quinta-feira, 3 de julho de 2025

CONTO: AS HISTÓRIAS QUE NOS POSSUEM - FRAGMENTO - HELOISA PRIETO - COM GABARITO

 Conto: As histórias que nos possuem – Fragmento

           Heloisa Prieto

        Jonas recebeu de Deus a missão de ir à cidade de Nínive. Caminhou até o porto e encontrou um navio que partia para aquele destino. Porém, durante a viagem, o Senhor enviou sobre o mar um vento furioso e o navio corria perigo de naufrágio. Os marinheiros, apavorados, invocaram cada um o seu deus. Entretanto, Jonas desceu ao porão do navio e lá dormiu um profundo sono.

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        Logo chegou perto dele o piloto e lhe disse: "Como você pode dormir assim? Desperte, invoque seu deus e peça-lhe proteção".

        Nisso, os marinheiros consultaram os seus diferentes oráculos para saber por que a tempestade havia tombado sobre eles. Concluíram que o responsável por aquele perigo era Jonas. Foram até ele e lhe perguntaram: "Onde é a sua terra? Para onde você vai?".

        Jonas respondeu: "Eu sou hebreu, eu temo o Senhor Deus do Céu, que fez o mar e a terra". Todos os marinheiros se assustaram. "Que faremos de você para que o mar se acalme?", perguntaram. E Jonas respondeu-lhes: "Lancem-me ao mar, pois sei que é por minha causa que surgiu esta terrível tempestade!".

        Os marinheiros obedeceram ao seu desejo. Jonas foi lançado às águas. Nesse mesmo momento o mar ficou calmo. Porém, ao mesmo, o Senhor preparou uma imensa criatura marinha que engoliu Jonas. Na barriga dela, Jonas permaneceu vivo durante três dias e três noites. "As águas me cercaram até a alma", disse Jonas ao Senhor, "o abismo me engoliu e as ondas do mar me cobriram a cabeça. Porém, o Senhor preservou minha vida".

        Então, deus ordenou à baleia que o libertasse e ela abriu a sua enorme boca para que Jonas descesse calmamente na praia.

 "História de Jonas", adaptada da Bíblia Sagrada

        Professora de uma classe de pré-escola, tive um aluno que se chamava Jonas. Ele era adorável, olhos castanhos, meigos, uma criança que se expressava por gestos largos, carinhosos. Sempre que o observava brincando, lembrava-me da história bíblica de Jonas e da baleia. Ficava imaginando o quanto a baleia havia amado Jonas, que acolhera em sua imensa barriga até libertá-lo na praia. Encantada com o meu aluno, resolvi reler a narrativa bíblica, o mito milenar do homem que sobreviveu a uma terrível tempestade, dentro da barriga de um animal. Essa narrativa pode ser interpretada de várias maneiras. Por exemplo, ela aponta a nobreza de Jonas, que preferiu ser lançado ao mar a pôr em risco as vidas dos tripulantes. A sua coragem comove a Deus, que o protege e liberta. Jonas sobrevive sem lutar. Ao contrário dos heróis que têm de nadar bravamente através dos mares para sobreviver, Jonas é salvo pela própria natureza. Não entra em pânico, nem se desespera. Por isso, consegue permanecer na barriga da baleia até que ela o deixe na praia, e ele possa dar início a uma nova vida.

        Quando um bebê nasce, chega ao mundo cercado de histórias. É quase como se deixasse a barriga da mãe e fosse envolto numa rede de histórias. A começar pela história do próprio nome. Por que lhe foi dado este nome e não aquele? Quem o escolheu? O que significa? O nome contém uma história? A que tradição étnica pertence?

        Em certas culturas indígenas, como a dos povos munduruku, no norte do Pará, as crianças recebem dois nomes: o nome social e o nome mágico, secreto. Cada um deles faz referência a uma função mítica, a uma narrativa significativa.

        Na cultura afro-brasileira do candomblé, as pessoas vivem de acordo com os Odus, ou seja, narrativas míticas que orientam as nossas vidas. Cada pessoa deve descobrir o seu mito pessoal, o seu Odu, para compreender melhor o roteiro da sua própria vida. O Odu pessoal está entrelaçado ao familiar e ao contexto cultural. Uma vez descoberto o enredo que conduz uma vida, é preciso quebrá-lo. Só assim, liberta da trama de histórias que a acolheram quando veio ao mundo, uma pessoa pode atingir a autonomia da escolha e da criação do seu próprio destino.

        Citei exemplos de três tradições religiosas distintas – a judaico-cristã, a indígena e a afro-brasileira – com a intenção de mostrar que as narrativas exercem funções primordiais em todos os credos e culturas. É como se narrar fosse uma forma de pensar o mundo.

        Na antiga tradição oriental sufi (o sufismo é a tradição esotérica do islamismo), a sabedoria se aloja nas histórias. Quando uma pessoa enlouquecia, chamava-se um contador de histórias para curá-la. Histórias e mais histórias eram narradas ao louco até ele recuperar a capacidade de "pensar o mundo".

        Esse é o princípio básico das famosas “Mil e uma noites”. Um príncipe enlouquece ao ser traído por sua esposa. Transforma-se em uma espécie de assassino em série, como nos filmes americanos de hoje. A cada noite ele se casa com uma jovem, apenas para matá-la depois da cerimônia.

        Acontece que vive na sua cidade uma moça belíssima e inteligente chamada Sherazade. Como era mercador, seu pai lhe trazia muitos livros. Sherazade conclui de suas leituras que pode curar o príncipe. Declara ao pai que pretende casar-se com ele. Naturalmente, o pai fica apavorado e protesta. Não deseja perder a sua filha mais querida pela espada de um louco. Porém, firme em sua intenção, Sherazade prossegue com seu plano. O casamento é celebrado com todas as pompas. Quando termina a cerimônia e se aproxima o momento em que sua vida será ceifada, Sherazade pede ao príncipe que lhe satisfaça um pequeno desejo: todas as noites, tinha o hábito de contar uma história à sua irmã caçula e, agora, gostaria de narrar-lhe a última história antes de iniciar sua vida de casada.

        O príncipe concede-lhe o desejo. Sherazade começa a narrar. Porém, ciente da sua capacidade de seduzir por meio de narrativas, a bela jovem mantém o príncipe preso ao fio de suas palavras. Quando o sol nasce, ela interrompe a narração da aventura que narrava na melhor parte. Curioso de saber o final da história, o príncipe poupa-lhe a vida.

        Assim prossegue Sherazade durante mil e uma noites. Lentamente, pelo contato com as histórias, o príncipe vai se tranquilizando até que, certo dia, declara estar curado. Daquele momento em diante, passa a reinar como o mais sábio dos soberanos.

        É interessante notar que a própria Sherazade jamais se arrisca a declarar que o príncipe está curado. Ao longo das narrativas, eles têm vários filhos, mas ela só as interrompe quando ele mesmo afirma sentir-se profundamente feliz.

        Qual é a diferença entre a última história narrada ao príncipe e as outras? Todas são de grande beleza, com uma arquitetura narrativa tão perfeita que até hoje se recorre à estrutura do suspense utilizada por Sherazade, por exemplo, nas novelas de televisão. Ou seja, interrompe-se a narrativa em um ponto de virada. No momento em que se introduz um perigo, uma nova informação, algo que desperta a curiosidade do telespectador a ponto de obrigá-lo a ligar a televisão no mesmo horário, no mesmo canal, no dia seguinte. [...]

        Por hora, basta ressaltar a força das narrativas nessa obra-prima da cultura oriental.

        Voltando à Bíblia, é interessante pensar nas respostas que Cristo dava aos inimigos sempre que era provocado. Em vez de dar longas explicações, ele simplesmente respondia por meio de parábolas. Contudo, as breves narrativas que proferia contêm uma trama de significados tão profundos que são citadas mesmo fora do contexto religioso.

        Como responder a uma criança de cerca de cinco ou seis anos o que significa exatamente a palavra justiça? Utilizando longas explicações? Geralmente, quando um adulto tenta explicar alguma coisa e não consegue, recorre a um exemplo. Naturalmente, o exemplo escolhido acaba terminando em uma breve narrativa. A criança que ouve a história às vezes percebe outras nuances que o próprio adulto ignora. E pode simplesmente acontecer de uma pergunta sobre justiça acabar gerando uma narrativa que conduza a criança a outra questão fundamental para ela.

        Vamos imaginar um diálogo desses:

        -- Papai, o que é um traidor? – pergunta a criança.

        -- E um sujeito que não respeita os amigos – responde o pai.

        -- Como assim? – insiste a criança.

        -- Ah, por exemplo, todos combinam que não se deve mentir e, aí, alguém mente. Essa pessoa traiu a confiança do seu grupo – explica o pai.

        -- Entendi – diz a criança, que sai para brincar.

        -- Entendeu mesmo? – pergunta o pai.

