quinta-feira, 3 de julho de 2025

CONTO: A MÃE PERFEITA - LUCINHA ARAÚJO - COM GABARITO

 Conto: A mãe perfeita

           Lucinha Araújo

Mamãe, tá certo, eu me dei mal na escola [...]

Pode parar o jogo

Você é a dona da bola [...]

        Talvez o auge de minha obsessão por fazer de meu filho um gênio da raça tenha sido a ideia fixa que me levou a procurar o Colégio Santo Inácio, de padres jesuítas, em I963, quando Cazuza tinha cinco anos. Se aquela era a melhor escola do Rio de Janeiro, era ali que meu filho iria estudar. Mas para que meu sonho se realizasse era preciso que ele passasse no exame de admissão, cuja exigência mínima era a de que o novo aluno soubesse ler e escrever. Nos preparamos para este exame como se ele fosse fatal para que eu continuasse viva. Estava tão nervosa no dia da prova que protagonizei uma cena inesquecível. De pé, debaixo da janela da sala onde ele fazia o exame, anotei uma a uma as vinte palavras do ditado nas costas de um envelope, que guardo comigo até hoje. No táxi, de volta para casa, perguntei a Cazuza como havia se saído:

        -- Não sei, mamãe!!!

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi1AbJidUeV4hZuCqeR8TSAQSG0zOsKB8JTMbzRbQllRdBnIQe7vlmvTRRchjLp1Fd5byebvWyzV5Qr18_jQJmjHn5IoNVUJ6CHt17W7m5nPCoLv7hRArtSZp-jyK4PNmsGMz03NDMJNq344lrdpIXKjT2V7u-SJ5BmG0aKmScb5leJ0YtXnQKBDdXzjBA/s1600/images.png


        Tirei então o envelope da bolsa e fiz com que ele escrevesse tudo novamente. Cazuza só errou uma palavra: escreveu verdejante com a letra "g". Fiquei bastante apreensiva até o dia em que o resultado foi divulgado. Cazuza havia conseguido! Entre mais de mil candidatos, classificou-se em quinquagésimo lugar, com nota 9,5. Qualquer mãe ficaria orgulhosa, mas não eu. Um 9,5 era pouco para mim, uma ex-estudante de colégio de freiras cujo rendimento escolar havia sido exemplar. Não podia imaginar quanto meu filho ainda iria se rebelar no futuro contra a rigidez e os métodos do Santo Inácio.

        A nossa rotina, a partir de então, era controlada. Cazuza chegava da escola, eu pegava o diário de classe na mala e organizava a sua vida de acordo com os deveres. No fim da tarde, enquanto não terminasse os deveres escritos, não podia sair para brincar. Na manhã seguinte, ele se dedicava às lições orais. Depois, eu lhe tomava os deveres. E como eu era chata nesse papel!!! João, embora ausente, não concordava com meus métodos, mesmo porque, para ele, ser um bom aluno na escola não significava muita coisa. Citava exemplos de homens brilhantes que nunca haviam conseguido um dez no boletim. Cazuza corria para ele nessa fase para se proteger de mim.

        Felizmente meu filho encontrou duas grandes válvulas de escape para suportar meu temperamento autoritário enquanto era criança. Suas duas avós. Minha mãe, Alice, representava para meu filho a liberdade desfrutada longe de casa. Tudo o que era proibido conosco era permitido na casa de Vovó Lice. Para acompanhar meu marido em seus incontáveis trabalhos noturnos, em sua trajetória como homem da indústria fonográfica, muitas vezes deixei Cazuza com minha mãe. A seu lado, Cazuza conheceu o reino dos céus. Tomava banho se quisesse, comia todas as guloseimas desejadas e, pior ainda, assistia televisão, hábito proibido por João. Às vezes, na volta para casa, ele comentava o filme da Sessão Coruja, o que deixava o pai muito bravo. Mas a paixão de Cazuza por minha mãe não tinha limites. Primeiro neto homem numa família de mulheres, Cazuza era o preferido mesmo e se orgulhava disso. Adorava ouvir as histórias que minha mãe lhe contava e, principalmente, retribuía a compreensão com que ela o tratava em todas as circunstâncias. Depois que se tornou famoso, Cazuza confessou numa entrevista que era com Vovó Lice que discutia as suas poesias, as rimas dos versos que nunca me mostrou. Mesmo assim, muitas vezes, o temperamento brincalhão e quase mórbido dessa fase de Cazuza não poupava nem mesmo a querida Vovó Lice. Uma de suas brincadeiras assustadoras preferidas era simular um desmaio no banheiro. Para dramatizar, ele colava aquele fiozinho vermelho que encapava os maços de cigarro grudado no canto da boca, para simular sangue escorrendo. Ele gritava, minha mãe corria para o banheiro e levava um susto imenso. Invariavelmente, ela apelava aos santos:

        -- Valha-me minha Santa Rita!

        Cazuza gargalhava. Ele repetia a encenação com alguma frequência e Vovó Lice não aprendia. Sempre se assustava.

        A segunda válvula de escape de Cazuza era dona Maria, sua avó paterna, em cuja casa de Vassouras ele passou as férias dos três aos quinze anos. Também ali era tratado como um príncipe, cercado de todos os mimos que uma avó sabe fazer, incluindo tirar as sementes de uva por uva para que ele não engasgasse, além de outras mordomias. Muitas vezes eu e João voltávamos tarde para casa depois de um baile de carnaval, ou outra festa, e Cazuza acordava antes do que nós. Gritava lá de sua cama:

        -- Vovó Maria, meu amor, vem me buscar!

        E os dois passavam toda a manhã se divertindo juntos. Mas nem ela escapava de seu apurado senso de humor. Quando falava ao telefone com Vovó Maria e ela começava a se queixar e reclamar de dormência nas mãos, Cazuza também não se continha:

        -- É, vovó, mas também, o que você quer? Você já está bem velhinha e não quer ter nada? Faz o seguinte vovó: corta as mãos!!!

        Em 2 de maio de 1997, Vovó Maria completou 99 anos.

        A paixão de Cazuza pelos animais começou com um periquito perdido que apareceu no nosso quarto-e-sala. O apartamento térreo tinha um pequeno quintal ao ar livre e ali ele colecionava seus animaizinhos de estimação. Tempos depois comprei uma fêmea e um viveiro e os periquitos se multiplicaram em 33 e acabaram todos na casa de minha mãe em Vassouras, para onde foram também um coelho e um aquário bastante habitado. Aos cinco anos, ganhou seu primeiro cachorro, uma cadela que batizou de Sunny. Tinha o pelo dourado que brilhava ao sol, mas seis meses depois foi atropelada, para total desespero de Cazuza. Enquanto o veterinário tentava, em vão, salvá-la, Cazuza, bastante nervoso, rasgou com as mãos as pernas da bermuda jeans que estava usando. Como presente de uma vizinha, a jornalista Sandra Moreyra, na época uma menina, ganhou outra cadela logo depois. Infelizmente, ela também ficou doente e morreu em uma semana.

        Mas meu filho não desistiu. Depois de um fim de semana em Friburgo, com tia Maryse, Paulinho e Márcia Muller, ele voltou para casa com outra cadela que, embora preta e feia, cismou em também lhe chamar de Sunny. A Sunny ll, que sobreviveu e ficou oito anos em casa – dos treze que viveu –, até mudarmos para o Leblon, quando o seu destino foi o mesmo dos outros – a casa de Vovó Lice em Vassouras. Cazuza escolheu o mais bonito filhote da última ninhada de Sunny ll. Seu nome era Wanderley Cardoso, em homenagem aos olhos verdes, parecidos aos do cantor. Cazuza carregava Wanderley para toda parte, principalmente à praia, onde meu filho ficou conhecido como o dono de Wanderley, que se parecia a um rusk siberiano, embora fosse um vira-lata de primeira. Certo dia, num carnaval, Cazuza saiu com Wanderley para brincar na Banda de Ipanema. Lá pelas oito da noite, meu filho chegou em casa sem o cachorro. Mas cadê o Wanderley:

        -- Não sei, mãe, ele sumiu. Procurei, procurei e não acho.

