sábado, 10 de setembro de 2022

PEÇA TEATRAL: MÚSICA PARA CORTAR OS PULSOS - RAFAEL GOMES - COM GABARITO

 Peça teatral: Música para cortar os pulsos

        Cena 1: Nomes

        Ricardo
        O nome dele é Felipe.

        Felipe
        O nome dela é Isabela.

        Isabela
        O nome dela é Rosalind.

        Ricardo

        “Quando eu te vi/ eu te amei/ e você sorriu/ porque você soube.”

        Isabela

        “Ri das cicatrizes quem nunca foi ferido.”

        Ricardo

        “Existe amor que não seja à primeira vista?” 

        Quando o Felipe entrou na sala, eu sabia que o amaria.

        Porque eu sou fraco demais para pessoas apaixonantes e o Felipe era apaixonante. (Pausa) Depois que ele conversou comigo e saiu da sala, eu já tinha certeza.

        Felipe

        O nome disso é desalento: quando você não se interessa realmente por ninguém e se sente oco e não se sente bem porque se sente assim. Eu não sou solitário, nem tenho qualquer problema de relacionamento. Pelo contrário, eu tenho vários amigos, encontro pessoas o tempo todo. E eu acabo convivendo com um monte de meninas em volta de mim, meninas muito bonitas e interessantes, por quem eu me sinto atraído. E eu fico com elas e é legal e... E é isso. Depois eu não consigo sentir realmente mais nada.

        Eu terminei recentemente um namoro de um certo tempo. Eu gostava dela, mas era como se nunca tivesse de verdade dentro daquilo, como se nessa hora eu fosse o dublê de mim mesmo. (Tentando explicar.) Funciona assim: eu sou o galã, o personagem principal da minha vida. Eu falo o texto do jeito certo, sou verdadeiro, carismático, razoavelmente inteligente e sedutor – na verdade, eu sou tímido, mas é incrível como as pessoas se sentem atraídas por isso. Só que nas sequências de perigo sentimental, o menor que seja, eu mando chamar meu dublê. Quem vê o filme pensa que sou eu mesmo ali, vivendo aquilo. Mas eu sei que não.

        Ricardo
        O nome disso é projeção. Eu sou esse cara que se apaixona por um monte de gente, o tempo todo, mas eu juro que são coisas diferentes, de jeitos específicos. Amores dentro de mim são como meios de transporte, cada um tem o seu lugar – a água para os barcos, o céu para os aviões, as estradas para os carros... Eu namorava há dois anos quando o Felipe apareceu. E eu precisava me apaixonar de novo, porque eu sou assim... E porque existe essa coisa dentro da gente, muito grande e muito consciente, mas que a gente não controla, que nunca esquece a delícia que é começar. Então eu projetei nele todos os meus novos começos: ele era um cara descobrindo um monte de coisas que eu achava que já sabia e que me lembrava outras que eu já tinha esquecido. E eu me via nele, eu via ele em mim.

        O nome disso é identificação. Porque na verdade a gente quer preencher nossos vazios não com o que nos falta ou completa por ser diferente, mas com o que é confortavelmente familiar.

        Isabela

        O nome disso é substituição. A Rosalind é a maior das personagens esquecidas de todos os tempos. Quase ninguém sabe, mas ela está ali escondida na peça Romeu e Julieta, de Shakespeare, que todo mundo conhece. Agora, quem lembra que Romeu era apaixonado pela Rosalind, antes de conhecer a Julieta, se nem ele mesmo lembra? E eu não tô falando de um tempo longo, não, eu tô falando de minutos. Ele ama a Rosalind, mas, quando a Julieta aparece, uma nova realidade surge – é um Big Bang do amor, como se não tivesse existido nada antes. Mas tinha a Rosalind. Isso não tem nem nome: a rapidez com que o Romeu simplesmente aniquila a Rosalind da cabeça dele é quase desumana. E o pior é que nós, como público, não nos preocupamos com o que sente a Rosalind, porque ela já é apresentada como um acessório na história do Romeu. Ela já nasce esquecida.

        Eu ousaria acreditar que o mundo é feito das Rosalinds, que sofrem bem mais, do que das Julietas, que se deliciam na volúpia das noites de paixão. Metade do mundo, pelo menos. A outra metade é de Romeus, que estão infinitamente confusos e em conflito entre uma e outra – sejam esses Romeus homens ou mulheres.

        Ricardo

        Dizem que o amor é cego e eu acho que essa frase tem mais de uma leitura. Ele é cego não porque não enxerga ou não percebe a natureza do que está na sua frente, mas também porque é capaz de ser seletivo e não misturar paisagens que estão lado a lado. Existem ali caminhos que não se acessam. Nem todo mundo acredita, mas eu continuei amando realmente meu namorado depois que eu também já tinha me apaixonado pelo Felipe. A água para os barcos, o ar para os aviões... Eu não sei se isso tem nome.

        Felipe

        “Se o amor é cego, ele não acerta o alvo.”

        [...]

        Isabela

        Então essa palavra “amor” na verdade define o quê? O amor nunca é só amor. O amor é um monte de outros sentimentos misturados. Que, às vezes, tem nome, às vezes não. Mas é uma mistura ilusionista, nunca um elemento puro. Como a luz branca. Ou... (jogando fora...) sei lá, a Coca-Cola!