        -- Todo traidor é mentiroso – responde a criança.

        Conforme afirma Yves de La Taille, em seu livro Limites – três dimensões educacionais: "Hoje se tende a admitir que não há apenas uma chave para o conhecimento, mas várias". A mesma narrativa pode conter muitas chaves para a compreensão de uma verdade.

        Pessoalmente, sempre associei a palavra traição à figura de judas Iscariotes, que considerava ao mesmo tempo fascinante e repugnante. Judas era o discípulo amado de Cristo que o traiu, vendendo-o aos inimigos. Para que os soldados soubessem qual era o homem que deviam prender, Judas os avisa que o cumprimentaria com um beijo. De modo que Cristo é traído com uma manifestação de carinho.

        Mais tarde, arrependido, Judas enforca-se. Cristo é morto, porém ressuscita e vive para sempre.

        Somente muitos anos depois, quando reli as histórias da Bíblia do ponto de vista literário, é que me dei conta de que Pedro, outro discípulo, também havia traído Cristo. Porém, sua traição contém outro significado. Ele trai a Cristo motivado pelo medo. Ao passo que Judas o trai motivado pelo dinheiro. Pedro resgata seu vínculo com Cristo, mas o mesmo não acontece com Judas. O interessante nesses dois exemplos é que Cristo compreende e perdoa a ambos.

        Já na universidade, voltei a ler essas passagens da Bíblia comparando-as a textos, narrativas e histórias de outras culturas, ou seja, utilizando outras chaves de compreensão.

        Do ponto de vista da teoria literária, o vilão, no caso Judas, é o propulsor à ação. Sem ele, Cristo não se teria transformado no redentor.

        Como se pode ver, passei anos tentando compreender a complexidade da figura do traidor. Associei narrativas de diferentes culturas e, mesmo assim, creio que apenas estou começando a compreender por que Cristo foi tão complacente com Judas.

        Assim são as narrativas. Múltiplas em significados. Inesgotáveis. Passíveis de inúmeras leituras. Ao longo da vida, conforme amadurecemos, "lemos" as mesmas histórias de diferentes ângulos.

        Quando uma história nos possui, ou seja, quando uma narrativa é recorrente, uma história sempre presente em nossa vida, seja ela Cinderela, João e o Pé de Feijão, Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, 0 pequeno príncipe, do autor francês Saint-Exupéry, ou um filme como Casablanca ou ...E o vento levou, o Sítio do Pica-Pau Amarelo, essa história se transforma em um tema fascinante que se relaciona com a forma pela qual decodificamos nossas experiências.

        Além da trama de histórias milenares, culturais, somos também cercados pelas pequenas narrativas pessoais e intransferíveis.

        Há, por exemplo, a história do romance dos nossos pais. Será que namoraram muitos anos? Será que se encontraram por acaso? Somos fruto de uma história feliz ou de um amor desesperado?

        Há crianças que nascem em elevadores, enquanto outras, preguiçosas, custam a nascer, e suas mães são obrigadas a fazer cesarianas. Existem histórias de pais nervosos, que desmaiam na sala de parto, de irmãozinhos ciumentos, que destroem os brinquedos do recém-nascido.  

        Existem vários autores que criaram suas obras com base em histórias familiares. O jovem amazonense Milton Hatoum, um dos expoentes da nossa literatura contemporânea, lança seus leitores no ambiente caloroso de uma família árabe que vive na Amazônia, em seu livro Relato de um certo Oriente, do qual reproduzo o trecho abaixo:

        -- Lembram como fazia Emilie? – disse tio Hakim, sorvendo o último gole de café. – Ela pedia para que todos emborcassem a xícara na bandeja, e depois examinava o fundo da porcelana para decifrar no emaranhado de linhas negras do líquido ressequido o destino de cada um.

        A conversa se estendia por toda a noite, porque as pessoas não conseguiam ouvir as histórias sem emitir uma opinião ou recordar algo; alguém já começara a abrir as caixas de bombons e doces para acompanhar a próxima rodada de café; depois viriam os sucos e aguardentes, e quem sabe uma refeição improvisada no meio da madrugada.

        É interessante notar que Emilie, uma das personagens centrais desse romance, lia o destino na borra de café. No parágrafo seguinte, pelas descrições das conversas noturnas regadas a café, sucos, aguardentes, e alimentadas por doces e bombons, é como se pudéssemos "ler" o ambiente das rodas de histórias, nas quais era impossível ficar calado.

        Uma xícara de café, o ruído de uma caixa de doces sendo aberta e conversas que não terminam mais fazendo parte da vida de cada um; mas, com o talento de um autor como Milton Hatoum, deslocam-se para a categoria das "horas inesquecíveis", ecos de um bem-estar, momentos que valem a pena ser vividos.

        Contudo, sempre é preciso lembrar-se de que a palavra "ler", etimologicamente, significa "enovelar". Portanto, mesmo que autores como Milton Hatoum, ou Steinbeck, tenham tomado como ponto de partida as próprias experiências familiares, isso não significa que elas sejam absolutamente fiéis à realidade. Quem aprecia a obra de Lobato sabe que mergulhar em uma aventura do Sítio do Pica-Pau Amarelo era caminhar em outra realidade, "lagartear, o prazer de viver, puro, sem mistura".

        Afinal, onde mora a verdade? O que é mais revelador, a biografia de um artista ou sua obra? Na verdade, nenhuma biografia jamais dará conta dos segredos, da riqueza interior da vida de um artista ou de uma personalidade famosa. Contudo, a recíproca também é verdadeira: mesmo que se disseque uma obra em busca de traços e informações a respeito da vida do autor, ela aponta sempre para outro nível de realidade, para a dimensão das emoções, da percepção, de outra verdade. Uma obra contém basicamente o imaginário do seu autor. Quando se escreve, instaura-se um jogo entre leitor e escritor. Um jogo verdadeiro, porém, ambivalente, repleto de segredos.

        John Steinbeck, um dos maiores autores da literatura norte-americana, criou a obra-prima A leste do Éden, inspirando-se nas narrativas que ouvia na Califórnia. Até que ponto ele as ouviu realmente? Será que existiram as pessoas que teriam dado origem aos seus personagens? Na verdade, muito além da dimensão do diálogo entre a vida e obra, esse livro é particularmente interessante porque trata da forma como uma história marcou a vida dos personagens de uma família.

        Escrita como uma saga, descrevendo as vidas de gerações sucessivas, a narrativa culmina com o conflito entre dois irmãos gêmeos, Caleb e Aron. Ambos tinham sido fruto de um amor transgressivo. Adam Trask, o pai deles, um fazendeiro protestante, apaixonara-se por Cathy, garota rebelde com passagens pela prostituição, mentirosa compulsiva, uma mente perversa oculta sob um rosto belíssimo, angelical.

        Adam casa-se com Cathy com o intuito de oferecer-lhe a segurança e o carinho que ela jamais tivera. Porém, a garota não se adapta a uma vida pacata e abandona o marido e os filhos. Passa a viver no bordel, deixando Adam não só com o coração inteiramente despedaçado, mas também diante do difícil encargo de criar os gêmeos sozinho.

        Infeliz e angustiado, Adam conta com seu criado chinês para auxiliá-lo nos afazeres domésticos e na criação dos garotos. Ocorre que, embora de aparência modesta, de comportamento atencioso e humilde, o criado chinês era, na realidade, um grande erudito, pertencente a um grupo de sábios que se reunia semanalmente no hoje famoso bairro chinês da cidade de San Francisco, Chinatown.

        Pois bem, Lee, o sábio chinês, não se conforma com a maneira como os gêmeos são criados. Percebendo que Adam atribuía a Caleb o papel do personagem bíblico Caim e a Aron, o papel de Abel, Lee contesta a história bíblica. Considera a decisão divina de privilegiar a oferenda de Abel injusta e irresponsável. Como pode um deus enaltecer um filho em detrimento do outro?

        Na verdade, o perspicaz sábio chinês percebe que Adam reservava aos filhos o mesmo destino que os personagens bíblicos. Aron cresce fraco, superprotegido e revela-se incapaz de lidar com os reveses da vida. Caleb, o rejeitado, habitua-se à incompreensão; contudo, desenvolve uma força interior que o obriga a sobreviver às frustrações que tem de enfrentar.

        Um triângulo amoroso configura-se quando ambos se apaixonam por Abra, menina de sabedoria, honestidade e integridade. Essa personagem feminina, forte e realizadora, contrapõe-se ao impacto devastador da personagem de Cathy, a mãe, cuja existência, aliás, é ignorada por Aron, que acredita ser órfão.

        A situação bíblica configura-se à medida que Adam desenvolve um projeto agrícola que consiste em levar alfaces californianas para outros estados. Seu plano de transportá-las de trem, preservadas no gelo, fracassa, e Adam perde dinheiro e prestígio na empreitada. Infeliz, afunda-se ainda mais na depressão.