        -- Cazuza, você é um irresponsável!

        Zeca Neves guardou na memória outra história de Wanderley na praia do Arpoador. Cazuza, com dentista marcado para as três da tarde, ficou furioso quando Wanderley se engatou com uma cadela e não havia meio de separá-los. Às duas horas, cansado e apressado, gritava com seu cão:

        -- Logo agora você faz isso comigo!!!

        Nossa cozinheira, Cida, que era louca pelo cachorro, já organizara uma expedição de resgate quando o programa Fantástico começou a exibir uma reportagem sobre a Banda. E lá estava ele, todo fantasiado, trançando entre as pernas dos foliões. Embora a matéria tenha sido gravada de tarde, saímos, Cida e eu, à procura de Wanderley, seguindo o itinerário da Banda. Finalmente o encontramos na Praça da Paz, todo fantasiado, andando de um lado para o outro, à procura de seu dono. Cazuza nem deu bola. Nos seus dois últimos anos de vida, meu filho ganhou outro cachorro, o Mané, um weimaraner. Um cão sem a menor identidade. Conviveu muito pouco com seu dono.

        Cazuza viveu outras várias fases de interesses quando menino. Em sua prodigiosa imaginação para criar histórias, ele preencheu vários cadernos com suas histórias: criava famílias inteiras e um destino para cada um de seus personagens – desquites, traições, mortes, bigamias. Quase ao mesmo tempo surgiu o interesse por geografia. Desde os sete anos, Cazuza saciava a curiosidade, consultando com sofreguidão a Enciclopédia Barsa. Alguns amigos de João do futebol se reuniam todos os sábados depois do jogo em São Conrado, só pelo prazer de sabatiná-lo.

        -- Cazuza, qual a capital do Zaire? E a renda per capita?

        Ele acertava todas. Impressionante.

        Cazuza acabou realmente se tornando um expert no assunto, a ponto de seus colegas de escola – e outros amigos – ligarem lá para casa para tirar suas dúvidas sobre geografia, populações, capitais, culturas dos países. Ele deitava-se no chão de seu quarto com o mapa-múndi aberto e se concentrava inteiramente. Passava grande parte de seu tempo trancado no quarto, no seu mundinho particular. João, nessa fase, brincava com ele:

        -- Você vai ser o quê? Professor de geografia? Isso não dá dinheiro.

        Mais tarde, costumava ler romances com o atlas ao lado, para entender direitinho onde se passava a ti ama. Ele devia ter uns oito anos quando recebemos em casa, para um jantar quase cerimonioso, o venezuelano Manoel Guevara, casado com uma prima minha e que naquele momento exercia o cargo de ministro dos Transportes em seu país. O apartamento estava perfeito, e nós três, muito bem vestidos. Cazuza usou um de seus modelos da Bebê Conforto, a última palavra em roupas infantis no Rio de Janeiro dos anos 60. Antes da chegada das visitas, preocupado com a irreverência latente do filho, João chamou Cazuza num canto com recomendações:

        -- Olha, meu filho, eu sei que você não tem a menor cerimônia com as pessoas. Mas hoje, por favor, não faça perguntas, não diga bobagens.

        Durante o jantar, duas ou três, vezes, João cutucou Cazuza por debaixo da mesa. Como se não estivesse entendendo nada e exibindo um ar inocente, denunciou João:

        -- O que foi, pai?

        Até que o ministro começou a contar sobre um túnel que havia construído em sua terra, um túnel de trem subterrâneo. E afirmava que aquele túnel que tinha uma determinada extensão era o maior da América Latina. Cazuza retrucou no ato:

        -- Não é, não!

        Levantou da mesa e saiu correndo para o quarto. Quando voltou, trazia um livro nas mãos provando não só que a extensão do túnel alardeada pelo ministro estava errada como também que aquele não era, definitivamente, o maior da América Latina. O ministro ficou encantado. No dia seguinte mandou de presente para Cazuza um sofisticado atlas inglês.

        Tempos depois, Cazuza se apaixonou por arquitetura e urbanismo. Criava cidades com madeiras e caixas de fósforos e também todo o seu funcionamento. Na casa de minha mãe em Vassouras – que nessa época havia se mudado definitivamente com papai, já aposentado, para a cidade –, Cazuza passava horas no quintal armando suas metrópoles imaginárias, todas elas com população definida, além de renda per capita e seu cotidiano. Sempre pensei que meu filho acabaria se tornando um engenheiro, um arquiteto, um urbanista, tal a dedicação e empenho com que mergulhava compenetrado nesses assuntos. Apesar disso, o rendimento escolar de Cazuza era péssimo. Suas notas, eu pensava, eram inadmissíveis para um garoto inteligente e esperto como ele. E, invariavelmente, eram motivo de castigo para meu filho. Já com os esportes, Cazuza foi uma tragédia, para desespero do pai. Todos os sábados, meu marido frequentava um clube de futebol formado por trinta homens com mais de trinta anos, com uma exceção aberta a João, que foi admitido aos 24. Era o chamado Clube dos 30, em São Conrado. João sempre teve amigos mais velhos e ali conviveu com Paulo Mendes Campos, Luís Carlos Barreto, Thiago de Mello, Armando Nogueira, que também levavam seus filhos ao futebol de todos os sábados. Além disso, em toda a sua vida, meu marido foi um esportista que praticou tênis, vôlei e futebol. Ele queria muito que o filho seguisse seu exemplo, como conta: "Sempre desejei que Cazuza se interessasse por esportes, mas quando eu o levava ao Clube dos 30, Cazuza não demonstrava a menor vontade de jogar futebol. Às vezes até brincava com a bola, mas rapidamente se desinteressava. O que o empolgava mesmo era pegar meu carro e dirigir em volta do loteamento."

        A frustração de João com o total desinteresse do filho por seu esporte favorito foi motivo de uma crônica do jornalista Armando Nogueira, publicada no Jornal do Brasil, em sua coluna "A Grande Área", em 1968:

        Cazuza, dez anos, chegou da escola, participando ao pai uma novidade:

        -- Papai, estou jogando futebol, lá no colégio.

        O pai, que sempre bateu sua bolinha razoavelmente, ficou na maior alegria: nunca tinha confessado, mas o desinteresse do filho por futebol era uma das pequenas tristezas de sua vida. Há alguns anos ele andou tentando despertar no garoto o gosto pela pelada: no clube em que joga um racha semanal, chegou mesmo a levar Cazuza para o campo, ficava no gol e só para estimular papava frangos tremendos nos chutes de Cazuza.

        Nos últimos tempos, porém, Cazuza abandonou na garagem a bola e as chuteiras e nunca mais falava de futebol. Daí a felicidade do pai ao ouvir do menino que estava jogando bola, agora oficialmente, no time do colégio.

        -- É no time do colégio, Cazuza?

        -- É, sim senhor.

        -- No primeiro time, Cazuza?

        -- Não.

        -- Ah, é no segundo time, meu filho?

        -- Também não, papai.

        -- Não vai me dizer que te puseram no terceiro time. Terceiro time nem deve existir lá no colégio.

        -- Existe, sim, mas eu não jogo no terceiro time também, não. Sou do Fusa.

        -- Fusa? Que diabo é isso, Cazuza?

        -- Fusa é o seguinte, papai: tem o primeiro time, o segundo e o terceiro times. Aí eles pegaram a turma que sobrou e misturaram todo mundo. Isso é que é Fusa.

         -- E você joga de quê, nesse tal de Fusa? – perguntou o pai, já inteiramente desanimado com o herdeiro de suas virtudes futebolísticas...

        -- Eu sou reserva do Fusa, papai.

        Em sua carreira, João fez de tudo na indústria do disco. Começou na gravadora Copacabana e, depois, passou pela Odeon, Mocambo, Festa e Sinter, que foi comprada pela Philips. Naquela gravadora, João produziu discos de Elis Regina, Jair Rodrigues, Gilberto Gil, Jorge Ben. Praticamente lançou Caetano Veloso e Gal Costa no disco Domingo, o primeiro da carreira de ambos. Lançou, também, o primeiro LP dos Novos Baianos. Considero João o homem de disco mais importante do Brasil, pois conheceu a fundo o seu ofício ao trabalhar em todos os cargos dentro da indústria - foi divulgador de rádio, de imprensa, produtor de estúdio, até fundar a Som Livre, em dezembro de 1969.

