que dão certo. Tia Nastácia diz que quem não arrisca não petisca...

OBRA INFANTO-JUVENIL DE MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.

Entendendo o conto:

01 – Qual é a função dos Prefixos, e quais exemplos o Verbo Ser dá para ilustrar a formação de novos verbos com sentidos diferentes, a partir do verbo Formar?

      Os Prefixos são os "irmãos dos Sufixos" que servem para fazer enxertos no começo da Raiz (o termo "pre" significa antes). Os exemplos dados para o verbo Formar são: Reformar, Transformar e Conformar.

02 – Qual foi o processo utilizado por Emília e os meninos para criar a palavra Pedraria a partir do substantivo "Pedra"?

      O processo envolveu a Derivação. Primeiro, Pedrinho cortou a Desinência ("a") do substantivo "Pedra", reduzindo-o à sua Raiz (Pedr-). Em seguida, Emília ligou a essa Raiz o Sufixo de coleção -Ária, formando a palavra Pedraria, que significa "muitas pedras".

03 – Além de formarem palavras com o Sufixo -Ária (Pedraria) e -Ada (Pedrada), os meninos descobriram que nem todos os Sufixos funcionam. Que Sufixo formou a palavra sem sentido "Pedreria" e que Sufixo, com a interposição de um E e um G, formou a palavra Pedregulho?

      O Sufixo -Eria formou a palavra sem sentido "Pedreria". O Sufixo -Ulho, com a interposição de um E e um G, formou a palavra Pedregulho.

04 – Ao experimentar com a Raiz Pedr-, Emília consultou as gavetas com Sufixos que serviam para formar substantivos. Cite três das categorias de Sufixos mencionadas.

      As categorias de Sufixos mencionadas incluem: Coleção, Aumento, Diminuição, Agente Profissional, Ação/Qualidade/Estado, Abundância/Excesso, Origem/Naturalidade e Lugar. (Quaisquer três dessas categorias estariam corretas).

05 – No final do conto, Dona Etimologia menciona dois tipos de Derivação. Qual é o nome do processo de Derivação que Emília e os meninos estavam praticando, e qual é o nome do outro tipo de Derivação, que Emília afirma ser feita sem Sufixo nem Prefixo?

      O processo que Emília e os meninos praticavam, usando Prefixos e Sufixos, chama-se Derivação própria das palavras. O outro tipo é a Derivação imprópria.

 

CONTO: NOS DOMÍNIOS DA SINTAXE - EMÍLIA NO PAÍS DA GRAMÁTICA - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: Nos domínios da Sintaxe – Emília no país da gramática

           Monteiro Lobato

        O tráfego naquela cidade não era bem regulado. Nada de flechas indicativas das direções, nem "grilos" poliglotas que guiassem os viajantes. De modo que os meninos, em vez de darem no bairro das Sílabas, para onde pretendiam ir a fim de saber que história era aquela do Ditongo, foram parar num bairro desconhecido.

 

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi2hesU9r1IQUh0poIpilvJv6jilct18YPN6rshoRC3Tj2sgPBuDb_9TWhNzxl-U80ZhYIGUpMli44IyCaq5R7HtkWQ52uqDBuvTfIGnCV-44xcVPB6jhFWjDRBB2ziUxKFfupzbuN2-kWsLNFWXZaDcdt-U-JaRLT6SRZvZ9ojMiPCrBAeKXdEJrxGkc0/s320/que-es-la-lexicologia.jpg 

        — Onde estamos? — quis saber Pedrinho.

        — No bairro da SINTAXE — respondeu Quindim. — Esta cidade divide-se em duas zonas. A primeira é a zona da LEXIOLOGIA, onde todas as palavras vivem soltas, como vocês já viram. A segunda (esta aqui) é a zona da Sintaxe, onde as palavras só saem em família, casadinhas, com filhos e parentaIha. Uma família de palavras chama-se uma ORAÇÃO.

        Os meninos viram que realmente não passeavam por ali palavras soltas. Apareciam sempre aos magotes, formando frases completas.

        Passou um grupo que formava esta frase: O Visconde raptou um ditonguinho. Quindim explicou:

        — Esta frase é uma Oração que leva na frente o chefe da família, ou o SUJEITO; depois dele vem um PREDICADO.

        — Quer dizer — indagou Narizinho — que em cada Oração há sempre um chefe, que é o tal Sujeito, seguido por um Predicado?

        — Sim. Eles são chamados os TERMOS ESSENCIAIS DA ORAÇÃO. O sujeito dirige tudo, faz e desfaz, manda e desmanda. Quando você diz: Tia Nastácia faz bolinhos muito gostosos, o Sujeito é Tia Nastácia — e está claro que sem esse Sujeito, adeus bolinhos! O Sujeito é sempre um Substantivo, ou frase que corresponda a um Substantivo.

        — Alto lá! — exclamou Emília. — Se eu digo: Tu és um paquiderme gramatical, o Sujeito é Tu — e Tu não passa de muito bom Pronome.

        — Sim, Tu é Pronome, mas está na frase representando a mim, rinoceronte, que sou um Substantivo.

        Emília viu que era assim mesmo e calou-se.