        Para tentar ajudar o pai, provar seu valor e demonstrar seu carinho, Caleb faz negócios com outros comerciantes e é extremamente bem-sucedido. Corre até o pai e declara ter conseguido o valor necessário para ressarci-lo do seu prejuízo. Porém, desconfiado, amargo, o pai não só recusa a aceitar a soma como também acusa o filho de estar envolvido em negócios ilícitos.

        Inconformado com a injustiça paterna, Caleb, ciente do paradeiro da mãe, leva o irmão até o bordel. Diante do rosto materno, cuja semelhança com o seu é inacreditável, Aron vê seu mundo desabar. Desesperado, alista-se no exército e é morto em combate.

        Adam acusa Caleb pela morte do irmão e a situação bíblica ficaria claramente configurada não fosse a presença de Abra, cujo amor latente por Caleb explode, e pela intercessão de Lee, o sábio chinês.

        Pois, quando Caleb está prestes a cumprir seu destino de Caim, a deixar o pai moribundo, a abdicar do amor pela antiga namorada do irmão, e a partir para vagar infeliz pela terra, Lee decide intervir. Aproxima-se de Adam e declara ter passado três anos estudando hebraico para decifrar a verdadeira história da Bíblia.

        Após estudos minuciosos, o grupo de sábios do qual fazia parte descobrira que cada palavra do idioma hebraico possuía diversos significados. Contudo, a maior parte das traduções publicadas optava por um significado simplista, chegando até mesmo a alterar inteiramente o sentido da palavra original. Porque a palavra que Deus diz a Caim no momento em que ele é jogado ao mundo, após ter matado o próprio irmão, na verdade significa "liberta-te".

        Essa revelação altera o comportamento do pai, que, finalmente, abraça o filho e se permite amá-lo, libertando-o do seu destino fatídico.

        Nesse momento, quebra-se o enredo trágico que Adam destinara aos dois filhos pela troca do significado de uma única palavra. Troca que só é possível por meio do olhar de um estrangeiro, de alguém proveniente de outra cultura.

        Utilizando um termo da antropologia, a tradução dessa palavra ressignifica toda a história de Caim e Abel, revelando o amor divino que tudo perdoa e compreende.

        Todos nós nascemos, como os gêmeos da obra de Steinbeck, Caleb e Aron, imersos em uma imensa trama de narrativas. Certas narrativas exercem uma grande influência sobre o imaginário familiar, cultural, ou ambos, como se nos possuíssem. Elas condicionam o nosso modo de ver a vida, de tomar decisões, de resolver os problemas afetivos e assim por diante.

        Trata-se do nosso currículo oculto, da bagagem que uma criança traz à escola, só detectável pela sensibilidade do professor que não considera seu aluno um vaso oco a ser preenchido por conhecimentos predeterminados pelos currículos oficiais.

        Contudo, há também o risco oposto: imaginemos um professor, sensível à causa indígena, com um descendente direto de indígenas na sua classe. A tentação de usá-lo para saciar a nossa curiosidade natural a respeito de suas lendas, crenças e costumes também pode ter um efeito devastador.

        Portanto, seja em sala de aula, seja no espaço familiar, é importante lembrar que as histórias constituem um material de grande carga afetiva. Relacionar uma pessoa a uma determinada história pode significar aprisioná-la dentro dela.

        Isso fica mais claro quando pensamos nos escritores. Há um livro de suspense de Stephen King, americano mestre do terror, chamado Louca obsessão, no qual um escritor é raptado por sua maior fã. Cansado de escrever sempre sobre a mesma personagem, ele a mata. Inconformada, sua fã número I o aprisiona, quebra suas pernas e obriga-o a ressuscitar a personagem que ela tanto amava.

        E muito fácil um escritor ser preso pelo sucesso do seu estilo ou de seus personagens. Manter-se sempre obediente a uma determinada fórmula. Contudo, ao mencionar os "Odus do candomblé", as Mil e uma noites, ou a bela saga de Steinbeck, a função primeira das narrativas é a busca da liberdade. Nem que isso signifique, simplesmente, a liberdade de mergulhar em novos rios de histórias.

        Pode ocorrer que o aluno indígena que imaginei em uma classe esteja apaixonado pelos contos de fadas europeus e não sinta vontade alguma de falar sobre suas lendas. Que a ele seja dada então a liberdade de apaixonar-se por outras narrativas.

        "Mar de histórias" é a expressão que se usava em sânscrito para se referir ao universo das narrativas. Ao transitar por essas rotas imaginárias, é sempre bom ter em mente a metáfora do mar. Ou seja, é preciso ter um caminho, é preciso manter o leme firme, mas é também necessária a consciência de que se navega em águas que ora podem ser muito tranquilas, ora podem se transformar em verdadeiros maremotos.

        Esta aventura literária da qual fazem parte o mestre e seus alunos: é preciso coragem para trafegar por mundos imaginários; porém, as viagens serão sempre cheias de descobertas.

Heloisa Prieto.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP - São Paulo – 2005. p. 33-40.

Entendendo o conto:

01 – Qual a primeira história bíblica recontada no texto, e o que ela simboliza na visão da autora?

      A primeira história recontada é a de Jonas e a baleia, adaptada da Bíblia. Na visão da autora, ela simboliza a nobreza e a coragem de Jonas, que prefere ser lançado ao mar para salvar os tripulantes. Além disso, representa a proteção e a salvação pela natureza, sem que o herói precise lutar, e a capacidade de sobreviver e recomeçar. A autora também reflete sobre como a baleia "amou" Jonas, acolhendo-o.

02 – Como as culturas indígena e afro-brasileira são citadas para ilustrar a importância das narrativas no nascimento e na vida das pessoas?

      Na cultura indígena Munduruku, as crianças recebem dois nomes (social e mágico), cada um ligado a uma narrativa mítica e a uma função significativa. Na cultura afro-brasileira do candomblé, as pessoas vivem de acordo com os Odus, que são narrativas míticas que orientam suas vidas. Ambas as culturas demonstram que, ao nascer, o indivíduo já é envolvido por uma "rede de histórias" que moldam sua existência.

03 – Qual o papel do "contador de histórias" na tradição oriental Sufi, e como isso se relaciona com a história das "Mil e uma noites"?

      Na tradição Sufi, o contador de histórias era chamado para curar pessoas enlouquecidas, narrando "histórias e mais histórias" até que recuperassem a capacidade de "pensar o mundo". A história das "Mil e uma noites" exemplifica isso, com Sherazade curando o príncipe assassino ao seduzi-lo e prendê-lo ao fio de suas narrativas incompletas, que o tranquilizam e o transformam no "mais sábio dos soberanos".

04 – Por que, segundo o texto, Cristo respondia a seus inimigos por meio de parábolas?

      Cristo respondia a seus inimigos por meio de parábolas em vez de longas explicações porque essas breves narrativas contêm uma "trama de significados tão profundos" que são compreendidas e citadas mesmo fora do contexto religioso. Isso ilustra o poder das histórias em transmitir verdades complexas de forma acessível e impactante.

05 – Qual a diferença de significado entre as traições de Judas e Pedro a Cristo, e o que a autora aprendeu ao relê-las?

      A autora percebe que Judas trai Cristo motivado pelo dinheiro, enquanto Pedro o trai motivado pelo medo. Ao reler, ela nota que Pedro consegue resgatar seu vínculo com Cristo, o que não acontece com Judas. Além disso, do ponto de vista da teoria literária, Judas é o "propulsor à ação", sem o qual Cristo não se teria transformado no redentor. A autora ainda se pergunta por que Cristo foi tão complacente com Judas.

06 – Como a crônica exemplifica a ideia de que "uma mesma narrativa pode conter muitas chaves para a compreensão de uma verdade"?

      A crônica exemplifica isso através da análise das traições de Judas e Pedro, mostrando como a mesma história bíblica pode ter diferentes interpretações dependendo do ponto de vista (literário, psicológico, cultural). A revelação do sábio chinês Lee sobre a palavra hebraica "liberta-te" dita a Caim também ilustra como uma única palavra, com seus múltiplos significados, pode ressignificar uma narrativa inteira.

07 – Qual a importância da revelação do sábio chinês Lee sobre o significado da palavra dita a Caim na Bíblia?

      A revelação de Lee, de que a palavra que Deus diz a Caim significa "liberta-te", é crucial pois quebra o "enredo trágico" que Adam havia destinado aos seus filhos. Essa ressignificação da história bíblica transforma a perspectiva do pai sobre Caleb e Aron, permitindo que ele abrace o filho e o liberte de um destino fatídico. Isso demonstra como a interpretação de uma narrativa pode ter um impacto profundo na vida real.

08 – O que a crônica entende por "histórias que nos possuem" e como elas influenciam nossa vida?