        Por isso, desde pequenininho, meu filho teve sua atenção naturalmente desperta para o mundo da música. Eu e João gostávamos de música, desde o namoro. Na época, eu estudava violão e, em nossos encontros, nos distraíamos em tocar e cantar. Para Cazuza, aconteceu ainda de conhecer de perto os artistas que frequentavam nossa casa. Desde garoto, a paixão de Cazuza por Rita Lee era avassaladora. Não perdia nenhum de seus shows. Silvinha Teles foi minha colega de colégio e acompanhou Cazuza desde o seu nascimento. Elis Regina o viu crescer, assim como Jair Rodrigues, Os Novos Baianos, Caetano, Gil, Gal. Meu filho dizia que não tinha mitos, pois conviveu com todos eles.

        Nos tempos do Santo Inácio, Cazuza tinha dois grandes amigos: Ricardo Quintana e Pedro Bial, hoje jornalista e poeta. Com Pedro, aliás, ele já havia repartido a sala de aula no Colégio Chapeuzinho Vermelho. Com meu filho, Pedro frequentou o Clube dos 30, fez viagens em excursão do colégio e entrevistou o poeta Vinícius de Morais para um trabalho escolar sobre diplomatas que abandonaram a carreira. As recordações de Pedro Bial sobre a infância e adolescência de ambos:

        "Cazuza não era nada esportivo, não gostava de esportes. Era tímido e fechado. Não se socializava com o resto da turma. Nunca teve muita paciência para o social. Era inteligente e desenhava muito bem. Fazia desenhos de mapas e cidades, superorganizado. O resultado era muito bem-feito e, para cada um dos lugares, ele inventava nomes de fantasia. Na época do Santo Inácio, ele teve uma relação forte com Ricardo Quintana e, juntos, inventavam histórias, um espaço meio mitológico, um mundo só deles. Minha grande luta era a de ser aceito na brincadeira. A grande sensação da escola eram as mulheres nuas que Cazuza desenhava: todos os alunos pagariam uma nota para ter um desenho dele – mulheres eróticas, sexies, vamps, lindas, personagens marcantes. Cazuza não era do tipo popular e nem de ficar desafiando professores. Quieto, ficava no seu canto conversando com o Ricardo ou comigo. Aos treze anos - tínhamos a mesma idade –, o pai de Cazuza conseguiu marcar uma entrevista nossa com o Vinícius de Morais. Ficamos encantados com aquele líquido amarelinho que ele tomava. Achamos muito bacana aquele negócio do uísque."

        A vida escolar de Cazuza, na verdade, nunca me deixou tranquila. Ele passou a desafiar minha autoridade à medida que crescia: passou a esconder o diário de classe e a rasgar boletins com notas baixas. A primeira vez em que ficou de recuperação na escola, no final do primeiro ano ginasial, em três matérias, não teve coragem de voltar para casa. Da escola, rumou direto para o escritório de João, na Som Livre, e só voltou debaixo das asas do pai. Quando entraram, João me chamou no quarto e alertou:

        -- Cazuza ficou de recuperação e está apavorado com você. Veja lá o que vai fazer. Esses escândalos não resolvem nada!!!

        Mas, no dia seguinte, quando meu marido saiu para o trabalho, tive um duplo acesso de loucura. Primeiro, porque não me conformava com a traição de Cazuza. Como eu, que me julgava a dona do pedaço, tinha sido a última a saber? Meu ciúme era doentio. E depois veio a bronca monumental pela recuperação no Santo Inácio. Os catorze anos de Cazuza foram como uma marca de luta cega pela liberdade. Suas reações diante de minha autoridade já não eram mais de choro e quarto fechado. Ele me enfrentava, respondia e desafiava. Cada vez com mais intensidade. E eu comecei a lutar contra a dura realidade que, dali em diante, seria obrigada a enfrentar: conviver e perdoar as atitudes extremas de meu filho, até entender que ele não era mais o meu garotinho.

Lucinha Araújo.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 87-92.

Entendendo o conto:

01 – Qual era o principal objetivo de Lucinha Araújo em relação à educação de Cazuza no início do conto?

      O principal objetivo de Lucinha Araújo era fazer de Cazuza "um gênio da raça", buscando para ele a melhor educação possível, como o Colégio Santo Inácio.

02 – Como Cazuza se saiu no exame de admissão para o Colégio Santo Inácio e qual foi a reação de sua mãe?

      Cazuza se classificou em quinquagésimo lugar, com nota 9,5, entre mais de mil candidatos. Lucinha Araújo, no entanto, não ficou orgulhosa, achando que um 9,5 era "pouco" para um filho seu.

03 – Quais eram as duas principais "válvulas de escape" de Cazuza para suportar o temperamento autoritário de sua mãe?

      As duas principais válvulas de escape de Cazuza eram suas duas avós: Alice (Vovó Lice), mãe de Lucinha, e dona Maria, avó paterna.

04 – Descreva a relação de Cazuza com Vovó Lice.

      Cazuza tinha uma paixão ilimitada por Vovó Lice, que representava a liberdade. Na casa dela, ele podia fazer o que era proibido em casa, como comer guloseimas e assistir televisão. Ele se sentia compreendido por ela e até discutia suas poesias com a avó.

05 – Cite um exemplo do senso de humor de Cazuza com Vovó Lice.

      Cazuza gostava de simular desmaios no banheiro, usando um fio vermelho para simular sangue, e gritava para assustar Vovó Lice, que sempre se assustava e apelava aos santos.

06 – Como João, pai de Cazuza, via a questão do rendimento escolar e quais eram suas discordâncias com Lucinha?

      João não concordava com os métodos rígidos de Lucinha, pois para ele, ser um bom aluno não significava muito. Ele citava exemplos de homens brilhantes que nunca haviam conseguido um dez no boletim.

07 – Além da música, quais outros interesses Cazuza demonstrou ter durante a infância, que surpreendiam pela sua dedicação?

      Cazuza demonstrou grande interesse por geografia, tornando-se um expert, e também por arquitetura e urbanismo, criando cidades imaginárias com detalhes de população e funcionamento.

08 – Qual foi o episódio que demonstrou o conhecimento de Cazuza em geografia e como ele impressionou o ministro venezuelano?

      Durante um jantar, Cazuza corrigiu o ministro venezuelano sobre a extensão e o título de "maior da América Latina" de um túnel. Ele foi ao quarto buscar um livro e provou seu ponto, o que encantou o ministro.

09 – Como o pai de Cazuza reagiu ao desinteresse do filho por esportes, e qual anedota é contada sobre o futebol?

      João ficava frustrado com o desinteresse de Cazuza por esportes, especialmente futebol. Uma crônica de Armando Nogueira relata que Cazuza dizia jogar no "Fusa", que era a turma "que sobrou" após a formação dos três times oficiais do colégio.

10 – Qual foi a mudança na relação de Lucinha com Cazuza a partir dos quatorze anos de idade dele?

      A partir dos quatorze anos, Cazuza passou a desafiar a autoridade de Lucinha, escondendo o diário de classe e rasgando boletins. Ele a enfrentava e respondia, e Lucinha percebeu que precisaria conviver e perdoar as atitudes extremas do filho, entendendo que ele não era mais seu "garotinho".