        — Muito bem — continuou Quindim, satisfeito de haver pregado um quinau na boneca. — Sujeito é isso. Vamos ver agora quem sabe o que é Predicada.

        Ninguém sabia.

        — Predicado — explicou ele — é o que se diz do Sujeito.

        — Mas o que se diz do Sujeito está no Verbo, lembrou o menino. Na frase: O gato comeu o rato, o que se diz do Sujeito Gato é que Comeu o rato.

        — Pois é isso mesmo — confirmou Quindim. — O Predicado está dentro do Verbo. Depois aparecem os TERMOS INTEGRANTES DA ORAÇÃO, que completam o sentido da oração e são por isso indispensáveis.

        — Já ouvi falar num tal COMPLEMENTO VERBAL — disse o menino.

        — Sim, e é muito importante. Como alguns Verbos não completam sozinhos o sentido da Oração, eles estão sempre exigindo outras palavras para que a Oração tenha sentido. Essas palavras que completam o sentido do Verbo são chamadas Complemento Verbal. Na Oração: O Gilson matou o tico-tico, o Complemento Verbal é Tico-Tico, e nesse caso é chamado OBJETO DIRETO, porque vem diretamente ligado ao Verbo.

        — Já sei — disse Emília —, o Verbo Matar é dos tais Verbos Transitivos, que exigem Complemento.

        — Isso mesmo — respondeu Quindim, admirado com a sabedoria da boneca. — Mas nesta outra Oração: O Visconde gosta de ditongos, o Complemento Verbal, De Ditongos, é chamado OBJETO INDIRETO, porque o Verbo Gostar não se liga a ele diretamente, mas precisa ainda intercalar essa Preposição De. Quem diz Gosta tem de completar a ideia dizendo Do que gosta.

        — E que mais há numa Oração?

        — Há os chamados TERMOS ACESSÓRIOS, que desempenham uma função secundária, limitando o sentido dos substantivos, ou exprimindo alguma circunstância. Nesta Oração: Emília está aprendendo gramática sem o perceber, este Sem O Perceber é um ADJUNTO ADVERBIAL, que exprime uma circunstância — o modo pelo qual Emília está aprendendo. Na Oração: O pica-pau pica o pau no terreiro, o No Terreiro é um ADJUNTO ADVERBIAL que explica em que lugar o pica-pau está picando o pau.

        — E fora esse Adjunto Adverbial, que outro Acessório existe? — perguntou Emília, torcendo o nariz para as palavras difíceis.

        — Há o ADJUNTO ADNOMINAL, que determina ou qualifica o Substantivo que ele complementa. Na expressão: Narizinho arrebitado; este Adjetivo Arrebitado é o Adjunto Adnominal do Sujeito Narizinho.

        Estavam nesse ponto quando ouviram um rebuliço na praça. Era uma senhora de maneiras distintas, com lornhão de cabo de madrepérola, que vinha vindo, seguida de um cortejo de frases.

        — Quem será aquela grande dama? — indagou Narizinho.

        — Oh, é a Senhora Sintaxe, a dona de tudo isto por aqui. Quem governa e dirige a concordância das palavras nas frases é sempre ela. Uma senhora exigentíssima.

        Os meninos foram ao encontro da grande dama, à qual Narizinho fez as necessárias apresentações. Ela gostou muito da carinha da Emília, mas achou que o chifre de Quindim podia ser menos pontudo. Depois de alguns instantes de prosa, disse Dona Sintaxe:

        — Pois é isso, meus meninos. Sou eu quem faz estas palavrinhas comportarem-se como é preciso dentro das Orações. Obrigo-as a terem boas maneiras, a seguirem as regras do bom-tom. Forço o Verbo a concordar sempre com o Sujeito, e o Adjetivo a concordar com o Substantivo. Também não deixo que o Pronome discorde do Substantivo. Se não fossem as minhas exigências, as frases virariam verdadeiras bagunças. Passo a vida fiscalizando a concordância das Senhoras Palavras.

        Nesse momento passou a certa distância, muito envergonhada de si própria, uma frase que dizia assim: Os gatos comeu os ratos. Dona Sintaxe ficou vermelha de cólera e chamou-a com um gesto enérgico.

        — Venha cá! Então não sabe que o Verbo tem de concordar sempre com o Sujeito? Lambona! Vivo dizendo isto...

        — A culpa é do Verbo — fungou o Sujeito. — Eu bem que o avisei...

        Dona Sintaxe tocou dali o Comeu e pôs no lugar um Comeram. —  Agora sim — disse ela sorrindo.

        — Agora a frase está certíssima. Os gatos comeram os ratos. Pode ir, e nunca mais me apareça de Verbo torto, ouviu?

        Dona Sintaxe encontrou mais adiante outra aleijadinha — uma Oração que rezava assim: Nós vai brincar, e consertou-a, pondo o Verbo no plural — Vamos.  

        Depois, voltando-se para Emília, que estava de mãozinhas na cintura gozando a cena, explicou:

        — Minha vida aqui é o que se vê. Tenho de estar fiscalizando todas estas senhoritas para que a cidade não vire salada de batatas. As frases que andam com a concordância na regra tornam-se claras como água da fonte — e a clareza é a maior qualidade que existe. Tenho também de cuidar da COLOCAÇÃO ou da ordem das palavras na frase.