      "Histórias que nos possuem" são narrativas recorrentes e sempre presentes em nossas vidas, sejam elas contos milenares (Cinderela, Chapeuzinho Vermelho), obras literárias ("O Pequeno Príncipe") ou familiares. Elas condicionam nosso modo de ver a vida, tomar decisões e resolver problemas, funcionando como um "currículo oculto" e uma "bagagem" que cada indivíduo traz consigo.

09 – Que risco a autora aponta em relação ao professor que lida com a "bagagem" cultural dos alunos?

      A autora alerta para o risco de o professor, mesmo sendo sensível à causa indígena, por exemplo, usar o aluno como um meio de saciar sua própria curiosidade sobre lendas e costumes. Isso pode ter um "efeito devastador", pois a história, apesar de ser um material de "grande carga afetiva", pode aprisionar a pessoa se ela for relacionada unicamente a uma determinada narrativa.

10 – Qual a metáfora final utilizada pela autora para descrever a "aventura literária" e o que ela sugere sobre o ato de ler e navegar por histórias?

      A autora utiliza a metáfora do "mar de histórias" (expressão sânscrita) para descrever o universo das narrativas e a aventura literária. Ela sugere que é preciso ter um caminho e manter o leme firme (orientação), mas também ter a consciência de que se navega em "águas que ora podem ser muito tranquilas, ora podem se transformar em verdadeiros maremotos". Isso implica que a leitura é uma jornada corajosa, cheia de descobertas, mas também de imprevisibilidade e desafios.

 

CONTO: A ENCOMENDA - RUY FABIANO - COM GABARITO

 Conto: A encomenda

           Ruy Fabiano

O telefonema me incumbia de missão desagradável: remeter ao Brasil as cinzas de alguém que nem sequer conheci. Juliana, minha grande amiga, a quem devo gentilezas impagáveis, e suas duas irmãs (que vi apenas umas poucas vezes) perderam a mãe, dona Gina, em Roma, há duas semanas.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhCQlFviwSwOTFPJENvVIP534VGodjXuYjmHc3PnA8UcdwQJAd21p3unBri0HaYu6O3DoGVorNKudqWPPtmsQ-JJc6D2u7QvZN4OD02OLFwAJX_jm1hSmebwkb2NFlsguct6h6HrZ4VoRm15ec3s9eAD15SSmnYnBmj6yT3xXosmRb7oPAEuZD9hYXjnAk/s320/81MJKs01yDL._UF894,1000_QL80_.jpg


        Por vontade da falecida, expressa em testamento – e providenciada por um velho tio napolitano, a seguir hospitalizado –, seu corpo foi cremado e as cinzas postas à disposição das filhas no crematório municipal, rua tal, n° tal. As filhas não teriam condições de pessoalmente recolher os despojos, pois tinham compromisso profissional no Brasil. Como eu estava morando na cidade, não custava nada providenciar e quebrar assim um imenso galho para a família. A procuração estava seguindo pelo correio, dando-me plenos poderes para representá-las.

        Jamais me esqueceriam.

        Tudo muito asséptico: as cinzas estariam depositadas num cofre lacrado, que caberia sem problemas naquelas embalagens vendidas na própria agência do correio. O custo era baixo e a segurança, total. Essas remessas, inclusive, já eram mais ou menos rotineiras, disse-me minha amiga. E me relatou histórias análogas que me pareceram improvisadas para me convencer. Não soube recusar.

        Era a segunda tarefa trabalhosa que me mandavam do Brasil no mesmo período. Antes de Juliana, ligara-me Dulce, mulher do meu editor, socialite desocupada, ciente de seu poder de influência, com um pedido perfeitamente supérfluo e dispensável: que lhe mandasse orégano italiano pelo correio.

        O orégano de Roma, disse-me ela, sobretudo um vendido na rua tal, n° tal, era incomparável, dava um sabor especial à pizza, e Olavinho, o editor, era tarado por pizza etc. Como contrariar um editor, sobretudo quando se está fora? Dele depende não apenas o emprego, mas a presteza no atendimento às emergências, a gentileza na concessão de algumas regalias (passagens extras para o Brasil ou para países próximos, adiantamentos salariais, free-lancers, etc.).

        Já havia providenciado o pedido de Dulce quando fui em busca das cinzas da velha, uma semana depois do telefonema de Juliana, devidamente munido da procuração. O saco de orégano estava dentro de uma caixa em cima da mesa da sala de jantar. Quando cheguei do crematório, onde me submeti a penosos ritos burocráticos, coloquei a embalagem fúnebre ao lado da comestível.

        Sentia-me exausto.

        Trazer as cinzas de alguém dentro de um táxi parecera-me um tanto bizarro. Mais ainda tê-las dentro de casa. Sempre me impressionei demasiado com o mistério da morte e jamais imaginei um dia tê-la a tiracolo, armazenada numa caixa. O táxi circulava pelas ruas movimentadas de Roma e eu ali, com um defunto esfarinhado ao colo. O dia chuvoso acentuava a atmosfera mórbida.

        Busquei ser o mais objetivo possível. Tentei pensar em coisas diferentes: a escalação da seleção brasileira, por exemplo; nossa crônica carência de goleiros e o indefectível drible a mais de nossos pontas. Pensei também no imposto de renda, na injustiça fiscal, no desconforto de declará-lo do exterior.

        Mas a lembrança da morte encaixotada sempre retornava.

        Fui dormir tentando driblar o assunto. Recorri a um sonífero. No dia seguinte me desincumbiria das duas tarefas ao mesmo tempo, na mesma agência dos correios, e nunca mais aceitaria encomendas em crematórios ou necrotérios. No meu testamento, se um dia fizer um, exigirei que minhas cinzas sejam liberadas ao vento no ato mesmo da cremação. Nada de remessas postais, virtuais ou seja lá como for.

        Fiz tudo direito, com o máximo cuidado para não confundir as encomendas. Lembro-me de que preenchi as etiquetas sem perder de vista o movimento nervoso que a funcionária do guichê fazia com as duas caixas, que tinham dimensão equivalente. Para diferenciá-las, marquei um "x" numa delas.

        Não sei o que aconteceu.

        Juliana me ligou do Rio esta manhã para dizer que tinha gostado muito do orégano, mas que continuava aguardando, ela e suas irmãs, as cinzas da mãe; que poderia despachá-las, se preferisse, pelo malote semanal da embaixada brasileira, pois tinham um parente no Itamaraty, no Rio, que poderia ser o destinatário. Disse mais: que não tinham notado inicialmente o conteúdo diverso da encomenda e que tinham mandado celebrar missa in memoriam na presença das supostas cinzas.

        Velaram o orégano, emocionaram-se diante dele, o que, posteriormente, foi encarado até com humor (felizmente). Mas continuavam à espera das cinzas, quando chegariam, que precisavam marcar a data do sepultamento simbólico, que ficariam guardadas no gavetório da catedral da cidade etc.

        Fui obrigado a mentir, a falsear a verdade – e me sinto muito mal com isso. Cheguei a me engasgar. O crematório, disse, havia feito novas exigências burocráticas e só amanhã a encomenda seguiria, que tudo enfim estava resolvido. O orégano foi uma gentileza, disse, pois lembrei-me de que ela gostava muito de pizza (perguntou-me como eu descobrira, já que nunca falara disso a ninguém).

        Estou agora pensando num modo de conseguir cinzas falsas e remetê-las ao Brasil. Não faço ideia de por onde começar. Terei que voltar ao crematório municipal. A pista tem que estar lá. Recuso-me a avaliar meu gesto. Ajo tendo em vista a relação custo-benefício. Não há individualidade em cinzas.

        Quanto à mulher do meu editor, aí sim, me encalacrei: não sei como farei para providenciar outra remessa como aquela. As cinzas de dona Gina foram degustadas com euforia pelo casal e um círculo íntimo de gastrônomos, que ficaram impressionados com o sabor picante, "a condimentação na intensidade exata", e agora querem saber que tempero é aquele, em que casa o comprei e se posso passar a enviá-lo periodicamente.

Ruy Fabiano.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP - São Paulo – 2005. p. 29-31.

Entendendo o conto:

01 – Qual era a "missão desagradável" que o narrador recebeu de Juliana?

      A "missão desagradável" que o narrador recebeu de Juliana era a de remeter ao Brasil as cinzas de sua mãe, Dona Gina, que havia falecido em Roma. O narrador se sentia desconfortável com a tarefa, especialmente por não ter conhecido a falecida.

02 – Que outra encomenda o narrador havia recebido do Brasil no mesmo período, e de quem?

      Antes do pedido de Juliana, o narrador havia recebido uma encomenda de Dulce, a esposa de seu editor. O pedido de Dulce era que ele lhe enviasse orégano italiano pelo correio, alegando que o orégano de Roma era incomparável e dava um sabor especial à pizza.

03 – Qual o conflito interno do narrador ao ter as cinzas de Dona Gina em sua casa e no táxi?