 

ARTIGO DE OPINIÃO: SER PROFESSORA É O MELHOR TRABALHO PARA UMA MULHER - ROSA MARIA ANTUNES DE BARROS - COM GABARITO

 Artigo de opinião: Ser professora é o melhor trabalho para uma mulher

               Rosa Maria Antunes de Barros

          Esta história – esta reflexão – é dedicada a todos os professores que acreditam que da sua competência profissional depende a qualidade da educação escolar

        "O melhor trabalho para uma mulher é ser professora: fica só meio período na escola, ganha seu dinheirinho e ainda pode cuidar da casa e dos filhos." Isso era o que Sônia, quando criança, ouvia nas conversas da sua mãe com suas tias que também eram professoras. Ela mesma não sabia o que queria ser, não gostava de estudar, mas de vez em quando brincava de escolinha no quarto dos fundos da sua casa, onde a porta verde escura servia de lousa.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgFWTBAHf13GimM3HTCNVwUO6SJumH2giZwLElKIdLI0cSDYG6OIjjvUwndg33SCornFpmU-_6vciZIHtLiqFkIHeMGI1bp2o_KNPEcFnermfCSzmpaLQHpdrcrwb_K7nyjdd0AoNQFZAR6QgYUzr9RSJOetH35QWCVeo8BXQtO_cZZD33PWUt_4_pgBeU/s320/3171581-professora-cartoon-mulher-segurando-livro-e-aponte-para-quadro-negro-com-regra-vetor.jpg 


        O tempo passou e o desinteresse pela escola e pelos estudos continuava. Preferia fazer qualquer trabalho a ficar envolvida com livros e cadernos. Fazia muitas artimanhas para esconder o seu mau desempenho, mas era sempre descoberta. Quando estava fazendo pela segunda vez a sexta série, sua mãe teve uma conversa com ela e disse que iria tirá-la da escola.

        Não foi muito fácil esse momento e Sônia começou a pensar como seria sua vida sem estudo e sem a relação com os amigos e primos. Achou que estava diante de uma mudança radical e resolveu, então, se dedicar um pouco mais como aluna.

        Acabou por continuar os estudos e tornou-se professora na mesma escola onde sempre estudou. Sentia-se aliviada, pois finalmente conseguiu um diploma.

        Começou a trabalhar como professora numa escola pública e depois de alguns anos teve uma primeira experiência como professora de uma classe de 1ª série. Não conseguia alfabetizar todos os seus alunos e nas reuniões justificava-se dizendo que o problema era o nível socioeconômico das crianças: pobres, largadas, com pais desinteressados, que conviviam com a violência e que iam à escola para comer... Sabia que poderia ser bom incentivar seus alunos a irem à biblioteca da escola, um dos poucos recursos de que dispunha, mas percebia que eles não se interessavam pela leitura, porque só folheavam os livros e logo queriam mudar para outro. Essas ideias que justificavam o desinteresse e o não-aprendizado das crianças eram comuns entre muitos de seus colegas.

        A escola de Sônia ficava na periferia de um centro urbano e era uma das poucas da região que recebiam estagiários do curso normal. Todo ano, ela recebia uma em sua sala, e contava as dificuldades que enfrentava para ensinar todos os seus alunos. Dizia que não sabia o que fazer, porque se tratava de um problema social. Contava que não tinha interesse pelos cursos oferecidos pela Secretaria de Educação, afinal, a cada nova administração a moda mudava e por isso fazer cursos era perda de tempo. Além do mais, alfabetizou-se pela cartilha e mesmo assim se tornou professora, como tanta gente.

        Comentava com todas as colegas suas ideias a respeito da formação de professores, inclusive com Eliane, uma estagiária, que afirmava também concordar com ela e dizia ter escolhido ser professora porque, apesar do salário ser igual ao de um caixa de supermercado, na escola não teria de trabalhar muito, apenas meio período, teria férias duas vezes por ano e as atividades na sala de aula eram muito simples: mandar as crianças fazer as atividades do livro didático, depois corrigi-las e tirar as dúvidas daquelas com mais dificuldades.

        O tempo passou e Sônia se casou. Teve dois filhos que frequentaram uma escola de educação infantil que não fazia nenhum investimento na alfabetização porque o seu objetivo era recrear e sociabilizar e não preparar as crianças para a 1ª série. Isso não a preocupava porque seu filho mais velho havia se alfabetizado sozinho e com certeza teria sucesso no Ensino Fundamental.

        Dois anos depois, seu segundo filho ingressou na Ia série, mas infelizmente não estava alfabetizado. Sônia, agora, trabalhava em duas escolas e não tinha tempo para ajudar seus filhos nas tarefas de casa. Teve oportunidade de acompanhar o primeiro dia de aula e ficou surpresa quando descobriu que a professora era justamente Eliane.

        O semestre foi passando e Sônia foi ficando incomodada ao ver que seu filho não aprendia a ler e escrever. Fez várias reuniões com a professora e não conseguia entender como seu filho, um menino com uma família estruturada, bem alimentado, protegido da violência, não tinha sucesso. Foi sugerido que procurasse um psicólogo e Sônia resolveu consultar o melhor do seu seguro-saúde, que, segundo soube, vivia se atualizando e participando de cursos e congressos. Feito o diagnóstico, nada foi encontrado a não ser a confirmação do desinteresse pelas atividades escolares. Sônia comentou com Eliane e ela disse que nada podia fazer, afinal não iria mudar a sua forma de trabalhar de tantos anos por causa do filho dela. Os meses foram se passando, e, em agosto, Eliane precisou pedir uma licença médica prolongada. Veio então uma professora substituta, Fátima.

        Sônia foi imediatamente procurá-la para contar o problema do seu filho e Fátima ouviu-a atenciosamente. Outras mães, insatisfeitas porque as crianças não aprendiam a ler e escrever, também foram conversar com ela. A professora resolveu fazer uma reunião de pais e contar como era o seu trabalho, em que pressupostos teóricos ele estava apoiado, porque iriam sentir que as mudanças seriam grandes dali para a frente. Sônia, assim como muitos pais, ficou preocupada com as mudanças, mas não tinha opção a não ser concordar. As mudanças eram mesmo muito grandes e se via que ela tinha uma forma muito diferente de tratar os conteúdos escolares, especialmente a linguagem escrita.

        O final do ano chegou e muitas crianças avançaram, inclusive o filho de Sônia, que aprendeu a ler e escrever.

        Esta história é muito mais comum do que podemos imaginar e nos convida a algumas reflexões sobre o que significa ser professor. Precisamos ter claro, mas muito claro, que se trata de uma profissão e, como tal, requer profissionais que constantemente estejam estudando e se atualizando. A realidade nos mostra que não podemos nos dar ao luxo de dizer que não queremos aprender ou nos atualizar, pois isso é algo que está posto para qualquer profissão, inclusive a dos professores. Certamente, acharíamos absurdo ouvir de um médico que não quer conhecer novas teorias ou novas técnicas de cirurgia... Por que um professor fica tão incomodado quando há novas teorias e conhecimentos didáticos na área de educação? Hoje, qualquer profissional – engenheiro, agricultor, costureira, dentista, cozinheira... – sabe que precisa atualizar-se.

        E por que estudar é tão importante para nós, professores? Porque não é aceitável responsabilizar as crianças pela impossibilidade de a escola ensiná-las. Sabemos que há situações muito difíceis a serem enfrentadas e que não é produtivo gastar tempo e energia procurando culpados. Não podemos atribuir a responsabilidade do fracasso escolar ao nível socioeconômico dos alunos, mas também sabemos que é muito mais trabalhoso ensinar crianças de ambientes não-letrados.

        Criticamos os pais por não se envolverem com as atividades escolares de seus filhos, esquecendo-nos que eles são fruto de uma escola que em geral pouco contribuiu com sua formação, e que muitos nem sequer passaram pelos bancos escolares. E se olharmos para nós, o que diríamos do nosso desinteresse pela leitura e pela escrita, que é ferramenta fundamental da nossa profissão?

        Precisamos assumir a responsabilidade da nossa formação inadequada para não continuar perpetuando esta situação. Ser professor não é uma tarefa fácil, como sempre quiseram que acreditássemos, e só com muita competência e empenho de todos será possível reverter esta situação.

        Ser Eliane, Sônia ou Fátima é uma questão de opção.

Rosa Maria Antunes de Barros.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 72-74.

Entendendo o artigo:

01 – Qual era a percepção inicial de Sônia e de sua família sobre a profissão de professora, e como essa percepção influenciou suas escolhas?