        — Então elas não podem arrumar-se como querem? — perguntou Emília.

        — Absolutamente não. Têm de seguir certas regras para que o pensamento fique bem claro e bem vestido. A minha preocupação é sempre a mesma — clareza. As frases formam-se para exprimir o pensamento dos homens, e a boa ordem das palavras na frase ajuda a expressão do pensamento.

        — A senhora tem toda a razão — concordou a boneca.

        — Lá no sítio de Dona Benta o Substantivo Nastácia também gosta de dar ordem a tudo, porque a ordem facilita a vida, diz ela.

        — Eu uso aqui várias regras — continuou Dona Sintaxe — umas para a ORDEM DIRETA e outras para a ORDEM INVERSA. Na Ordem Direta ponho sempre os Sujeitos antes do Verbo; ponho os Complementos logo depois das palavras que eles complementam; ponho os Adjetivos logo depois dos Substantivos que eles modificam; e ponho as palavrinhas de ligação entre os termos que elas ligam. Fica tudo uma beleza, de tão claro e simples. Mas há também a Ordem Inversa, na qual estas regras não são seguidas.

        — Nesse caso a clareza deve sofrer muito — observou a menina.

        — Há limites. Se o sentido da frase fica bem claro, eu deixo que a frase se afaste da Ordem Direta; mas se o sentido fica obscuro ou duvidoso, ah, não admito! O que quero saber nesta cidade é de clareza e mais clareza, porque a clareza é o sol da língua.

        — E quais as regras para a Ordem Inversa? — perguntou Pedrinho.

        — Uma delas é que o Verbo deve vir antes do Sujeito, se a frase está na forma interrogativa. Eu não deixo dizer, por exemplo: Ele é quem? Obrigo a dizer: Quem é ele? Nas chamadas frases OPTATIVAS e IMPERATIVAS também mando pôr o Sujeito em seguida ao Verbo, como neste exemplo: Vaze tu o que ordeno, que é frase Imperativa. Ou nesta: Seja você muito feliz, que é frase Optativa.

        — E que mais?

        — Os Pronomes Demonstrativos eu os ponho antes dos Substantivos por eles determinados. Digo, pois: Aquele pica-pau, e não pica-pau aquele. Este rinoceronte, e não Rinoceronte este.

        Também os Numerais são escritos antes dos Substantivos por eles determinados. Assim: Três meninos, e não Meninos três.

        — E os Pronomes Oblíquos, que é que a senhora faz com eles?

        — Esses eu mando colocar de três modos diferentes — antes do Verbo, no meio do Verbo e depois do Verbo.

        — No meio do Verbo? — indagou Emília com cara de espanto. — Como? Então a senhora corta o Verbo com uma faca para enfiar o Pronome dentro?

        — Exatamente. Abro o Verbo e ponho o Pronome dentro. Nesta frase: O gato se fartará de ratos, eu posso fazer essa operação cirúrgica. Abro o Verbo Fartará e ponho o Pronome dentro, assim: Fartar-se-á. E a frase fica esta: O gato fartar-se-á de ratos — muito mais elegante que a outra.

        — Tal qual Tia Nastácia costuma fazer com os pimentões. Abre os coitados pelo meio, tira as sementes e enfia dentro uma carne oblíqua.

        Dona Sintaxe aprovou os pimentões de Tia Nastácia. Depois disse:

        — Os gramáticos chamam PRONOME PROCLÍTICO ao que vem antes do Verbo, como em: O menino SE queimou. Chamam PRONOME ENCLÍTICO ao que vem depois do Verbo, como em: O menino queimou-SE. E chamam PRONOME MESOCLÍTICO ao que vem no meio do Verbo, como em: O menino queimar-SE-á.

        — Quanta complicação para dar dor de cabeça nas crianças! — comentou Narizinho. — Eu, se apanhasse um gramático por aqui, atiçava Quindim em cima dele...

        Nisto Emília deu uma vastíssima gargalhada.

        — Que é isso, bonequinha? — perguntou a Sintaxe. — Viu o passarinho verde?

        — Estou me lembrando dos pimentões mesoclíticos que Tia Nastácia faz sem saber... — respondeu a diabinha.

OBRA INFANTO-JUVENIL DE MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.

Entendendo o conto:

01 – Qual é a distinção fundamental entre a zona da Lexiologia e a zona da Sintaxe, de acordo com a explicação de Quindim?

      A zona da Lexiologia (onde os meninos estavam anteriormente) é onde as palavras vivem soltas, individualmente. A zona da Sintaxe é onde as palavras vivem "em família, casadinhas, com filhos e parentaiha", ou seja, onde elas se organizam para formar grupos com sentido completo, chamados Orações.

02 – O que são os Termos Essenciais da Oração? Cite-os e defina a função de cada um, conforme as explicações de Quindim.

      Os Termos Essenciais da Oração são o Sujeito e o Predicado.

      Sujeito: É o chefe da família, que dirige a Oração. É sempre um Substantivo ou uma frase que o represente (como um Pronome).

      Predicado: É "o que se diz do Sujeito". Quindim explica que o Predicado está contido no Verbo.