      O narrador sentia-se exausto e bizarro com a situação. Ele sempre se impressionou com o mistério da morte e jamais imaginou tê-la "a tiracolo, armazenada numa caixa" ou "um defunto esfarinhado ao colo" dentro de um táxi. A atmosfera mórbida, acentuada pelo dia chuvoso, intensificava seu desconforto.

04 – Que medidas o narrador tomou para tentar diferenciar as duas encomendas na agência dos correios?

      Para diferenciar as duas encomendas (as cinzas de Dona Gina e o orégano), o narrador preencheu as etiquetas com o máximo cuidado e marcou um "x" em uma das caixas. No entanto, ele não conseguiu acompanhar o movimento nervoso da funcionária do guichê, que lidava com as duas caixas de dimensão equivalente.

05 – Qual a confusão hilária que ocorreu com as encomendas após o envio?

      A confusão hilária foi que as cinzas de Dona Gina foram enviadas para a mulher do editor (Dulce) como orégano, e o orégano foi enviado para a família de Juliana como as cinzas da mãe.

06 – Como a família de Juliana reagiu ao receber a encomenda errada?

      A família de Juliana, inicialmente, não notou o conteúdo diverso e chegou a celebrar uma missa in memoriam na presença do suposto orégano. Embora posteriormente tenham encarado a situação com humor, continuavam à espera das cinzas para o sepultamento simbólico, forçando o narrador a mentir sobre novas exigências burocráticas do crematório.

07 – Qual a reação de Dulce e seu círculo de gastrônomos ao "tempero" que receberam?

      Dulce e seu círculo de gastrônomos degustaram as cinzas de Dona Gina com euforia, ficando "impressionados com o sabor picante, 'a condimentação na intensidade exata'". Eles passaram a querer saber a origem do tempero e se o narrador poderia enviá-lo periodicamente, complicando ainda mais a situação dele.

08 – O que o narrador decide sobre suas próprias cinzas após essa experiência?

      Após a experiência traumática, o narrador decide que, se um dia fizer um testamento, exigirá que suas cinzas sejam liberadas ao vento no ato mesmo da cremação, sem "remessas postais, virtuais ou seja lá como for". Isso reflete seu desejo de evitar o destino "encaixotado" que ele mesmo providenciou para Dona Gina.

09 – Por que o narrador se sente mal ao mentir para Juliana e qual sua estratégia para resolver a situação com as cinzas?

      O narrador se sente muito mal e chega a se engasgar ao mentir para Juliana sobre as novas exigências burocráticas do crematório. Para resolver a situação, ele começa a pensar em um modo de conseguir cinzas falsas e remetê-las ao Brasil, planejando retornar ao crematório municipal em busca de uma "pista".

10 – Qual o dilema final do narrador em relação às duas encomendas?

      O dilema final é que, enquanto ele tenta encontrar uma solução para as cinzas de Dona Gina (produzir cinzas falsas), ele se vê "encalacrado" com a mulher do editor (Dulce). Agora, Dulce e seus amigos querem saber onde ele comprou o "tempero" (as cinzas) e se ele pode enviá-lo periodicamente, criando uma nova e bizarra demanda para o narrador.

 

CRÔNICA: AREIAS DE PORTUGAL - CARLOS HEITOR CONY - COM GABARITO

 Crônica: Areias de Portugal

              Carlos Heitor Cony

        No meio do quintal, ao lado da casa, havia a mangueira, enorme, de um de seus ramos o pai pendurara um balanço que teve seus dias de glória até que meu irmão dele se despencou. Minha mãe iniciou campanha feroz e bem-sucedida, o balanço serviu de lenha numa fogueira de Santo Antônio.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjm-Ojyt2bczsXOcAqwPEplXjcgcn7fqo9WWZtCIty8tthO-yPs-YYs2ZZUl3LhxtVCWfEmWjG6vFUWrAsMc_yV4DCZooW32v6jDUhUy4boPHXqI1FfoLfKUUApZEB0tM8Y_3k_-o0mG7iZdl-nGX879TYwf4LHKdaL56FU0OUAA7PQ0L4SwzVHKATQFSM/s320/0093088_regular_festa-junina-regiao-das-missoes-karol-rocha-sao-miguel-das-missoes-fone-festa-junina-jesuita-missioneira-sao-pedro-sao-joao-santo-antonio-(7).jpg

        Naqueles dias, Humberto de Campos publicara uma página de suas memórias, evocando o cajueiro de sua infância. Meu pai lera a crônica para mim. Recortei-a do jornal e quase a decorei. Pior: procurei imitar o menino que subia nos galhos mais altos e gritava: "Assobe, assobe, gajeiro, naquele topo real, para ver se tu avistas terras de Espanha, Otolina, areias de Portuga!!".

        Passei a subir nos galhos mais altos, onde descobri um nicho no meio das folhas verdes e perfumadas – como só as mangueiras sabem ter. E lá de cima eu também gritava aos ventos da Boca do Mato, garantindo que via terras de Espanha, quando, na verdade, via apenas os tetos cor de moringa da vizinhança, ao longe a torre mais-que-branca da Matriz de Nossa Senhora da Guia e, depois, a formidável massa azulada do pico da Tijuca.

        Pois ontem, tantos anos depois, sonhei com a mangueira dos dias antigos do passado. No sonho, ela surgia destacada, talvez mais alta e mais espetacular. E como na paisagem do sonho era quase noite, ela parecia iluminada por dentro, um pouco fosforescente, mas sem dúvida era a minha mangueira, intacta, esperando por mim.

        Olhei-a bem e não foi difícil encontrar, em seus ramos mais altos, o nicho de folhas verdes e perfumadas – como só as mangueiras sabem ter. Lá estava ele, também, intacto, reconheci até mesmo o galho mais forte em que me segurava com maior confiança, deixando a outra mão livre para proteger os olhos do sol e dos ventos do mar largo. E de onde o menino, que nada vira do mundo até então, assombrado, avistava terras de Espanha, areias de Portugal.

Carlos Heitor Cony.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP - São Paulo – 2005. p. 28.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a importância da mangueira na infância do narrador?

      A mangueira era um elemento central na infância do narrador, servindo como o local onde o pai pendurou um balanço, que teve "dias de glória" antes de ser removido. Mais importante ainda, a mangueira se tornou o refúgio e ponto de observação do menino, onde ele se aventurava a imitar o personagem de Humberto de Campos.

02 – Como a crônica de Humberto de Campos influenciou o menino narrador?

      A crônica de Humberto de Campos, que evocava o cajueiro de sua infância, inspirou o menino a imitar o personagem que subia nos galhos e gritava avistando terras distantes. Essa leitura o levou a procurar um nicho na sua própria mangueira para reproduzir a cena, estimulando sua imaginação e seu senso de aventura.

03 – O que o menino realmente via do alto da mangueira, em contraste com o que gritava?

      Embora gritasse que via "terras de Espanha, Otolina, areias de Portuga!!", o menino, na verdade, via apenas os "tetos cor de moringa da vizinhança", a "torre mais-que-branca da Matriz de Nossa Senhora da Guia" ao longe, e a "formidável massa azulada do pico da Tijuca". Isso destaca a força da imaginação infantil sobre a realidade.

04 – Qual o significado do sonho do narrador com a mangueira, tantos anos depois?

      O sonho com a mangueira tantos anos depois simboliza a permanência e a vivacidade das memórias de infância. No sonho, a mangueira surge "intacta, esperando por mim", "iluminada por dentro", representando um refúgio nostálgico e um portal para o passado, onde o narrador pode reencontrar sua essência de criança e a capacidade de sonhar.

05 – O que a última frase "E de onde o menino, que nada vira do mundo até então, assombrado, avistava terras de Espanha, areias de Portugal" revela sobre a perspectiva da infância?

      Essa frase final encapsula a magia e a vastidão da imaginação infantil. Mesmo sem ter visto o mundo real, o menino, através da fantasia inspirada pela leitura, era capaz de "avistar" terras distantes. Isso sugere que, na infância, a imaginação é um poderoso meio de explorar e compreender o mundo, superando os limites da experiência física.

 

ARTIGO DE OPINIÃO : BAR MEMÓRIA - CARLOS HEITOR CONY - COM GABARITO

 Artigo de opinião: Bar Memória

                Carlos Heitor Cony

        Era um botequim feio, muito feio mesmo. Três portas esquálidas, paredes encardidas, balcão sórdido com empadas sinistras, de longe se adivinhavam o mofo, as sombras, o vago cheiro de túmulo. O nome o salvava: Bar Memória. Nome inexplicável: o botequim nem merecia a classificação de bar. E por que memória? Quem nele se lembraria de alguém ou de alguma coisa? Pior: quem dele se lembraria?