      A percepção inicial de Sônia e de sua família (mãe e tias) era que ser professora era o "melhor trabalho para uma mulher" porque oferecia meio período na escola, um "dinheirinho" e tempo para cuidar da casa e dos filhos. Essa visão simplificada e idealizada da profissão, que Sônia ouvia desde criança, a influenciou a seguir carreira na educação, mesmo sem ter interesse pelos estudos inicialmente e buscando apenas um diploma.

02 – Como a experiência de Sônia como professora de 1ª série com alunos em dificuldade de alfabetização começou a desafiar suas crenças?

      A experiência de Sônia com alunos da 1ª série que não conseguiam ser alfabetizados começou a desafiar suas crenças ao colocá-la diante de uma realidade complexa. Ela justificava o não-aprendizado pelo nível socioeconômico das crianças, pela falta de interesse dos pais e pela violência, atribuindo o problema a fatores externos e sociais, e não à sua própria prática pedagógica. Essa dificuldade a fez questionar suas abordagens, embora inicialmente não a levasse a buscar soluções em formação continuada.

03 – De que forma a atitude de Eliane, a estagiária, reflete uma mentalidade comum entre alguns profissionais da educação?

      A atitude de Eliane reflete uma mentalidade comum entre alguns profissionais da educação que veem a profissão como um "trabalho simples", com poucas exigências e muitas vantagens (meio período, férias, atividades de sala de aula supostamente fáceis). Ela não demonstrava interesse em aprofundar seus conhecimentos ou inovar, contentando-se em apenas "mandar as crianças fazer as atividades do livro didático", o que indica uma visão limitada e descompromissada com a complexidade da alfabetização e do aprendizado.

04 – Qual foi o ponto de virada para Sônia em relação à sua percepção da profissão de professora, e o que a levou a essa mudança?

      O ponto de virada para Sônia ocorreu quando seu próprio filho, com uma família estruturada e protegida da violência, não conseguiu ser alfabetizado na 1ª série pela professora Eliane. Essa experiência pessoal a fez confrontar a ineficácia das práticas pedagógicas que ela mesma utilizava e defendia. A dificuldade do filho, que não se encaixava nas justificativas anteriores sobre "nível socioeconômico", a impulsionou a buscar ajuda e a refletir sobre a importância da competência profissional do professor.

05 – Como a chegada da professora substituta, Fátima, impactou a visão de Sônia sobre o processo de ensino-aprendizagem e a responsabilidade do professor?

      A chegada da professora substituta, Fátima, impactou profundamente a visão de Sônia. Fátima demonstrou uma abordagem profissional, baseada em pressupostos teóricos e disposta a implementar mudanças significativas na forma de tratar os conteúdos, especialmente a linguagem escrita. A capacidade de Fátima em alfabetizar o filho de Sônia e outras crianças insatisfeitas, mesmo em um curto período, evidenciou para Sônia que a competência e o engajamento do professor são fundamentais e que a responsabilidade pelo aprendizado não pode ser atribuída apenas aos alunos ou ao seu contexto social.

06 – Segundo o artigo, por que a atualização e o estudo são tão cruciais para os professores, e qual analogia é utilizada para reforçar essa ideia?

      Segundo o artigo, a atualização e o estudo são cruciais para os professores porque a profissão, como qualquer outra, requer profissionais que se constantemente se desenvolvam e se atualizem. Não é aceitável que os professores responsabilizem as crianças pela impossibilidade da escola ensiná-las. A analogia utilizada para reforçar essa ideia é a de um médico que se recusasse a conhecer novas teorias ou técnicas de cirurgia, algo que seria considerado absurdo. Da mesma forma, os professores não deveriam se sentir "incomodados" com novas teorias e conhecimentos didáticos na área da educação.

07 – Qual é a principal mensagem do artigo ao afirmar que "Ser Eliane, Sônia ou Fátima é uma questão de opção"?

      A principal mensagem do artigo ao afirmar que "Ser Eliane, Sônia ou Fátima é uma questão de opção" é que a postura profissional do professor é uma escolha individual. Eliane representa a postura descompromissada e acomodada; Sônia, a professora que, embora inicialmente desinteressada e justificadora, passa por uma transformação a partir de uma experiência pessoal; e Fátima, a profissional competente, engajada e comprometida com a constante busca por conhecimento e com a responsabilidade de promover o aprendizado de todos os alunos. A frase destaca que o professor tem a autonomia e a responsabilidade de decidir qual caminho seguir em sua carreira, impactando diretamente a qualidade da educação.

 

POEMA: HAI-KAIS - MILLÔR FERNANDES - COM GABARITO

 Poema: Hai-Kais

            Millôr Fernandes

Pensa o outro lado:

Só quem tem fama

E difamado.

 

Com pó e mistério

A mulher ao espelho

Retoca o adultério.

 

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiXOFukY1Vl_Q72q8Ml7vNOBV_zy3LZaKWEG8djyODEFrUWKftKvkUpFPEyca777yuq6BSA9Azpzrcvobx5W0nLU8N2AaCDBurH6Knb6iaouhyphenhyphenwQCtxtR3vyEp-WCTEQBBnZjT4JR4e-lPS_yNCm4n2ZRbVR5qcQ0JQFnS2lgbZcZ1qmki_ZdRLpApbBvA/s320/garota-na-frente-do-espelho.jpg

0 pato. menina,

E um animal

Com buzina.

 

Hesito, Maria

Me mato, ou rasgo

Tua fotografia?

 

A aranha é que é bacana

Com sua geometria

Euclidiana.

 

Pra ser feliz de verdade

E preciso encarar

A realidade.

 

Democracia é um espeto!

Pra mim, é preto no branco

Pra ele, é branco no preto.

Millôr Fernandes.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 202.

Entendendo o poema:

01 – Qual é a ironia presente no primeiro hai-kai, que fala sobre fama e difamação?

      A ironia é que, para se ter fama, muitas vezes é inevitável também ser difamado. Uma condição parece acompanhar a outra, sugerindo que a notoriedade traz consigo tanto admiração quanto críticas e boatos negativos.

02 – O que o segundo hai-kai sugere sobre o ato de "retocar o adultério" com "pó e mistério"?

      O hai-kai sugere que a mulher, ao se maquiar diante do espelho ("com pó e mistério"), está na verdade tentando disfarçar ou encobrir as marcas ou consequências de um adultério, utilizando a maquiagem como uma forma de camuflagem.

03 – No hai-kai sobre o pato, qual característica inusitada é atribuída a ele?

      A característica inusitada atribuída ao pato é ter "buzina", o que é uma comparação humorística e inesperada com o som que o animal faz, mas também pode ser uma brincadeira com o som de "quack" (onomatopeia para o som do pato em inglês) que soa como uma buzina.

04 – Que dilema o eu lírico expressa no hai-kai sobre a fotografia?

      O eu lírico expressa um dilema intenso e doloroso: se matar ou rasgar a fotografia da pessoa amada, Maria. Isso indica um sofrimento profundo e uma tentativa desesperada de lidar com a dor de um relacionamento, onde ambas as opções são extremas.

05 – Como o último hai-kai, "Democracia é um espeto!", aborda a ideia de democracia?

      O hai-kai satiriza a ideia de democracia ao compará-la a um "espeto", que pode ter dois lados. Ele mostra que, embora a democracia devesse ser justa, na prática, o que é "preto no branco" para um, é "branco no preto" para o outro, ressaltando a subjetividade e a polarização nas interpretações e vivências do sistema democrático.

 

CONTO: O HOMEM QUE ODIAVA A SEGUNDA-FEIRA - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO - COM GABARITO

 Conto: O homem que odiava a segunda-feira

            Ignácio de Loyola Brandão

        O despertador musical acordou-o com Doris Day cantando "Que será, será", sucesso dos anos 60, quando ele era um jovem de 25 anos. A música está no filme de Hitchcock, O homem que sabia demais, e seu início se passa em um Marrecos produzido nos estúdios. Um país falso, porém convincente. Quem se importa? O real é tão imaginário que o falso se torna verdadeiro.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjuuyJ681Bi06TtBcgi81ryFyo2ZBkvqh3fs4CqgDzYZ8uOBbnCq0qCaPyMCBkbtCMBuZBMtXUflXFneH562hrDxHmLI6s7VbWuYiovtFy6ERvGl53e2F3EKF89fuLz7V0uVItKFcv1SpT-n9KVDVR-ZgJYMCRwYj5L1lV9I-Yqt3McomAQ4gzuEMdStyc/s320/maxresdefault.jpg


        Ele não travou o despertador. Ficou olhando para o teto, contemplando os desenhos que a luz do sol produzia, atravessando as venezianas de madeira. Sempre tinha sido apaixonado por Doris Day, pela sua voz límpida, podia entender cada palavra que ela dizia. Onde estará Doris, quantos anos terá? Durante décadas fez o papel de virgem e, mesmo sabendo que era mentira, todos acreditavam. Porque a gente quer acreditar, a maior mentira torna-se verdade.