03 – Explique a diferença entre Objeto Direto e Objeto Indireto, usando os exemplos de Complemento Verbal citados por Quindim no texto.

      O Objeto Direto e o Objeto Indireto são Complementos Verbais que completam o sentido de um Verbo Transitivo:

      Objeto Direto: Liga-se diretamente ao Verbo, sem a necessidade de uma preposição. Exemplo: O Gilson matou o tico-tico.

      Objeto Indireto: Liga-se ao Verbo de forma indireta, exigindo a interposição de uma preposição. Exemplo: O Visconde gosta de ditongos.

04 – O que são os Termos Acessórios da Oração e qual a função do Adjunto Adverbial? Cite dois exemplos de circunstâncias que ele pode exprimir.

      Os Termos Acessórios são aqueles que desempenham uma função secundária, não essencial para a formação básica da Oração, mas que limitam o sentido de substantivos ou exprimem alguma circunstância. O Adjunto Adverbial exprime a circunstância na qual a ação ocorre, como:

      Modo (ex: sem o perceber).

      Lugar (ex: no terreiro).

05 – Qual é o principal papel de Dona Sintaxe na "cidade" e qual é o "mandamento" mais importante que ela exige das palavras, ilustrado pela correção da frase "Os gatos comeu os ratos"?

      O principal papel de Dona Sintaxe é governar e dirigir a concordância das palavras nas frases, obrigando-as a seguir as regras do bom-tom. O mandamento mais importante que ela exige é a Concordância Verbal, forçando o Verbo a concordar sempre com o Sujeito. A frase "Os gatos comeu os ratos" estava errada (aleijadinha) e foi corrigida para "Os gatos comeram os ratos".

06 – Segundo Dona Sintaxe, qual é a "maior qualidade que existe" em uma frase, e de que forma a colocação das palavras ajuda a atingir essa qualidade?

      A maior qualidade de uma frase é a clareza ("a clareza é o sol da língua"). A Colocação (a ordem das palavras na frase) ajuda a atingir essa clareza porque, ao seguir certas regras, a frase expressa o pensamento humano de forma "bem clara e bem vestida", evitando que a cidade vire "salada de batatas".

07 – Quais são as regras básicas para a Ordem Direta da oração, conforme explicadas por Dona Sintaxe aos meninos?

      Na Ordem Direta, Dona Sintaxe estabelece que:

      Os Sujeitos vêm sempre antes do Verbo.

      Os Complementos vêm logo depois das palavras que eles complementam.

      Os Adjetivos vêm logo depois dos Substantivos que eles modificam.

      As palavrinhas de ligação (preposições, etc.) ficam entre os termos que ligam.

08 – Em quais formas de frase (tipos de oração) a Ordem Inversa é obrigatoriamente utilizada, de acordo com o texto? Cite um exemplo para cada forma.

      A Ordem Inversa é obrigatória nos seguintes casos:

      Frase Interrogativa: O Verbo deve vir antes do Sujeito. Exemplo: Quem é ele? (em vez de Ele é quem?).

      Frase Optativa e Imperativa: O Sujeito deve vir em seguida ao Verbo. Exemplos: Vaze tu o que ordeno (Imperativa) ou Seja você muito feliz (Optativa).

09 – Explique o que é a Mesóclise (Pronome Mesoclítico) e a que tipo de analogia inusitada Emília compara essa operação linguística.

      A Mesóclise ocorre quando o pronome oblíquo átono (Pronome Mesoclítico) é colocado no meio do Verbo. Isso exige que o Verbo seja "aberto" (cortado) para inserir o pronome. Exemplo: Fartar-se-á. Emília compara essa "operação cirúrgica" do Verbo à forma como Tia Nastácia faz pimentões, abrindo-os pelo meio, tirando as sementes e enfiando 'uma carne oblíqua' (o recheio) dentro.

10 – Qual foi o destino final do Visconde de Sabugosa, revelado pela palavra que os meninos viram na rua? O que ele estava fazendo?

      O Visconde de Sabugosa, que havia se ausentado, estava raptando ou capturando um Ditongo (o 'ditonguinho'). A primeira frase que os meninos veem é "O Visconde raptou um ditonguinho". Eles confirmam o rapto ao perguntar a uma palavra e ao guarda, que o viram levando o Ditongo 'esperneando' debaixo do capote, e antes disso, ele havia ido ao cercado para tomar notas sobre a palavra mais comprida, Anticonstitucionalissimamente.

 

 

CONTO: AS FIGURAS DE SINTAXE - EMÍLIA NO PAÍS DA GRAMÁTICA - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: As Figuras de Sintaxe – Emília no país da gramática

           Monteiro Lobato

        Durante todo o tempo da conversa sintática, Pedrinho e Narizinho estiveram a observar, disfarçadamente, várias personagens da comitiva da grande dama. Ela, afinal, percebeu o joguinho e contou serem as tais FIGURAS DE SINTAXE.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgjUs3skVoCbkQ8KLI4L2PWb44kZaZy4GRNMVG4p7LIB8fX0bfgxkMoYBJ0K8kO_pgfv7fLMHjNjvZz_cGk2jv8uKvCXvg6pJlIDpUNsVRD7Hw4UIiFgI_VB2dAk2OqwEChadAgf0iQXWxIoHF8y6IrCKtvzGwmEsHr5_2a_L0pxLydLv1QqOAn105MGxQ/s320/noticiasconcursos.com.br-conheca-as-figuras-da-sintaxe-e-saiba-diferencia-las-figuras-de-sintaxe.png


        — Figuras de Sintaxe? — repetiu Narizinho sem compreender. — Que espécie de figuras são essas?