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi62SCjrC30Pe-409djyxparc1SiX4MzA34dWu4x2dmb1R5jtExe1Vl3W4v0rs3vIKbo8MLvcsI1iPwwRv31f8mhrvlMJz20-Daplp_5RSGqW_BkdpoCnR6OvA9q6DrY2FOSbQTZVod6sYGSpi33wX__THTu54UX6U0QrvQ1gfsdb9uy_t2ntntL6xiQgs/s1600/images.jpg


        Sua importância era topográfica. Ficava numa terra-de-ninguém da cidade – cidade que cada vez mais se tornou terra-de-ninguém. Para os Correios e Telégrafos, o Bar Memória ficava no Jardim Botânico. Para os tributos estaduais e municipais, ficava na Gávea. Para a Receita Federal ficava na Lagoa. Policialmente, pertencia à 16a Delegacia, do Leblon. Para o Corpo de Bombeiros, era o Jóquei. O Tribunal Regional Eleitoral o alistou como reserva democrática do Horto.

        Sem sair do lugar, flutuando no chão da cidade, ele existia sem existir, escombro de um fantasma que não pertencia especificamente a nada e a ninguém. Espaço imponderável, um assassinato ali cometido, com um bom advogado a favor do criminoso, jamais seria punido: faltaria a localização exata para determinar o local do crime.

        Estava sempre vazio, nunca vi luz que aliviasse sua penumbra. À noite, ele continuava fiel à escuridão, duas ou três lâmpadas empoeiradas não iluminavam as paredes encardidas e tristes. A luz, trêmula e fria, tornava mais pesadas suas sombras.

        Pois o Bar Memória foi abaixo, esta semana. Nos jornais, a foto conseguia transmitir sua solidão de bar, sua escuridão de memória. A escavadeira do município rasgou sua carne cansada, estraçalhou seu ventre de trevas. O Bar Memória se desmanchou sem resistência, sem dar um grito.

        E como seu chão era imponderável, ele continuará imponderável. Ficará intacto no meio da nova pista que dará acesso à Barra. Não deixará saudade. Não deixará memória, o Bar Memória.

Carlos Heitor Cony.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP - São Paulo – 2005. p. 27.

Entendendo o artigo:

01 – Qual era a principal característica do Bar Memória, e como o autor a descreve?

      A principal característica do Bar Memória era sua extrema feiura e degradação. O autor o descreve como um "botequim feio, muito feio mesmo", com "três portas esquálidas, paredes encardidas, balcão sórdido com empadas sinistras", além de um "vago cheiro de túmulo" e penumbra constante.

02 – Por que o nome "Bar Memória" era irônico e inexplicável para o autor?

      O nome era irônico e inexplicável porque o bar era tão insignificante e desagradável que o autor questionava: "Quem nele se lembraria de alguém ou de alguma coisa? Pior: quem dele se lembraria?". O lugar não possuía qualidades que justificassem ser lembrado ou associado à memória.

03 – Como o texto explora a ideia de que o Bar Memória era uma "terra-de-ninguém"?

      O texto explora essa ideia através da confusão topográfica e burocrática do bar. Ele não pertencia a um único bairro ou jurisdição, sendo localizado em diferentes áreas (Jardim Botânico, Gávea, Lagoa, Leblon, Jóquei, Horto) por diferentes órgãos. Essa indefinição geográfica reforçava sua natureza de "escombro de um fantasma" e um "espaço imponderável".

04 – O que a demolição do Bar Memória simboliza, e qual o seu desfecho irônico?

      A demolição simboliza o fim de algo que já "existia sem existir", um escombro de um passado sem relevância. O desfecho é irônico porque, apesar de seu nome, o Bar Memória "não deixará saudade. Não deixará memória, o Bar Memória", ou seja, sua existência era tão efêmera e sem impacto que mesmo sua destruição não geraria lembranças.

05 – Qual a relação entre a falta de localização exata do Bar Memória e a impunidade de um possível crime?

      O autor sugere que a falta de localização exata tornava o bar um "espaço imponderável" onde um assassinato, se cometido, jamais seria punido. Isso porque, com um bom advogado, seria impossível determinar o "local exato do crime", aproveitando a ambiguidade geográfica do estabelecimento para fins jurídicos.

 

CRÔNICA: MAGIA E MILAGRE DA PALAVRA - FREI BETTO - COM GABARITO

 Crônica: Magia e milagre da palavra

        As palavras pesam. Talvez porque sejam a mais genuína invenção humana. Os papagaios não falam, apenas repetem. Não escapam de seus limites atávicos. Curioso é organismo humano não possuir um órgão específico da fala. O olho é a fonte da visão, como o ouvido, da audição. A língua facilita a deglutição, como a traqueia, a respiração. No entanto, a ânsia de expressar-se levou o ser humano a conjugar mente e boca, órgão da respiração e da deglutição, para proferir palavras.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgUonCbrPkr4W_Bt9diBFddVtuOI8bhLNuUAB1EutnCWxatBcWmsfl837oIlPheXqMUBs2890RqbEzQ7ZLHV0YdfeQmGK86t0XcnpvpaWv8DhR-gf8WaIS6nb34jGKEqEHFWczunPPxQQam9vYIMyhVZg2_D-zT_criyrqjEoGQRWUwb6bnEQVqpa2wsKs/s320/maxresdefault.jpg


        "No princípio era o Verbo", reza o prólogo do evangelho de João. Deus é Palavra e, em Jesus, ela se faz carne. O mundo foi criado porque foi proferido: "E Deus disse: 'Haja a luz' e houve luz", conta o autor do Gênesis.

        Vivemos sob o signo da palavra. Unir palavra e corpo é o mais profundo desafio a quem busca coerência na vida. Há políticos e religiosos que primam pela abissal distância entre o que dizem e o que fazem. E há os que falam pelo que fazem.

        A palavra fere, machuca, dói. Proferida no calor aquecido por mágoas ou ira, penetra como flecha envenenada. Obscurece a vista e instaura solidão. Perdura no sentimento dilacerado e reboa, por um tempo que parece infinito, na mente atordoada pelo jugo que se impõe. Só o coração compassivo, o movimento anagógico e a meditação livram a mente de rancores e imunizam-nos da palavra maldita.

        Machado de Assis ensina que as palavras têm sexo, amam-se umas às outras, casam-se. O casamento delas é o que se chama estilo.

        A palavra salva. Uma expressão de carinho, alegria, acolhimento ou amor, é como brisa suave que ativa nossas melhores energias. Somos convocados à reciprocidade. Essa força ressurrecional da palavra é tão miraculosa que, por vezes, a tememos. Orgulhosos, sonegamos afeto; avarentos, engolimos a expressão de ternura que traria luz; mesquinhos, calamos o júbilo, como se deflagrar vida merecesse um alto preço que o outro, a nosso parco juízo, não é capaz de pagar. Assim, fazemos da palavra, que é gratuita, mercadoria pesada na balança dos sentimentos.

        Vivemos cercados de palavras vãs, condenados a uma civilização que teme o silêncio. Fala-se muito para dizer bem pouco. Nas músicas juvenis abundam palavras e carecem melodias. Jornais, revistas, tevê, outdoors, telefone, correio eletrônico – há demasiado palavrório. E sabemos todos que não se dá valor ao que se abusa.

        Carecemos de poesia. O poeta é um entusiasmado, no sentido grego de en + theós = com um deus dentro. Como sublinha Platão no lon, nele fala a divindade, o Outro. Em linguagem psicanalítica, fala o inconsciente. Como Orfeu, o poeta desce à noite dos infernos para recuperar Eurípides, o fantasma do desejo.

        Nossa lógica cartesiana faz do palavrório uma defesa contra o paradoxo. No entanto, sem paradoxo não há arte. O belo é irredutível à palavra, mas só a palavra expressa a estética. O silêncio não é o contrário da palavra. É a matriz. Talhada pelo silêncio, mais significado ela possui. O tagarela cansa os ouvidos alheios porque seu matraquear de frases ecoa sem consistência. Já o sábio pronuncia a palavra como fonte de água viva. Ele não fala pela boca, e sim do mais profundo de si mesmo.

        Há demasiado ruído em nós e em torno de nós. Tudo de tal modo se fragmenta que até a hermenêutica se cala. Hermes, o deus mensageiro, já não nos revela o sentido das coisas, mormente das palavras, que se multiplicam como vírus que esgarça o tecido e introduz a morte.

        Guimarães Rosa inicia Grandes sertões, veredas com uma palavra insólita: "Nonada". Não nada. Não, nada. Convite ao silêncio, à contemplação, à mente centrada no vazio, à alma despida de fantasias.

        Sabem os místicos que, sem dizer "não" e almejar o Nada, é impossível ouvir, no segredo do coração, a palavra de Deus que, neles, se faz Sim e Tudo, expressão amorosa e ressonância criativa.

Frei Betto.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP - São Paulo – 2005. p. 24-25.

