Romance: Eles eram muitos cavalos – Fragmento
Luiz Ruffato
1. Cabeçalho
São Paulo,
9 de maio de 2000.
Terça-feira.
2. O Tempo
Hoje, na capital, o céu estará variando
de nublado a parcialmente nublado.
Temperatura – Mínima: 14°. Máxima: 23°.
Qualidade do ar oscilando de regular a
boa.
O sol nasce às 6h42 e se põe às 17h27.
A lua é crescente.
3. Hagiologia
Santa Catarina de Bolonha, nascida
em Ferrara, na Itália, em 1413, foi abadessa de um mosteiro em Bolonha. No
Natal de 1456 recebeu o Menino Jesus das mãos de Nossa Senhora. Dedicou sua
vida à assistência aos necessitados e tinha como única preocupação cumprir a
vontade de Deus. Morreu em 1463.
[...]
36. Leia o
Salmo 38
leia o salmo 38
durante três dias seguidos
três vezes ao dia
faça dois pedidos difíceis
e um impossível
anuncie no terceiro dia
observe o que
acontecerá no quarto dia
[...]
41. Táxi
O doutor tem algum itinerário de
preferência? Não? Então vamos pelo caminho mais rápido. Que não é o mais curto,
o senhor sabe. Aqui em São Paulo nem sempre o caminho mais curto é o mais
rápido. A essa hora... cinco e quinze... a essa hora a cidade já está
parando... as marginais, as ruas paralelas, as transversais, as avenidas,
as alamedas, as ruas, as vielas, tudo, tudo entupido de carros e buzinas. Sabe
que uma vez sonhei que a cidade parou? Parou mesmo, totalmente. Um
engarrafamento imenso, um congestionamento-monstro, como nunca antes visto, e
ninguém conseguia andar um centímetro que fosse... Parece coisa de cinema,
não é não? Pois eu gosto. Gosto muito de assistir filme. Mas prefiro os
antigos. De vez em quando reprisa um na televisão. Tinha uns atores danados de
bons, Tyrone Power, Burt Lancaster... O meu preferido é o Victor Mature,
conhece? Ele fazia o papel de Maciste, lembra? Era bom mesmo... Tem um
retrato dele na parede da sala lá de casa. Bom, não é retrato, é uma fotografia
de revista que a patroa recortou e mandou emoldurar. O senhor entende como é
mulher... Ela sabia que eu era fã do Victor Mature e então pensou em me
agradar... Me deu no aniversário... bastantes anos já. Pendurou na parede da
sala... E eu lá tenho coragem de tirar? Tenho nada. O senhor teria? [...]
[...]
RUFFATO, Luiz. Eles eram
muitos cavalos. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002. p. 11; 73; 84-85.
Fonte: Livro Língua Portuguesa –
Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 125-7.
Entendendo o romance:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Hagiologia: estudo, obra ou tratado a respeito da vida dos santos ou das
coisas santas.
·
Maciste: antigo personagem do cinema italiano que representava um
homem mitológico muito parecido com Hércules que utilizava sua descomunal força
para realizar feitos heroicos.
02 – O que lhe sugere o título
“Eles eram muitos cavalos”?
Resposta pessoal
do aluno.
03 – Com base nos trechos
lidos, identifique:
a) O tema;
O cotidiano de pessoas simples
em um grande centro urbano.
b) O tempo cronológico e o tempo histórico;
Tempo cronológico: o dia 9 de maio de 2000, terça-feira, conforme
indicado no cabeçalho. Tempo histórico: século XXI.
c) O cenário;
Urbano: a cidade de São Paulo.
d) As personagens;
A cidade de São Paulo e as pessoas comuns que habitam a metrópole:
um motorista de táxi, um passageiro que ouve o que ele diz.
e) Os gêneros utilizados na construção das cenas lidas.
Cabeçalho de uma carta sem destinatário e remetente; dados
biográficos de Santa Catarina, protetora dos pobres; uma corrente de oração com
salmo; uma conversa em um táxi.
04 – Quais são os temas do
trecho ou da cena “41. Táxi”?
O
congestionamento da cidade de São Paulo; o comentário do motorista sobre sua
preferência por filmes antigos e sobre sua vida pessoal.
05 – Leia as informações a
seguir:
Zoomorfismo é um recurso de linguagem utilizado
na arte, na religião, na literatura, por meio do qual são atribuídas
características de animais a seres humanos. O título eles eram muitos
cavalos foi extraído de um verso de Cecília Meireles, publicado
na obra Romanceiro da Inconfidência, em que o recurso do zoomorfismo é usado
para se referir tanto aos inconfidentes como a seus cavalos.