        Remoía pensamentos incompletos e superficiais porque era um cinéfilo inveterado. Tinha começado criança, comprando balas Fruna, que traziam figurinhas de artistas, depois colecionara Cinelândia e Filmelândia, passara aos Cahiers du Cinéma, Sight and Sound, Film Review. Ah, a boa fase dos Cahiers com suas capas amarelas, falando de Godard, Truffaut, Chabrol, Doniol Valcroze, Demy, Malle, Belmondo, Trintignant, Moreau, Albicocco, Resnais, Brocca, Delphine Seyrig, Varda, Anna Karina, Jean Seberg, Marie Laforêt, ah, os olhos de ouro da Laforêt. Pensava intensamente para fugir de sua tragédia: saber que era segunda-feira.

        As segundas-feiras existiam a atemorizá-lo, deixando-o tenso, com suores e calafrios, dores nos músculos, visão embaçada e uma nevralgia que paralisava o lado direito do rosto. Ainda na cama sentia tonturas, cãibras, rolava insone. Os sintomas se iniciavam no domingo à noite, ao ouvir a música do Fantástico, subindo das televisões de todos os apartamentos, ou quando Silvio Santos passava a gritar: Quem quer dinheiro? Significava o fim do final da semana. E o início da dolorosa peregrinação noturna ao encontro da segunda-feira.

        Quando teve os primeiros sintomas, a família ficou alarmada. Como não conseguiu nenhum médico acordado às sete da manhã, foi ao pronto-socorro, mas a fila era tão grande que, ao ser atendido, três horas mais tarde, sentia-se melhor. O médico (Ou teria sido um enfermeiro?) examinou-o apressado, receitou analgésicos e indicou a farmácia: Compre nessa! Quando o dia terminou, ele passava bem e creditou ao analgésico. Na próxima semana, os mesmos sintomas. Assim sucessivamente, até que a mulher intuiu: "Isso é coisa da segunda-feira! Você precisa é de um psicólogo". O cunhado foi taxativo: "Preguiça, nada mais!".

        Injustiça, ele era capaz de trabalhar no sábado, domingo, nos feriados, a noite inteira, se preciso. Todavia, a segunda-feira era fatal. No domingo, quando entravam os letreiros dos últimos programas de televisão, ele se via dominado pela inquietação. O psicólogo, porque afinal, para satisfazer a mulher, consultara um, recomendara: "Pense em outras coisas. Esqueça o dia, faça um grande jantar, vá ao cinema na sessão das dez, apanhe um filme longo na locadora". Tinha aconselhado: Cleópatra, O chefão, My fair lady, Lawrence da Arábia, Dr. Jivago, Era uma vez na América, Berlin Alexander Platz (com catorze horas de duração, poderia ser assistido em três domingos, quatro horas e meia por domingo), A lista de Schindler, Titanic, A noviça rebelde, Napoleão, E o vento levou..., Assim caminha a humanidade.

        Não adiantava. Quando ele percebia que o filme tinha passado da metade e o domingo estava terminando, a ansiedade o dominava, a febre recomeçava insinuante, ele acabava desligando o vídeo. Um amigo recomendou:

        -- Apanhe sua mulher. Vá para um motel. Passe a noite na farra, vai cair de cansado, esquecer o medo.

        -- A minha mulher num motel?

        -- Por que não?

        -- E se alguém nos vê entrando? O que vai pensar? Que ela é puta? Minha amante?

        -- Você, com esses problemas? Está mal, muito mal, mesmo! Você? Que foi o que bem sei? Convide tua mulher. Vai se surpreender. Ela pode te revelar coisas surpreendentes. Motéis viram a cabeça das mulheres sérias. Tua mulher é séria, não é?

        -- Claro.

        -- Não gostaria que ela, por uns momentos, não fosse?

        Não se pode dizer que ele não tentou reagir. Porém, no domingo, mal o lanche da noite começava, ele olhava para o relógio. Oito horas, daqui a quatro será segunda-feira. Seus olhos se enchiam de lágrimas, o coração apertava, a comida perdia o gosto. A mulher tentara embriagá-lo, queria que ele tomasse tranquilizantes. Ele recusava, alegando que precisava se enfrentar de cara limpa. Foi se enchendo de um ódio cada vez maior pela segunda-feira, desenvolveu alergias, acordava com inchaços nas juntas, nariz escorrendo, olhos empapuçados. Os dentes doíam, vinha uma tosse seca e persistente que terminava somente na terça-feira.

        Cada vez, um sintoma. Comparado ao que ganhava, gastava uma fortuna em médicos. Os convênios recusavam pagar, alegavam que eram doenças congênitas. No emprego, deram uma alternativa. Ele não trabalharia na segunda-feira, faria plantão no final de semana. No entanto, no dia do plantão, ele tomava consciência de que aquele dia estava substituindo a segunda-feira. Correspondia a uma. Foi levado a centros espíritas, terreiros de macumba, tarólogos, astrólogos, médicos ortomoleculares, cultos carismáticos, invocadores de anjos da guarda, jogadores de búzios. Nenhum efeito.

        Um médico não-ortodoxo, depois de pedir I. I I I exames de sangue, comunicou que, segundo revistas científicas tailandesas, ele era portador do MondayMonday, vírus raro, e que não havia ainda medicamentos ou vacinas. As pesquisas eram recentes. O vírus vinha se espalhando no planeta globalizado. O que posso fazer? Ele indagava ansioso, irritado com aquele sofrimento semanal. Imaginou como as mulheres, todos os meses, suportavam as regras, a tensão pré-menstrual, as dores das cólicas. Santas mulheres, reverenciou.

        Uma tarde, pensou com limpidez: a causa existe, está diagnosticada. A solução é acabar com a segunda-feira. Eliminá-la do calendário. Somente assim o mundo será salvo dessa epidemia que chega com força mil vezes superior à da gripe espanhola, a peste negra, a aids, a paixão pelo esoterismo, o culto da auto-ajuda. A princípio, foi apenas uma ideia lançada pelo dono da padaria da esquina, sempre dado a palpites: "Se a segunda-feira lhe faz mal, fuja dela, acabe com ela, pois". Havia um tom de blague. No entanto, nosso homem tinha perdido a capacidade de perceber brincadeiras. Acabar com a segunda-feira! É isso! De uma vez por todas. Mas como? Quem pode mudar esse estado de coisas? É uma convenção tão arraigada no mundo. O dia maldito existe por toda a parte, todos os países, até nos conventos, nas prisões, nos pólos norte e sul, no meio do deserto, entre os esquimós. Existirá entre os índios caiapós? Monday, montag, lundi, lunedi, lunes. O dia desgraçado foi celebrado em uma canção dos Beatles.

        Em uma segunda-feira de março, nosso homem foi tomado por calafrios intensos e pediu cobertas. Trouxeram edredons e mantas. Ele batia os dentes, um pivô soltou-se, suava, percebia o corpo esfriando, esquentando. Depois, adormeceu, tranquilo. Ao acordar, a mulher velava à cabeceira, inquieta, sem saber se chamava o médico. Ele levantou-se, num só movimento, como um acrobata que acaba de realizar um exercício e vai agradecer ao público. Comunicou:

        -- De nada adianta eliminar sintomas, se a origem da moléstia persiste. Portanto, meu caso é fácil. Minha doença é a segunda-feira. Cancelando-a, tudo estará resolvido.

