CONTO: EU, ADOLESCENTE? ESTOU FORA, MEU
Lourenço Diaféria
Conheço várias pessoas que juram que nunca
tiveram adolescência. E acredito. Eu mesmo sou uma delas. Por favor, não me
olhem desse jeito como se eu fosse anormal. Não foi culpa minha. Tive catapora,
sarampo, caxumba, duas fraturas de cúbito e rádio, cheguei a ter espinhas, mas
nunca fui além disso. Adolescência mesmo, que eu me lembre, não tive. E se
tive, eu estava muito ocupado para perceber.
Acho que foi mais ou menos o que
aconteceu com o Napoleãozinho, filho da dona Letícia. Na idade em que todo
garoto gosta de brincar de mocinho e bandido, Napoleãozinho enfiava um chapéu
de papel na cabeça e ficava brincando de guerra. Dona Letícia punha as mãos na
cintura:
- Eta, guri. Se continuar desse jeito vai
acabar general. – Dito e feito. O menino entrou na escola e com 16 anos já era
oficial de artilharia. Daí pra frente ninguém mais segurou o Napoleão
Bonaparte.
O Monet foi outro. Vocês devem ter
ouvido falar do Monet. Em vez de ser adolescente como qualquer adolescente de
15 anos, ficava o tempo todo fazendo caricaturas. Deu no que deu. Foi obrigado
a passar o resto de sua vida pintando quadros que impressionavam os críticos e
marchands.
Porém, o caso mais impressionante de
falta de adolescência aconteceu no Brasil com um garoto chamado Pedrinho. Esse
foi demais da conta. O menino não tinha nem seis aninhos, coitado, foi
obrigado a largar as brincadeiras, a babá, as bolinhas de gude, o ioiô, e foi
proclamado imperador. O garoto era tão pequeno que teve de dar um tempo, tomar
vitaminas, para ficar forte e aguentar o peso da coroa na cabeça. Resultado:
quando envelheceu foi morrer em Paris, num quarto de hotel, chateado da vida.
Meu caso foi diferente. Eu não fui
adolescente porque no meu tempo ninguém era adolescente. Os adolescentes
estavam todo em colégio interno e desfilando de uniforme no Dia da Pátria. A
gente era moleque, só isso. Mesmo que alguém, vamos dizer, cismasse de fazer
alguma adolescentice, era obrigado a fazer lá fora, no quintal. E se voltasse
para casa com os pés sujos entrava na chinelada. Era uma droga. Os pais não
entendiam a gente. E o pior é que a gente também não entendia os pais da gente.
Essa foi a razão por que eu não via a hora de fugir de casa e largar meus pais
se descabelando de desespero, implorando para eu voltar, e eu nem tchum. Pegava
minha mochila, penteava os cabelos, calçava as alpargatas e ia embora de uma
vez por todas. Nem avisava na escola para a professora tirar meu nome do livro
de chamada. Sumia, pronto. Me esqueçam. Na hora da janta eu mudava os planos.
Então meus pais aproveitavam para se vingar de mim. Me obrigavam a engolir a
horrível sopa de legumes e depois me forçavam a comer o horrível bife de fígado
acebolado. Era uma droga sem tamanho.
Mesmo o Piolho, não sei bem se ele
foi adolescente. O que sei é que ele queria ser o diferente da turma. O Piolho
tinha esse apelido porque era loiro como um piolho. Morava na mesma rua que a
gente e de repente a voz dele começou a ficar meio grossa, meio fina. Uma hora
parecia o Hugo de Carril, outra hora parecia o Pato Donald. Acho que era porque
ele fumava escondido do pai, da mãe, da avó e dos tios. Um dia o pai dele virou
a esquina bem na hora em que o Piolho estava dando uma demonstração de fumaça pelo
nariz, o Piolho apagou o Aspásia na hora, engoliu o cigarro com nicotina e
tudo. Nesse dia a voz do Piolho engrossou de vez[...].