Entendendo a crônica:

01 – Por que o autor afirma que "as palavras pesam" e qual a sua principal distinção em relação à comunicação animal?

      O autor afirma que "as palavras pesam" porque são a mais genuína invenção humana, distinguindo-nos dos animais. Enquanto papagaios apenas repetem sons e não escapam de seus limites atávicos, os humanos conjugam mente e boca para proferir palavras, revelando uma capacidade de expressão única e complexa que lhes confere peso e significado.

02 – Como o texto relaciona a palavra com a criação divina e a coerência humana?

      O texto relaciona a palavra com a criação divina ao citar "No princípio era o Verbo" e "E Deus disse: 'Haja a luz' e houve luz", indicando que a palavra divina tem poder criador. Para os humanos, a crônica destaca que unir palavra e corpo (fala e ação) é o maior desafio para alcançar a coerência na vida, contrastando com aqueles que demonstram uma "abissal distância" entre o que dizem e o que fazem.

03 – De que forma as palavras podem ferir e qual o caminho para superar esses impactos negativos?

      As palavras podem ferir profundamente, "machucando" e "doendo" como "flechas envenenadas" quando proferidas com mágoa ou ira, instaurando solidão e perdurando na mente com rancor. O caminho para superar esses impactos, segundo o autor, é o coração compassivo, o "movimento anagógico" (ascensão espiritual) e a meditação, que livram a mente de rancores e imunizam contra a "palavra maldita".

04 – Qual a "força ressurrecional" da palavra, segundo o autor, e por que, paradoxalmente, a tememos?

      A "força ressurrecional" da palavra reside em sua capacidade de salvar, acolher e ativar "nossas melhores energias" com expressões de carinho, alegria ou amor, promovendo a reciprocidade. Paradoxalmente, a tememos por orgulho, avareza ou mesquinhez, sonegando afeto e engolindo ternura, como se a palavra, que é gratuita, fosse uma "mercadoria pesada na balança dos sentimentos".

05 – Qual a crítica do autor à "civilização que teme o silêncio" e ao excesso de "palavrório"?

      O autor critica a civilização contemporânea que "teme o silêncio" e está condenada ao excesso de "palavrório", onde se fala muito para dizer pouco. Ele exemplifica isso com músicas juvenis sem melodia, e a superabundância de informações em mídias, concluindo que o valor é perdido quando há abuso, gerando um ambiente de "ruído" constante.

06 – Como a crônica diferencia o "tagarela" do "sábio" no uso da palavra, e qual o papel do silêncio nesse contexto?

      O tagarela "cansa os ouvidos alheios" com seu "matraquear de frases" que ecoam "sem consistência". O sábio, por outro lado, "pronuncia a palavra como fonte de água viva", falando "do mais profundo de si mesmo". O silêncio é apresentado não como o contrário da palavra, mas como sua matriz, sugerindo que a palavra "talhada pelo silêncio" possui mais significado e consistência.

07 – Qual o significado da referência a Guimarães Rosa e a palavra "Nonada" no final da crônica?

      A referência a Guimarães Rosa e a palavra "Nonada" ("Não nada. Não, nada.") em "Grandes sertões, veredas" serve como um convite ao silêncio, à contemplação e à mente centrada no vazio. Isso é uma metáfora para a busca mística do "Nada" (o "não" às fantasias e distrações) para, então, ouvir a "palavra de Deus" que se faz "Sim e Tudo" no segredo do coração, alcançando uma "expressão amorosa e ressonância criativa".

 

CRÔNICA: PAULO FREIRE: A LEITURA DO MUNDO - FREI BETTO - COM GABARITO

 Crônica: Paulo Freire: a leitura do mundo

        "Ivo viu a uva", ensinavam os manuais de alfabetização. Mas o professor Paulo Freire, com o seu método de alfabetizar conscientizando, fez adultos e crianças, no Brasil e na Guiné-Bissau, na Índia e na Nicarágua, descobrirem que Ivo não viu apenas com os olhos. Viu também com a mente e se perguntou se uva é natureza ou cultura.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgNfaafAvgrZ1TE7bkpSqoqKgWY32FgzGX4vYXC5awtNaG_3nNruW6DEjAl8gZ40Q_t2a31hhzMwEQSFUjbRC_JAh-8Q9psA3Gp8mPgCxdWrmBDfKppmeCJyd0x8eh-5jYXivsedZIdfPYCho5lOOpkij2ftTDiLjVeizJ9QOAIoxsl1txzbp3ooNJ9Tf4/s320/as-contribuicoes-de-paulo-freire-para-a-alfabetizacao-de-adultos.jpg


        Ivo viu que a fruta não resulta do trabalho humano. É Criação, é natureza. Paulo Freire ensinou a Ivo que semear uva é ação humana na e sobre a natureza. É a mão, multiferramenta, despertando as potencialidades do fruto. Assim como o próprio ser humano foi semeado pela natureza em anos e anos de evolução do Cosmo. Colher a uva, esmagá-la e transformá-la em vinho é cultura, assinalou Paulo Freire. O trabalho humaniza a natureza e, ao realizá-lo, o homem e a mulher se humanizam. Trabalho que instaura o nó de relações, a vida social. Graças ao professor, que iniciou sua pedagogia revolucionária com operários do Senai de Pernambuco, Ivo viu também que a uva é colhida por bóias-frias, que ganham pouco, e comercializada por atravessadores, que ganham melhor.

        Ivo aprendeu com Paulo que, mesmo sem ainda saber ler, ele não é uma pessoa ignorante. Antes de aprender as letras, Ivo sabia erguer uma casa, tijolo a tijolo. O médico, o advogado ou o dentista, com todo o seu estudo, não era capaz de construir como Ivo. Paulo Freire ensinou a Ivo que não existe ninguém mais culto do que o outro, existem culturas paralelas, distintas, que se complementam na vida social. Ivo viu a uva e Paulo Freire mostrou-lhe os cachos, a parreira, a plantação inteira. Ensinou a Ivo que a leitura de um texto é tanto melhor compreendida quanto mais se insere o texto no contexto do autor e do leitor. É dessa relação dialógica entre texto e contexto que Ivo extrai o pretexto para agir. No início e no fim do aprendizado é a práxis de Ivo que importa. Práxis-teoria-práxis, num processo indutivo que torna o educando sujeito histórico.

        Ivo viu a uva e não viu a ave que, de cima, enxerga a parreira e não vê a uva. O que Ivo vê é diferente do que vê a ave. Assim, Paulo Freire ensinou a Ivo um princípio fundamental da epistemologia: a cabeça pesa onde os pés pisam. O mundo desigual pode ser lido pela ótica do opressor ou pela ótica do oprimido. Resulta uma leitura tão diferente uma da outra como entre a visão de Ptolomeu, ao observar o sistema solar com os pés na Terra, e a de Copérnico, ao imaginar-se com os pés no Sol.

        Agora Ivo vê a uva, a parreira e todas as relações sociais que fazem do fruto festa no cálice de vinho, mas já não vê Paulo Freire, que mergulhou no Amor na manhã de 2 de maio. Deixa-nos uma obra inestimável e um testemunho admirável de competência e coerência. Paulo deveria estar em Cuba, onde receberia o título de doutor honoris causa da Universidade de Havana. Ao sentir dolorido seu coração que tanto amou, pediu que eu fosse representá-lo. De passagem marcada para Israel, não me foi possível atendê-lo. Contudo, antes de embarcar, fui rezar com Nita, sua mulher, e os filhos, em torno de seu semblante tranquilo: Paulo via Deus.

Frei Betto.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP - São Paulo – 2005. p. 23-24.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a principal diferença entre o método tradicional de alfabetização ("Ivo viu a uva") e a pedagogia de Paulo Freire?

      A principal diferença é que, enquanto o método tradicional foca apenas no reconhecimento das letras e palavras, a pedagogia de Paulo Freire vai além, promovendo a conscientização e a "leitura do mundo". Freire ensinava Ivo a não apenas ver, mas a compreender criticamente as relações sociais e os contextos por trás da palavra.

02 – Como Paulo Freire utiliza o exemplo da "uva" para ensinar sobre a distinção entre natureza e cultura, e o papel do trabalho humano?

      Paulo Freire explica que a uva, em si, é natureza (Criação). No entanto, o trabalho humano de semear, colher, esmagar e transformar a uva em vinho representa a cultura. Esse processo demonstra como o trabalho humaniza a natureza e, ao mesmo tempo, humaniza o homem e a mulher, criando relações sociais.

03 – De que forma Paulo Freire desmistifica a ideia de "ignorância" em relação a pessoas que não sabem ler?

      Paulo Freire ensinou a Ivo que, mesmo sem saber ler, ele não era uma pessoa ignorante, pois possuía outros saberes, como o de erguer uma casa, tijolo a tijolo. Ele defendia que não existe ninguém mais culto do que o outro, mas sim "culturas paralelas, distintas, que se complementam na vida social", valorizando o conhecimento prático e contextual.