        -- Parece coisa de louco.

        -- Acha?

        -- A falta de sono e o cansaço te deixam estressado. E assim, desde que nos casamos. Pensou? Se você elimina a segunda-feira, a terça se transforma em segunda, é o segundo dia da semana. E o domingo será o primeiro.

        -- Está certo.

        -- O domingo não pode ser o primeiro! Nunca!

        -- Quem disse?

        -- Está na Bíblia, o Senhor descansou no sétimo dia. O domingo.

        -- A segunda não é o primeiro porque se chama segunda-feira. Domingo é o primeiro dia.

        -- Quer me confundir?

        -- Se o domingo é o sétimo e em seguida vem a segunda-feira, onde está o primeiro dia? O primeiro não existe! Alguém, em algum momento, eliminou o primeiro dia. Tenho de pesquisar. Se o primeiro dia foi eliminado, podemos cancelar também o segundo.

        -- Não me saia por aí com bobagens. Te conheço, não é a primeira vez que se fixa em uma besteira!

        -- Não começa... Você é inteligente, pense! Se não existe o primeiro dia, falta um dia na semana. Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo. E este é o último, onde ficou o primeiro?

        -- E se quando a semana foi criada, o primeiro não existia e o segundo era primeiro? As palavras podem ter variado de significado em séculos.

        -- E quem conhece a história da semana? Quando nasceu, quem teve a ideia, quem montou a ordem dos dias? Quem garante que não tinha oito dias em vez de sete?

        A mulher era pessoa razoável, ex-publicitária que tinha abandonado a carreira quando percebeu que odiava os produtos para os quais tinha de criar campanhas. Começara na tarde em que redigia uma frase para despertar o apetite das pessoas com um suculento molho de tomate. Seus dedos incharam quando digitava a frase e quanto mais elogiava o horrendo molho em lata, mais a mão engrossava, a ponto de não distinguir os dedos. Deu um basta, escreveu com tipos enormes: O molho é uma merda. Tirou uma cópia, enviou ao diretor de criação, apanhou a bolsa e se foi. Ao deixar o edifício da agência, a mão tinha voltado ao normal.

        -- Vamos admitir! Você está certo! Baseado em que se pode eliminar a segunda-feira?

        -- No ódio que todos têm dela. Nas alergias que provoca. Nas neuroses, traumas, paranoias. Metade da violência e da ansiedade do país acabaria com o fim das segundas-feiras.

        -- E os transtornos? A segunda-feira é o reinicio, o dia em que tudo se abre, bancos e repartições e supermercados funcionam, a cidade se normaliza. É quando as pessoas se organizam. Dependesse de mim, eu acabaria com o final da noite de domingo.

        -- Sabe por quê? É nela que a ansiedade da segunda-feira se instala.

        Ela o conhecia há dezessete anos. Sabia que a ideia não seria abandonada. Ele iria até o fim. Perdera dez empregos por causa de coisas assim, metia-se em situações esdrúxulas. Era uma palavra esquisita essa, tinha usado uma vez em uma campanha e o cliente ficara revoltado.

        -- Não me venha com essa! Falei por falar. A noite de domingo é um pé no saco!

        -- Estou esclerosado? Pior do que pensava? Além do que sofro, tenho de passar por mais essa? A incompreensão em minha casa?

        -- Quero apenas evitar dissabores! Chega os problemas que você vem encontrando.

        Ela adorava a palavra dissabores. Agora, parecia mais preocupada. Eliminar a segunda-feira é uma ideia que passa somente pela cabeça de um desequilibrado.

        -- Hoje não vou trabalhar. Vou procurar em meus livros se existe alguma possibilidade de eliminar a segunda-feira.

        -- Livros? Você não tem nenhum livro sobre o assunto!

        --Verdade... Vou pesquisar em alguma parte.

        Passou o dia ligando para advogados especialistas em códigos, queria saber se existia uma lei instituindo a segunda-feira. Se houvesse a lei, então o caminho seria longo. Não o atendiam, queriam marcar hora, entrevista, as consultas deviam ser pagas. Por acaso, um funcionário afirmou que a lei sobre a segunda-feira existia, era preciso pagar as buscas.

        Existia! Então, teria de procurar um deputado, explicar o caso, convencê-lo a aderir à causa. Há coisas que convencem políticos: receber um bom suborno, ganhar votos com suas leis, obter publicidade favorável ou aprovar algo que traga benefícios financeiros para uma categoria, recebendo dos lobbies polpudas quantias ou promessas de financiamento de campanhas. Alegrou-se. Esta seria uma causa extremamente popular. Todos votariam em um homem propondo a extinção da segunda-feira.

        Ele passou o dia excitado, procurando localizar um deputado federal na cidade. Nas sedes dos partidos asseguravam: "Vai ser difícil, todos estão em Brasília, trabalham muito, começam cedo, vão até altas horas da noite. Só se o senhor for a Brasília!". Percebeu, todavia, que não o desestimulavam, ao contrário, forneciam até o telefone dos parlamentares na capital. Desilusão! Números ocupados permanentemente. Ou eram atendidos por uma secretária que passava para a Assessora Um, que religava para o Assessor Dois, que transferia para o Assessor Três. Um dia, por engano, ligaram para a Amante principal. Educado, discreto, ele pediu desculpas. E rodou até bater na autoridade máxima, o Chefe de gabinete. Pessoa apressada, ríspida, comandante de um reino.

        E ele respondeu a mesma coisa: "Desculpe-me senhor o Assessor Para os Dias do Ano que é quem movimenta o calendário de sua excelência não está na sala foi ao plenário assessorar nosso líder em importantes debates que ocorrem agora. Ligue na próxima segunda-feira uma vez que assuntos sobre a segunda-feira só podem ser tratados às segundas-feiras. De qualquer modo vejo aqui que o Assessor não estará na próxima nem na seguinte nem consequente uma vez que acompanhará sua excelência em viagens de estudos para a comissão em que atua. Mas anotei seu nome seu telefone seu endereço e veja que coincidência o senhor mora na mesma rua em que nasceu a mãe do nobre deputado e ele tem carinho especial por essa rua e pelas pessoas que nela habitam certamente fará tudo o que estiver ao seu alcance daremos retorno muito obrigado e não se esqueça de que as eleições de outubro estão se aproximando e seu candidato só pode ser o nosso líder enviaremos folhetos sobre a sua atuação".

        Ele ficava sem fôlego ao ouvir. Chefes de gabinete falavam sem vírgulas, apenas com um e outro ponto para respirar. Percebeu que a caminhada seria exaustiva. No entanto, sentiu-se revigorado. Agora, tinha um projeto na vida. Uma utopia a perseguir. A sua missão impossível. Isso mantém um homem vivo. Chega de alergias, tremores, estresse.

        Começou a escrever cartas, desejando saber se havia um lugar onde a segunda-feira não existia. Uma carta levava a outra. Uma pessoa indicava outra. Recorreu à internet. As informações se sucediam, vindas de professores de geografia, história, astrólogos, astrônomos, engenheiros, químicos, semanólogos, viajantes. Um astronauta americano, gentil como tem de ser um homem que esteve na Lua, respondeu amavelmente: "Na Lua não há segunda-feira, aliás não há semana, nem mês ou ano, o tempo ali não é medido, nem dividido, ele se escoa infinito". Se nos outros planetas, satélites, estrelas não há segundas-feiras, o meu destino é mergulhar na galáxia, ele ponderou com a mulher e ela o olhou ressabiada. Um redator de guias turísticos acenou com um principado indiano, perdido entre montanhas de pedra. O problema é que quando os turistas chegam a esse lugar, levam costumes tão arraigados que ao não saber se o dia é sábado, domingo, ou segunda-feira, começam a passar mal, ficar ansiosos. Tiveram de criar um calendário falso, usado apenas para fins turísticos, não reconhecido ou obedecido pelos nativos. A semana está incrustada nos civilizados como uma pedra preciosa em um anel.