        Felipe
        Mês passado eu fui à festa de aniversário de oito anos da minha priminha. Na hora do “com quem será” começou uma confusão enorme. Falaram vários nomes ao mesmo tempo e os meninos começaram a brigar pela posição de pretendente oficial. Aquilo se estendeu, e eu e meus outros primos mais velhos demos corda pras crianças. Só sei que em dado momento eram uns quatro em cima da garota falando coisas como “eu, eu, escolhe eu!”, “fica comigo”, “eu gosto muito mais de você”, e eles se batiam e se empurravam... Oito anos. OITO. Isso poderia fazer da minha prima a garota mais popular e cobiçada da escola, mas ela estava odiando tudo aquilo com uma sinceridade tão intensa. Claramente, o que ela mais desejava era ficar em paz. O amor, eu vi, pode doer desde cedo.

        Mas, mais do que isso, desde sempre ele vai precisar de espaço pra brotar.

        Ricardo
        Quanto tempo você precisa pra gostar de alguém? Quanto tempo você precisa pra deixar alguém?

        Isabela

        “Ora, rapaz! Incêndio a incêndio cura./ Uma dor faz minguar a mais antiga./ Desvirar do virar sara a tontura./ Um desespero a velha dor mitiga./ Deixa os olhos pegar nova infecção,/ para que da velha possas ficar são.”

        Ricardo
        O nome disso é substituição?

        Isabela
        Então o nome da Rosalind está lá escrito pra gente lembrar que tudo começa em algum lugar, tudo tem um antes. Que há coisas que passam despercebidas e pessoas que ficam pelo caminho. Eu imagino a Rosalind chegando em casa de volta do baile em que o Romeu conhece a Julieta, toda descabelada e com a maquiagem borrada, dizendo pra mãe dela: “Eu nunca mais vou amar ninguém!”.

        Foi mais ou menos isso o que eu fiz, quando Gabriel me deixou. Ele era o meu Romeu.

        Ricardo
        Romeu, Mercúcio, Rosalind, Julieta...

        Felipe
        O meu nome é Felipe.

        Ricardo
        O meu nome é Ricardo.

        Isabela
        O meu nome é Isabela. Eu tenho um coração partido e eu nunca mais vou amar ninguém.

GOMES, Rafael. Música para cortar os pulsos: monólogos sentimentais para corações juvenis. São Paulo: Leya, 2012. p. 13-21.

       Fonte: Língua Portuguesa – Se liga na língua – Literatura, Produção de texto, Linguagem – 2 Ensino Médio – 1ª edição – São Paulo, 2016 – Moderna – p. 204-7.

Entendendo a peça teatral:

01 – A primeira cena da peça apresenta ao público sentimentos íntimos de cada um dos personagens. Que sentimentos são esses?

      Felipe sofre porque nunca se apaixonou de verdade, tendo vivido apenas relacionamentos superficiais; Ricardo está apaixonado por Felipe; Isabela está magoada porque Gabriel rompeu o namoro.

02 – Em lugar de apresentar um dos personagens da peça, como fazem Ricardo e Felipe, Isabela cita Rosalind.

a)   Quem é Rosalind?

Uma personagem da peça de Shakespeare. Romeu era apaixonado por ela antes de conhecer Julieta.

b)   Na encenação, em que momento você acha que o público entende por que essa personagem ocupa a atenção de Isabela? Justifique.

No final da cena, Isabela associa explicitamente o sofrimento de Rosalind ao fim de seu namoro com Gabriel, mas é possível intuir isso antes, quando se percebe sua empatia com a personagem shakesperiana.

03 – Ao explicar seus sentimentos, Felipe faz referência a elementos que são típicos do universo do cinema. Identifique os tipos de personagem de ficção que ele cita e explique por que o representam.

      Felipe cita o galã e o dublê. Ele é o primeiro na maior parte do tempo, quando consegue a atenção das pessoas por seu charme pessoal; no entanto, assume a figura do dublê quando deseja evitar um comprometimento emocional maior.

04 – Explique a relação que Ricardo faz entre seu comportamento amoroso e os meios de transporte.

      Ricardo entende que pode experimentar vários sentimentos simultânea e separadamente, porque estes lembram os meios de transporte: cada um ocupa um espaço próprio.

05 – Embora um texto teatral seja criado para ser encenado e, portanto, não necessite de títulos, o dramaturgo optou por usá-los. Justifique a escolha de “Nomes” para a primeira cena.

      Além de propor um jogo com o nome dos personagens, que ora apresentam um ao outro ora a si mesmos, o texto trata da aplicação dos nomes “desalento”, “projeção”, “identificação” e “substituição” para explicar as experiências afetivas vividas por eles.

06 – Volte à página 205 e observe a foto desta cena feita em uma das apresentações de Música para cortar os pulsos.

a)   O subtítulo da peça é “Monólogos sentimentais para corações juvenis”. O que é um monólogo?

É uma cena de peça em que o ator fala consigo mesmo ou se dirige ao público para expressar seus pensamentos. Não há diálogo com outros personagens.

b)   O cenário e a expressão corporal dos atores na foto confirmam a ideia de que a peça é formada por monólogos? Por quê?

Embora ocupem o mesmo palco, os atores estão em espaços individualizados, marcados por cores diferentes. O corpo está voltado para a frente, sugerindo que falam para o público e não entre si, algo que é reforçado pela presença dos microfones.

c)   As falas da primeira cena também criam essa impressão? Justifique.

Sim. Nas falas, os jovens referem-se a outros personagens, mas nunca interagem com eles.

07 – Observe novamente os elementos da foto da página 205. Se você fosse o diretor da encenação, faria alguma alteração no cenário, no figurino ou na disposição dos atores? Se a resposta for positiva, indique qual(is). Se for negativa, justifique por que considerou ideal a forma escolhida.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A encenação fotografada reforça alguns aspectos importantes do texto, como a solidão dos personagens e o fato de estarem envolvidos em um processo de reflexão sobre os próprios sentimentos. As alterações sugeridas precisarão levar em conta esses aspectos.

 

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