Com base nos trechos do livro de
Rufatto que você leu e nas informações que obteve por meio da leitura do boxe
da página anterior, explique no caderno a relação
entre cavalos e pessoas no título eles eram muitos
cavalos.
Essa comparação
pode indicar a situação de desumanização e anonimato em que vivem as pessoas
num grande centro urbano como São Paulo. A palavra cavalo, em sentido figurado,
também pode ter os significados de pessoa rude, rústica; de indivíduo tolo,
parvo, palerma, estúpido; ou de indivíduo que serve de escravo à outro ou que
carrega o mundo nas costas, etc.
06 – As epígrafes costumam
indicar o tema ou algum outro aspecto de uma obra. Além dos versos de Cecília
Meireles, o livro de Ruffato apresenta outra epígrafe. Leia e explique esta
segunda epígrafe: Até quando julgareis
injustamente, sustentando a causa dos ímpios?
Essa epígrafe
questiona e acusa a justiça de não cumprir suas obrigações e estar sempre a
favor dos mais fortes, dos ímpios. Pelo contexto de eles eram muitos cavalos,
pode-se dizer que a epígrafe faz uma alusão ao dever de se fazer justiça e
amparar as pessoas necessitadas, sem identidade e cidadania, que vivem em
grandes centros urbanos como São Paulo.
Características
estruturais de eles eram muitos cavalos:
A obra eles eram muitos
cavalos, de Luiz Ruffato, é um romance polifônico, isto é, apresenta
várias diversas “vozes” que compõem o enredo, o cenário, e cada personagem
funciona como um ser autônomo, com visão de mundo, voz e posições
próprias.
Assim, sua organização/estrutura se
caracteriza por:
·
Não seguir a dos romances tradicionais,
que narram uma sequência de ações em que há relação de causa e consequência
entre elas.
·
Não apresentar os elementos da narrativa
canônica, como enredo, conflito, complicações, clímax, suspense,
desfecho etc.
·
Não apresentar uma trama ou fio condutor
narrativo que conecta as ações e as personagens.
·
Apresentar cenas autônomas, que podem
ser consideradas contos, minicontos ou microcontos.
07 – Identifique as vozes
nas cenas ou trechos lidos.
Nos trechos lidos, podemos identificar
vozes de redator de carta, de redator/locutor de boletim meteorológico, de
hagiológio (biografia de uma santa), de corrente de oração (salmo), de conversa
de um motorista de táxi.
08 – Releia o trecho 36, em
que o autor se apropria de uma oração religiosa, e explique o uso das
formas verbais no modo imperativo: leia, faça, anuncie, observe.
O modo imperativo orienta, ensina as
ações que devem ser realizadas durante três dias para se alcançar a graça
pedida.
09 – Releia a cena/trecho
“41. Táxi” e responda:
a) Quem é o locutor?
Um motorista de táxi.
b) Nessa cena, há marcas de interlocução? Justifique.
Embora o interlocutor não se manifeste, o locutor se dirige a um
passageiro: “O doutor tem algum itinerário de preferência? Não?”; “[...] o
senhor sabe”; “Sabe que uma vez sonhei que a cidade parou”; “O meu preferido é
o Victor Mature, conhece? Ele fazia o papel de Maciste, lembra?”.
c) Por que se usou doutor e senhor, nos trechos a seguir?
·
O doutor tem
algum itinerário de preferência?
·
O senhor entende
como é mulher...
·
E eu lá tenho coragem de tirar? Tenho nada.
O senhor teria?
Para revelar deferência, respeito e tratamento cerimonioso em
relação ao passageiro.
d) Qual é a linguagem empregada nesse trecho? Justifique sua resposta.
A linguagem coloquial, que reproduz a fala cotidiana (“Tinha uns
atores danados de bons [...”), é marcada por repetições de palavras,
interrupções indicadas pelas reticências (“A essa hora... cinco e quinze... a
essa hora a cidade já está parando...”), por interrogações (recursos fáticos)
para se certificar se o locutor está compreendendo (“Ele fazia o papel de
Maciste, lembra?”), etc.
10 – Você sabia que a
linguagem cinematográfica tem influenciado a Literatura brasileira? Essas marcas
estão presentes nos trechos lidos? Justifique.
Sim. A
organização em cenas, como em um roteiro, apresentando flashs, com cortes
rápidos, são marcas do cinema e da teledramaturgia.
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