        A grande dama explicou:

        — Eu tenho sempre comigo umas tantas Figuras que me auxiliam no trabalho de trazer bem arrumadinhas as Orações. Vou apresentá-las a vocês.

        E dirigindo-se às Figuras:

        — Senhoras Figuras de Sintaxe, permiti-me que vos apresente à grande Emília, Marquesa de Rabicó, à menina do Narizinho Arrebitado e ao Senhor Pedrinho. E ali — continuou, apontando para o rinoceronte —, um grande filólogo da Uganda, que se acha de passeio pelas terras da Gramática.

        As Figuras fizeram uma graciosa reverência. Em seguida a grande dama passou a explicar as funções de cada uma.

        — Este aqui — disse, indicando um jeitoso figurão, é o Senhor PLEONASMO, cujo serviço consiste em reforçar o que a gente diz. Quando uma pessoa declara que viu com os seus próprios olhos, está usando um Pleonasmo, porque se dissesse apenas que viu já a ideia estaria completa. Está claro que ninguém pode ver senão com os seus próprios olhos; mas falando dessa maneira pleonástica fica mais forte a expressão. O Pleonasmo tem de ser discreto e exato; se repete, ou comete uma redundância sem que a força da expressão aumente, torna-se defeito. Tudo quanto é inútil constitui defeito.

        Pleonasmo ofereceu os seus préstimos aos meninos e retirou-se, depois duma elegante curvatura.

        — Esta aqui — continuou Dona Sintaxe indicando outra. Figura — é a minha amiga ELIPSE, que suprime da frase tudo quanto pode ser facilmente subentendido. Nesta Oração: Gosto de uvas e você, de laranjas, a Senhora Elipse cortou duas palavras sem que o sentido perdesse alguma coisa. Sem esse corte a frase ficaria assim: (Eu) gosto de uvas e você (gosta) de laranjas, mais comprida e menos elegante.

        A Senhora Elipse deu um beijinho na boneca e retirou-se.

        — E esta aqui — prosseguiu Dona Sintaxe — é a Senhora ANÁSTROFE, que inverte os termos da frase. Quando uma pessoa diz: Acabou-se a festa, em vez de dizer: A festa acabou-se, está se servindo do bom gosto da minha amiga Anástrofe.

        A gentil Anástrofe quis também dar um beijo na boneca; mas Emília fugiu com o rosto, pensando lá na sua cabecinha: "Um beijo desta diaba é capaz de inverter os 'termos da minha cara', pondo a boca em cima do nariz, ou coisa parecida".

        — Pois é assim, meus meninos — concluiu Dona Sintaxe depois que a última Figura se retirou. — Estas amigas valem por ajudantes preciosos. Graças ao seu concurso consigo dar muita graça e elegância às frases.

        — A tal Senhora Anástrofe não será por acaso irmã duma tal Catástrofe? — perguntou Emília, de ruguinha na testa.

        Dona Sintaxe riu-se da lembrança e não achou fora de propósito a pergunta.

        — Perfeitamente — respondeu. — São duas palavras de formação grega bastante aparentadas. Anástrofe é formada de Ana (entre) e Strepho (eu viro). E Catástrofe é formada de Kata (debaixo) e o mesmo Strepho (eu viro)... São, pois, irmãs por parte do pai, que é o Verbo Strepho. Uma vira entre. Outra vira de pernas para o ar. Mas ambas viram...

        A boa dama ainda conversou com os meninos por longo tempo, explicando os muitos trabalhos que tinha na língua para que as frases andassem corretamente vestidas.

        — Quer dizer que a senhora é uma espécie de costureira — lembrou Narizinho.

        Dona Sintaxe achou que não.

        — Costureira propriamente não. Meu papel na língua é de arrumadeira.

        — E quanto ganha por mês? — indagou Emília.

        — Nada, bonequinha. Trabalho de graça — trabalho por amor à limpeza e ao bom arranjo deste meu povinho, que são as frases. Mas vamos agora ver outra coisa.

        Quero que vocês conheçam os Vícios de Linguagem, que eu conservo aqui por perto, presos em gaiolas.

OBRA INFANTO-JUVENIL DE MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.

Entendendo o conto:

01 – Quem são as "Figuras de Sintaxe", qual é a função delas na Oração, e por que Dona Sintaxe as utiliza?

      As Figuras de Sintaxe são personagens que auxiliam Dona Sintaxe no trabalho de trazer as Orações bem arrumadinhas. Elas são utilizadas para conferir graça e elegância às frases. Sua função principal é permitir desvios sutis ou reforços na estrutura gramatical padrão, sem prejudicar a clareza da mensagem.

02 – Defina Pleonasmo e explique quando essa Figura de Sintaxe é considerada um auxílio para a expressão e quando se torna um defeito. Cite o exemplo dado no texto.