        Consultaram todos os especialistas, inclusive Saroyan, o armênio que vivia num trapézio volante e tinha na cabeça todo o calendário gregoriano. O diagnóstico: "Nenhuma possibilidade de cura". Contataram um soteropolitano atabalhoado cujo ofício era redigir calendários perpétuos para revistas e jornais. O homem mantinha urna coluna semanal, respondendo a indagações do tipo: que dia da semana foi 31 de julho de 1911. Ou que dia da semana foi 14 de março de 1948. Também não ajudou. Nos dezessete mil livros que ele possuía não havia registros de homens que odiavam as segundas-feiras. Surgiram casos de agressividade contra o domingo, os feriados, os dias santos. Descartados, uma vez que se tratava de padrões mesquinhos, de executivos viciados em trabalho que se desesperavam com a semana tão curta (adoravam fazer dinheiro para as instituições em que trabalhavam) e fiéis de religiões que não acreditavam na sacralidade de certas datas.

        Ele estava determinado. Haveria de acabar com a segunda-feira, a qualquer custo. Em todas as pessoas com quem conversou percebeu enorme entusiasmo. Sabia que haveria resistência da indústria, do comércio, dos bancos e dos coletores de impostos. Dentro em breve estariam terminadas as segundas-feiras, a ansiedade dos finais de domingo, a angústia das longas e silenciosas tardes repletas de melancolia.

        Seu plano era perfeito. Do domingo se saltaria para terça-feira, ficando a segunda sem nome. Esse dia seria uma câmara de descompressão. Nele seria restabelecido o alívio, as pessoas ganhariam ânimo para trabalhar, começariam a semana bem-preparadas, cheias de força física e estímulo para produzir mais. Uma pessoa alegre, de bem com a vida, rende, os patrões iriam adorar. Em seguida, surgiu outra ideia. Com o tempo, se faria campanha para extinguir a sexta-feira. Outra câmara, preparando as pessoas para o repouso do fim de semana. Não se descansa trazendo ainda a pressão dos compromissos. Uma semana composta apenas de terça, quarta e quinta-feira era a utopia do mundo. Poderia ser um movimento universal.

        Saía todas as manhãs com um manifesto redigido em papel almaço pautado, percorria as ruas colhendo assinaturas. Via como a segunda-feira era odiada, as pessoas assinavam com prazer, cumprimentando-o. "Finalmente se faz alguma coisa para abolir esse dia maldito. É disso que precisamos, de iniciativas particulares. Pode-se até fundar uma organização não-governamental." Também era ridicularizado, enxotado, ofendido, chegaram a cuspir nele, empurraram-no contra as paredes, enfiaram a sua cabeça em um bueiro cheio de coisas podres. Ele não desistia, estava apaixonado pela causa. As folhas tomavam duas estantes, a mulher olhava para elas e sacudia a cabeça, porém não tentava impedir que ele fosse até o fim, mostrava-se feliz. A cada dia ele trazia histórias engraçadas ou estranhas, os dois analisavam o comportamento das pessoas. Ela só não acreditou quando ele contou a respeito de um homem que tinha perdido a mão na caixa do correio, estava na fila dos Encontrados e não parecia desesperado, apenas tentava recuperar a mão. O entusiasmo dele era crescente. Depois do Brasil, buscaria assinaturas no mundo inteiro. Era preciso reunir as pessoas, debater o assunto, montar uma organização. Marcou o dia, ela redigiu o folheto, sabia montar frases insinuantes, convencer as pessoas a consumir.

        Imprimiram vinte mil volantes. Perto da casa havia um cinema recém-fechado, eles conheciam o proprietário, era também dono de uma tecelagem cliente da agência em que ela trabalhara. O homem concordou em alugar por uma noite, desde que eles pagassem as despesas de luz e varressem a sala, devia haver uma boa poeira amontoada. Seriam responsabilizados pelo vandalismo, caso ocorresse, nunca se sabe com multidões. Assim, os dois começaram a distribuir os volantes. E se alternavam, um dia, ela saía com o manifesto, recolhendo assinaturas e ele com folhetos. Depois, invertiam. Esperavam umas mil pessoas na primeira noite, o entusiasmo era grande. "As pessoas andam vazias", ele comentava, "precisam de alguma motivação, um sonho, um sentido para a vida."

        Ao apanhar o elevador, certa manhã, cheio de vigor, ouviu a vizinha conversando com o médico. Era médico, estava todo de branco: "Pois é, doutor! Veja só se pode ser. Meu marido não suporta a terça-feira, fica mal, muito mal, perde as forças, nem se levanta da cama. Veja só! O corpo inteiro dói, tem cãibras, as juntas incham. Ele odeia as terças-feiras. O que vamos fazer? Estamos ficando todos loucos, ele até fala em eliminar a terça-feira, está com os planos prontos. Veja só se pode ser!".

Ignácio de Loyola Brandão.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 96-101.

Entendendo o conto:

01 – Qual é a principal aflição do protagonista do conto?

      A principal aflição do protagonista é o seu ódio incontrolável e físico pelas segundas-feiras. Esse ódio se manifesta com sintomas como suores, calafrios, dores musculares, visão embaçada, nevralgia e até inchaços e tosse seca.

02 – Como a esposa do protagonista reage inicialmente aos seus sintomas e o que ela sugere?

      A esposa do protagonista inicialmente fica alarmada com os sintomas, mas, com o tempo, ela intui que "isso é coisa da segunda-feira" e sugere que ele procure um psicólogo.

03 – Quais foram algumas das tentativas do protagonista para lidar com seu ódio pela segunda-feira antes de sua "solução final"?

      Ele tentou seguir conselhos do psicólogo (pensar em outras coisas, assistir a filmes longos), sugestões de amigos (ir a motéis com a esposa), e foi a diversos especialistas e locais como centros espíritas, terreiros de macumba, tarólogos, astrólogos, médicos ortomoleculares e cultos carismáticos. Também tentou alterar seu horário de trabalho para evitar a segunda-feira.

04 – O que o médico não-ortodoxo diagnostica para o protagonista, segundo revistas científicas tailandesas?

      O médico não-ortodoxo diagnostica que o protagonista é portador do vírus MondayMonday, um vírus raro que se espalha no planeta globalizado e para o qual ainda não há medicamentos ou vacinas.

05 – Qual é a "solução" que o protagonista idealiza para acabar com seu sofrimento, e qual é a primeira reação de sua esposa a essa ideia?

      A "solução" que ele idealiza é acabar com a segunda-feira, eliminando-a do calendário. A primeira reação de sua esposa é considerá-la "coisa de louco", argumentando que, se a segunda-feira fosse eliminada, a terça se tornaria a segunda e o domingo o primeiro, o que seria uma confusão.

06 – Como o protagonista tenta justificar a ideia de eliminar a segunda-feira para sua esposa, além de sua própria doença?

      Ele argumenta que a segunda-feira é odiada por todos, causa alergias, neuroses, traumas e paranoias, e que sua eliminação acabaria com metade da violência e da ansiedade do país.

07 – O que a ex-publicitária, esposa do protagonista, fez quando percebeu que odiava os produtos para os quais criava campanhas?

      Ela "deu um basta", escreveu com tipos enormes a frase "O molho é uma merda" para um diretor de criação e abandonou a carreira, percebendo que seus dedos incharam ao digitar a frase.

08 – O que o protagonista faz para começar a concretizar seu plano de eliminar a segunda-feira?

      Ele começa a escrever um manifesto em papel almaço pautado e sai pelas ruas coletando assinaturas das pessoas, percebendo o entusiasmo de muitos com a ideia.

09 – Além do Brasil, para onde o protagonista planeja expandir sua campanha para abolir a segunda-feira?

      Ele planeja expandir sua campanha para o mundo inteiro, buscando assinaturas em outros países e organizando um movimento universal.

10 – Qual é a ironia no final do conto, em relação ao objetivo do protagonista?

      A ironia no final do conto é que, após toda a determinação e esforço do protagonista para eliminar a segunda-feira, ele ouve a vizinha no elevador reclamando com o médico sobre seu marido, que agora odiava as terças-feiras e falava em eliminá-las. Isso sugere que a aversão a um dia específico da semana pode ser um ciclo que se repete, independentemente da eliminação de um dia.