04 – Qual o conceito de "práxis" e sua importância no aprendizado, segundo a crônica?

      A "práxis" é a ação com reflexão (práxis-teoria-práxis), um processo indutivo que torna o educando um sujeito histórico. Na crônica, isso significa que a leitura de um texto se torna mais bem compreendida quando o leitor insere o texto no contexto do autor e no seu próprio, extraindo daí o "pretexto para agir", ou seja, para transformar sua realidade.

05 – O que o princípio epistemológico "a cabeça pesa onde os pés pisam" significa no contexto da leitura do mundo?

      Esse princípio significa que a percepção e a compreensão do mundo são influenciadas pela posição e experiência de cada indivíduo. A crônica exemplifica isso comparando a visão da uva por Ivo (que tem os pés no chão da realidade social) com a visão da ave (distanciada), ou a ótica do opressor e do oprimido, e até mesmo as visões de Ptolomeu e Copérnico sobre o sistema solar.

06 – Qual o significado do último parágrafo da crônica, que aborda o falecimento de Paulo Freire?

      O último parágrafo marca a perda física de Paulo Freire, mas também a permanência de seu legado. A menção à sua ida para o "Amor" e a uma "obra inestimável" ressalta a profundidade de sua filosofia e a coerência de sua vida. O fato de ele ter um convite para receber um título honoris causa em Cuba no dia de sua morte, e sua visão de Deus, reforçam a magnitude e a espiritualidade de sua figura.

07 – A crônica utiliza a repetição de "Ivo viu a uva" de forma proposital. Qual o efeito dessa repetição no texto?

      A repetição da frase "Ivo viu a uva" serve como um ponto de partida e um contraponto constante. Inicialmente, ela representa o ensino mecânico da alfabetização. Ao longo da crônica, a frase é retomada para mostrar as camadas de significado e conscientização que Paulo Freire adicionou a essa simples leitura, transformando-a em uma profunda análise da realidade social, cultural e epistemológica.

 

CRÔNICA: A DESINVENÇÃO - ANTÔNIO PRATA - COM GABARITO

 Crônica: A desinvenção

              Antônio Prata

        Há no sertão do Ceará uma pequena cidade chamada Salitre. Salitre tem pouco mais de 5 mil habitantes, que dormem, comem e amam em pequenas casas caiadas das mais diversas cores. Na rua atrás da igreja, entre a casa azul, de seu Dedé, e a casa amarela, de Dona Lurdes, há uma casa roxa.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgG0cd8vM8Ldrd2Y17spDKL8CDcSpzUgyAX71lGAGp54TtiiXUFngnam0cDhrC0kTAHLf2fwZo2_BDhhyphenhyphenDtzOFLMIB-0C7IkSx-Hlky5xByqZ3pgnv2PbYwrG9L3tNzfPPUlyRDx9boj_Xt88FSN6VZBVJFqzq8XFbQroICNqnQY152nEA7_Cyn2MHZpFw/s320/sddefault.jpg

        Na casa roxa mora o físico Anderson Motta do Nascimento. Desconhecido no Brasil, há poucas semanas Nascimento – como é chamado lá fora – vem causando calorosos debates na comunidade científica internacional, desde que apresentou sua tese no 28° Encontro Internacional de Física, na Bulgária. Anderson só conseguiu comparecer ao encontro graças à venda de três bodes, uma carroça e alguns sacos de feijão de corda, plantado nas últimas chuvas. No congresso, falando um russo fluente (coisa que mesmo os russos têm certa dificuldade em fazer), Anderson expôs sua invenção.

        Pelo que se tem comentado, trata-se da maior revolução tecnológica desde a invenção do pregador de roupas, e o brasileiro tem sido comparado a Sigmundo Bernstein, pai (e mãe) da tampa de rosca.

        Não é, na verdade, uma invenção, mas o contrário. Ele propôs, diante da plateia boquiaberta, nada menos que a desinvenção do carro. Segundo seu raciocínio, se o carro fosse desinventado, acabariam os acidentes de trânsito, uma vez que o próprio trânsito sumiria. Sem trânsito e sem a queima de combustíveis fósseis, o efeito estufa deixaria de existir, a poluição chegaria a níveis irrisórios (e risíveis) e o número de doenças pulmonares cairia drasticamente.

        Tendo que usar as pernas para a locomoção (coisa que, dizem alguns antropólogos, era costume em algumas tribos pouco desenvolvidas das Américas e da Polinésia), as pessoas seriam menos ansiosas, mais bonitas e saudáveis e o colesterol, numa visão otimista, também seria desinventado, ficando os enfartes, derrames e tromboses praticamente extintos.

        Sem a necessidade de asfalto por tudo que é lado, o solo poderia voltar a ser permeável e as enchentes nunca mais aconteceriam. A lista de benefícios que a desinvenção do automóvel traria é infinita, e não caberia num tratado, muito menos numa crônica.

        Empolgados com os estudos de nosso ilustre conterrâneo, cientistas já declaram estarmos vivendo uma mudança nos paradigmas da ciência. Entramos, segundo o historiador Eric Hobsbawn, na Era das Desinvenções – possível título de seu próximo livro.

        Boatos indicam que a NASA estaria estudando os impactos sociais da desinvenção do telefone, o que acabaria com a linha ocupada, os trotes, os enganos, as chamadas a cobrar e faria com que as pessoas, a cada vez que quisessem se falar, se encontrassem.

        Ninguém ousa ainda comentar o que acontecerá se as desinvenções forem levadas a cabo, mas em Salitre, Ceará, dentro das casas coloridas, onde os amigos e parentes de Anderson dormem, comem e amam, agora também se prepara muita buchada, jerimum e farofa para a chegada do filho pródigo na próxima semana. Pelo menos por ali, durante alguns dias, a rotina está sendo desinventada.

Antônio Prata.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP - São Paulo – 2005. p. 21-22.

Entendendo a crônica:

01 – Quem é Anderson Motta do Nascimento e qual a sua "invenção" apresentada na Bulgária?

      Anderson Motta do Nascimento é um físico desconhecido no Brasil, mas que ganhou notoriedade internacional ao apresentar, na Bulgária, a desinvenção do carro. Ele propôs que, se o carro fosse desinventado, uma série de problemas sociais e ambientais seriam resolvidos.

02 – Como Anderson Motta do Nascimento conseguiu financiar sua viagem ao congresso na Bulgária?

      Anderson só conseguiu comparecer ao encontro graças à venda de três bodes, uma carroça e alguns sacos de feijão de corda, que ele mesmo plantou. Isso ressalta a simplicidade e a origem humilde do personagem em contraste com a magnitude de sua ideia.

03 – Quais os principais benefícios que a desinvenção do carro traria, segundo o raciocínio de Anderson?

      A desinvenção do carro traria inúmeros benefícios, como o fim dos acidentes de trânsito e do próprio trânsito, a eliminação do efeito estufa e da poluição (com a queda drástica de doenças pulmonares), a melhora da saúde física e mental das pessoas (com a caminhada e a queda do colesterol) e a prevenção de enchentes (com o solo voltando a ser permeável).

04 – O que a menção a "Sigmundo Bernstein, pai (e mãe) da tampa de rosca" e ao "pregador de roupas" sugere sobre a "invenção" de Anderson?

      Essas comparações servem para exagerar, de forma bem-humorada, a grandiosidade e o impacto inesperado da "desinvenção". Assim como a tampa de rosca e o pregador de roupas foram inovações simples, mas revolucionárias, a ideia de Anderson, apesar de ser o oposto de uma invenção, é vista como algo de proporções igualmente transformadoras.

05 – Qual o novo "paradigma da ciência" que os estudos de Anderson Motta do Nascimento supostamente inauguraram?

      Os estudos de Anderson supostamente inauguraram a "Era das Desinvenções", um novo paradigma na ciência. Isso sugere uma mudança de foco da criação incessante para a reavaliação crítica e a possível eliminação de tecnologias que trouxeram mais problemas do que soluções.

06 – Que outros exemplos de "desinvenções" são citados ou especulados no texto?

      Além da desinvenção do carro, há boatos de que a NASA estaria estudando os impactos sociais da desinvenção do telefone. Essa "desinvenção" eliminaria problemas como linha ocupada e trotes, incentivando as pessoas a se encontrarem fisicamente para conversar.

07 – Como a rotina da cidade de Salitre se prepara para a chegada de Anderson, e o que isso simboliza no final da crônica?

      Em Salitre, amigos e parentes de Anderson se preparam com a organização de uma grande recepção, com buchada, jerimum e farofa. Isso simboliza que, mesmo antes da concretização das grandes "desinvenções", a própria rotina da cidade já está sendo "desinventada" por alguns dias, celebrando o retorno do "filho pródigo" e a esperança que sua ideia traz.