      O Pleonasmo é a Figura de Sintaxe cujo serviço consiste em reforçar o que se diz por meio da repetição de uma ideia já expressa ou implícita.

      É um auxílio quando a redundância aumenta a força da expressão e torna a comunicação mais enfática (exemplo: viu com os seus próprios olhos).

      É um defeito quando a repetição é inútil ou constitui uma redundância que não acrescenta força à expressão, tornando-se apenas um "vício".

03 – Qual é o papel da Elipse? Exemplifique como essa figura atua para tornar a frase "mais curta e menos elegante" sem perder o sentido.

      A Elipse é a Figura de Sintaxe que suprime (corta) palavras da frase que podem ser facilmente subentendidas (deduzidas) pelo contexto. O exemplo dado é: "Gosto de uvas e você, de laranjas". Nessa oração, a Elipse cortou as palavras "Eu" e "gosta" que seriam necessárias para a estrutura completa: "(Eu) gosto de uvas e você (gosta) de laranjas".

04 – O que faz a Anástrofe e como Emília reage à sua presença? Qual é a relação etimológica que o conto estabelece entre Anástrofe e Catástrofe?

      A Anástrofe é a Figura de Sintaxe que inverte os termos da frase, alterando a ordem direta, como em "Acabou-se a festa" em vez de "A festa acabou-se". Emília reage à Anástrofe com desconfiança e medo, fugindo do beijo da Figura por achar que um beijo dessa "diaba" seria capaz de "inverter os termos da minha cara". O conto explica que Anástrofe (Ana, que significa 'entre', + Strepho, que significa 'eu viro') e Catástrofe (Kata, que significa 'debaixo', + Strepho) são irmãs por parte do pai, o Verbo Strepho, pois ambas se referem a algum tipo de inversão ou virada.

05 – De que forma Dona Sintaxe define seu papel no domínio da língua e como ela se difere da função de uma "costureira", conforme sugerido por Narizinho?

      Dona Sintaxe define seu papel na língua como de uma arrumadeira. Embora Narizinho a compare a uma costureira (alguém que veste as frases), Dona Sintaxe discorda sutilmente. Sua função não é apenas vestir, mas sim arrumar, fiscalizar e dar ordem às palavras e frases. Ela trabalha "por amor à limpeza e ao bom arranjo" da sua população (as frases), garantindo que a clareza seja mantida, através do controle da concordância e da colocação.

 

 

CONTO: OS VÍCIOS DE LINGUAGEM - EMÍLIA NO PAÍS DA GRAMÁTICA - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: Os Vícios de Linguagem – Emília no país da gramática

           Monteiro Lobato     

        Logo depois Dona Sintaxe disse:

        — Vou agora mostrar a vocês os vícios DE LINGUAGEM.

        — Quê?! Andam soltos pela cidade, esses monstros?

        — Não, menina. Os Vícios, eu os conservo em jaulas, como feras perigosas. Vamos vê-los.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhO3QAqlzXIuYw3cgYqeAz1FdvYus_BQq7D69wY6J_Zr37qDgNtGr6asJV3SepPOsWdBOT-aKoJQQD6tcte2bQiJJGy4iIIr0VP59EAZQqJVWc2SptNVmWGJ2wWzduZgtFJvFyKBhhxkbmlJpexe2fbL1JIp4oivxYveklycOv-sAhrCHOuVKJw9UAXGDI/s1600/VICIO.jpg


        A grande dama tomou a frente e os meninos a acompanharam até a uma cadeia com grades nas janelas e toda dividida em cubículos, também gradeados. Dentro desses cubículos estavam O BARBARISMO, O SOLECISMO, a ANFIBOLOGIA, a OBSCURIDADE, O CACÓFATO, O ECO, O HIATO, a COLISÃO, O ARCAÍSMO, O NEOLOGISMO e O PROVINCIANISMO.

        Pedrinho notou que havia ainda um cubículo sem nenhuma fera dentro.

        — E o Vício aqui desta gaiola?                 

        — Esse já se reabilitou e anda solto pela cidade nova. Só não tem licença de aparecer na cidade velha.                       

        — Quem era ele?

        — O BRASILEIRISMO...

        Emília espiou para dentro do primeiro cubículo, onde um monstro cabeludo estava a roer as unhas. Era o BARBARISMO.

        — Que mal faz ao mundo este "cara-de-coruja"? — perguntou ela. 

        — Gosta de fazer as pessoas errarem estupidamente na pronúncia e no modo de escrever as palavras. Sempre que você ouvir alguém dizer poribir em vez de proibir, sastifeito em vez de satisfeito, púdico em vez de pudico, percurar ou percisa em vez de procurar ou precisa, saiba que é por causa deste cretino. Emília passou ao cubículo imediato, onde havia outro "cara-de-coruja" ainda mais feio.

        — E este? — perguntou.

        — Este é o tal SOLECISMO, outro idiota que faz muito mal à língua. Quando uma pessoa diz: Haviam muitas moças na festa, em vez de Havia muitas moças, está cometendo um Solecismo. Fui na cidade em vez de Fui à cidade, Vi ele na rua, em vez de Vi-o na rua, Não vá sem eu, em vez de Não vá sem mim, são outras tantas "belezas" que saem da cachola deste imbecil.

        Emília botou-lhe a língua e passou ao terceiro cubículo. Viu lá dentro um vulto de mulher com duas caras.

        — E esta "bicarada"? — perguntou.

        — Esta é a ANFIBOLOGIA, que faz muita gente dizer frases de sentido duplo, ou duvidoso, como: Ele matou-a em sua casa. Em casa de quem, dele ou dela? Quem ouve fica na dúvida, porque a matança tanto pode ter sido na casa do matador como da matada.

        Emília passou a espiar o quarto cubículo, onde estava presa uma negra muito feia, preta que nem carvão.

        — E esta pretura? — perguntou.

        — Esta é a OBSCURIDADE, que faz muita gente dizer frases sem nenhuma clareza, dessas que deixam quem as ouve na mesma.

        Emília passou ao quimo cubículo, onde viu um sujeito sujo e de cara cínica.

        — E este porcalhão?

        — Este é o CACÓFATO, que faz muita gente ligar palavras de modo a formar outras de sentido feio, como aquele sujeito que ouviu no teatro uma grande cantora e foi dizer a um amigo: Ela trina que nem um sabiá...

        Emília tapou o nariz e dirigiu-se ao sexto cubículo, onde estava um maluco muito barulhento.

        — E este, com cara de cachorro? — indagou.

        — Este é o ECO, que faz muita gente formar frases cheias de latidos, ou com desagradável repetição de sons. Quem diz: O pão de sabão caiu no chão late três vezes numa só frase, tudo por causa desta bisca.

        Emília passou ao sétimo cubículo, onde havia um freguês com cara de gago.

        — E este pandorga? — perguntou.

        — Este é o HIATO, que faz muita gente formar frases com acentuação incômoda para os ouvidos. Quem diz: A aula é lá fora está sendo vítima deste Senhor Hiato.

        Emília passou ao oitavo cubículo, onde estava presa uma mulher, toda requebrada.

        — E esta ciciosa? — perguntou.

        — Esta é a COLISÃO, que faz muita gente dizer frases cheias de consonâncias desagradáveis. Zumbindo as asas azuis é uma frase com o vício da Colisão.

        Emília passou ao nono cubículo, onde estava um velho de cabelos brancos, todo coberto de teias de aranha.

        — Este Matusalém?

        — Este é o ARCAÍSMO, que faz muita gente pedante usar palavras que já morreram há muito tempo e que, portanto, ninguém mais entende.

        — Já estive no bairro das palavras Arcaicas e travei conhecimento com algumas — observou Narizinho. — Mas por que está preso o pobre velho? Ele não tem culpa de haver palavras arcaicas.

        — Mas tem culpa de botar essas velhas corocas nas frases modernas. Para que não faça isso é que está encarcerado.

        Emília passou ao décimo cubículo, onde estava preso um moço muito pernóstico.

        — E este aqui, tão chique? — perguntou.

        — Este é o NEOLOGISMO. Sua mania é fazer as pessoas usarem expressões novas demais, e que pouca gente entende.

        Emília, que era grande amiga de Neologismos, protestou.

        — Está aí uma coisa com a qual não concordo. Se numa língua não houver Neologismos, essa língua não aumenta. Assim como há sempre crianças novas no mundo, para que a humanidade não se acabe, também é preciso que haja na língua uma contínua entrada de Neologismos. Se as palavras envelhecem e morrem, como já vimos, e se a senhora impede a entrada de palavras novas, a língua acaba acabando. Não! Isso não está direito e vou soltar este elegantíssimo Vício, já e já...

        — Não mexa, Emília! — gritou Narizinho. — Não mexa na Língua, que vovó fica danada...

        — Mexo e remexo! — replicou a boneca batendo o pezinho, e foi e abriu a porta e soltou o Neologismo, dizendo: — Vá passear entre os vivos e forme quantas palavras novas quiser. E se alguém tentar prendê-lo, grite por mim, que mandarei o meu rinoceronte em seu socorro. Quero ver quem pode com o Quindim...

        Dona Sintaxe ficou um tanto passada com aquele rompante da Emília, mas nada disse. Quindim estava perto, de chifre pronto para entrar em cena ao menor sinal da boneca...

        — Como está ficando despótica — murmurou a menina para Pedrinho. — Ainda acaba fazendo uma revolução e virando ditadora...

        — É de tanta ganja que vocês lhe dão — observou o menino com uma ponta de inveja.

        Emília encaminhou-se para o último cubículo, onde estava preso um pobre homem da roça, a fumar o seu cigarrão de palha.

        — E este pai da vida que aqui está de cócoras? — perguntou ela.

        — Este é o PROVINCIANISMO, que faz muita gente usar termos só conhecidos em certas partes do país, ou falar como só se fala em certos lugares. Quem diz naviu, menino, mecê, nhô, etc. está cometendo Provincianismos.

        Emília não achou que fosse caso de conservar na cadeia o pobre matuto. Alegou que ele também estava trabalhando na evolução da língua e soltou-o.

        — Vá passear, Seu Jeca. Muita coisa que hoje esta senhora condena vai ser lei um dia. Foi você quem inventou o Você em vez de Tu e só isso quanto não vale? Estamos livres da complicação antiga do Tuturututu. Mas não se meta a exagerar, senão volta para cá outra vez, está ouvindo?

        O Provincianismo agarrou a trouxinha, o pito, o fumo e as palhas e, limpando o nariz com as costas da mão, lá se foi, fungando. Tão bobo, o coitado, que nem teve a ideia de agradecer à sua libertadora.

        — Não há mais nenhum? — perguntou Emília logo que o Jeca se afastou.

        — Felizmente, não — respondeu Dona Sintaxe. — Estes já bastam para me deixar tonta.

        Terminada a visita aos Vícios de Linguagem, os meninos ficaram sem saber para onde ir.

        — Esperem! íamo-nos esquecendo do Visconde. Temos de continuar na "campeação" dele — disse Emília, mordendo o lábio e olhando firme para a Sintaxe, a ver que cara ela faria diante daquela "campeação".

        — Isso depois — opinou Pedrinho. — Estou com vontade agora de ver como as Orações se formam.

        — Pois vamos a isso — concordou Dona Sintaxe. — Há aqui perto um jardim muito frequentado pelas Senhoras Orações.

        — Quem são essas damas?

        — São frases que formam sentido, ou que dizem uma coisa que a gente entende.

        — E a frase que não forma sentido? — perguntou Emília.

        — Isso não é nada. É bobagem. . . — respondeu Dona Sintaxe, afastando-se dali. 

OBRA INFANTO-JUVENIL DE MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.

Entendendo o conto:  

01 – Qual é o Vício de Linguagem que estava com o cubículo vazio, e por que Dona Sintaxe permitia que ele andasse livremente na "cidade nova"?

      O Vício que estava com o cubículo vazio era o Brasileirismo. Dona Sintaxe permitia que ele andasse livremente na "cidade nova" (o Brasil) porque ele já havia se reabilitado. Isso sugere uma aceitação da variação e evolução da língua local em contraste com a rigidez da "cidade velha" (Portugal).

02 – Explique a diferença entre os Vícios de Linguagem Barbarismo e Solecismo, citando um erro comum de cada um conforme o texto.

      O Barbarismo é o vício que faz as pessoas errarem na pronúncia ou na escrita das palavras (erro de forma/morfologia). Exemplo: dizer "poribir" em vez de proibir.

      O Solecismo é o vício que faz as pessoas errarem na estrutura e concordância da frase (erro de sintaxe). Exemplo: dizer "Haviam muitas moças" em vez de Havia muitas moças.

03 – O que são Anfibologia e Obscuridade? Qual é o problema principal que ambos causam na comunicação?

      A Anfibologia é o vício que faz as frases terem sentido duplo ou duvidoso, gerando confusão sobre o agente ou o lugar da ação (Exemplo: "Ele matou-a em sua casa").

      A Obscuridade é o vício que torna as frases sem nenhuma clareza, deixando o ouvinte sem entender nada (representada pela "negra muito feia, preta que nem carvão"). Ambos causam o problema principal da falta de clareza, indo contra o maior mandamento de Dona Sintaxe.

04 – Defina os vícios de sonoridade Cacófato e Eco. Cite o exemplo de erro para o Cacófato que faz Emília "tapar o nariz".

      O Cacófato é o vício que resulta da ligação de palavras de modo a formar uma terceira palavra com sentido feio ou ridículo. O exemplo que faz Emília se envergonhar é a formação da palavra "trina que nem um sabiá" (caco de trinakenema).

      O Eco é o vício que causa a repetição desagradável de sons ou terminações semelhantes (rima involuntária), gerando frases com "latidos". Exemplo: "O pão de sabão caiu no chão".

05 – Emília liberta o Neologismo da cadeia. Qual é o argumento principal que ela usa para justificar que as palavras novas são essenciais e não um vício a ser aprisionado?

      Emília defende que o Neologismo não é um vício, mas sim uma necessidade para a evolução da língua. Ela argumenta que, como as palavras antigas envelhecem e morrem, é preciso haver uma "contínua entrada de Neologismos" para que a língua possa aumentar e não "acabar acabando", comparando-os às crianças que garantem a continuidade da humanidade.

06 – Por que o Arcaísmo é considerado um Vício de Linguagem, mesmo que se refira a palavras que já existiram legitimamente?

      O Arcaísmo é considerado um Vício porque faz as pessoas pedantes usarem palavras que já morreram há muito tempo e que ninguém mais entende. O problema não é a existência de palavras arcaicas, mas sim o ato de "botar essas velhas corocas nas frases modernas", prejudicando a clareza da comunicação.

07 – Emília também liberta o Provincianismo (o "Seu Jeca") e o aconselha. Qual é o grande feito do Provincianismo que Emília usa para justificar sua libertação e qual é o conselho que ela lhe dá?

      Emília justifica a libertação do Provincianismo alegando que ele também está trabalhando na evolução da língua, e seu grande feito é ter inventado o "Você" em vez do "Tu", livrando a língua da "complicação antiga do Tuturututu". O conselho que ela lhe dá é para não exagerar, ou seja, não abusar dos regionalismos que só são conhecidos em certos lugares, sob pena de voltar para a prisão.