Outro cara diferente foi o Gasosa. Além da
coleção do Suplemento Juvenil ele juntava revistas de porcaria. Vivia mostrando
escondido. Quando passava alguém o Gasosa disfarçava, fazia de conta que
a gente estava vendo os quadrinhos do Dick Tracy. O Gasosa também
quebrava vidraças. Ninguém quebrou mais vidraças do que ele. Era conhecido como
o moleque-sem-vergonha. Os donos das vidraças tinham ódio do Gasosa. Até que um
dia deu-se o seguinte: o Gasosa morreu atropelado. Foi uma coisa muito
inesperada. E foi até engraçado. Todo mundo que achava que o Gasosa era
moleque-sem-vergonha foi ver ele morto no caixão. Parecia outro. Quieto,
pálido, nem de perto lembrava o bicho-carpinteiro que tinha sido. As pessoas
olhavam, jogavam água-benta, murmuravam: “Descansou”.
Pensando melhor, talvez eu tenha tido
adolescência, mas sem saber que era adolescência. Devia ser um mistério com
outro nome. Ou uma mágica, cujo truque os pais conheciam, e passavam uns aos
outros, em longas conversas, nas noites propícias para trocar ideias e
experiências, e ouvir a própria voz humana, acima dos ruídos do mundo, como se
ouvia o canto dos galos nas madrugadas. Seja como for, seja como tenha sido,
bem que gostaria de dizer: eu, adolescente? Estou fora, meu. Fazer de
conta que parti com minha mochila às costas. Tirar meu nome da lista de
presença. Contudo, a cada passo que ensaio nessa imaginária fuga, mais me vejo
sitiado de bonês de abas viradas, reggaes, tênis de cano alto, games, dance
misics, clips, fast foods, e alguns olhares cheios de perguntas mudas. E
confesso: sempre fico na dúvida entre dizer- Que droga! – ou contar algumas coisas
que aprendi no meu quintal.
(Lourenço Diaféria. Pais& Teens, ano1, nº 1.)
COMPREENSÃO E INTERPRETAÇÃO
1.Na introdução do texto, o narrador afirma que, no
passado, teve catapora, sarampo, caxumba, fraturas de ossos, mas adolescência
não. Portanto, ele situa a adolescência em qual destes campos
semânticos: fases da vida, doenças ou relacionamentos?
Fases da vida.
2.Segundo o narrador, assim como ele, outras pessoas não tiveram
adolescência. E cita como exemplos três pessoas ilustres que não tiveram
adolescência.
a) Quem são essas
pessoas?
Napoleão Bonaparte, Monet e o garoto
Pedrinho.
b) Que efeito produzem, no contexto, os
diminutivos Napoleãozinho e Pedrinho? Por quê?
Adolescente. Porque
tinha na faixa de 15 anos.
3.O narrador faz referência ao
seu relacionamento com os pais.
a) Como era esse
relacionamento?
Era ruim, a falta de
entendimento.
b) O que
fugir de casa representava para ele? Justifique sua resposta.
Liberdade. Ter o
direito de ser adolescente.
4. No final do texto, o narrador revela uma dúvida que tem
ao ver os jovens de hoje: dizer ”Que droga!” ou contar algumas coisas que
aprendeu no seu quintal Interprete.
a) Por que diria “Que
droga!”?
Pelas frustações
passadas.
b) Que tipo de coisas
poderia contar aos jovens atuais?
As experiências tidas
na adolescência.
5.Ao longo do texto, o narrador muda seu ponto de vista
sobre a possibilidade de ter tido adolescência.
a) O que foi narrado
entre o início e o fim do texto?
A não existência da
adolescência.
b) Logo, que papel
cumpre esse relato que retoma fatos vividos no passado?
O papel de como deve
ser tratado a adolescência nos dias de hoje.
INTERPRETAÇÃO DO TEXTO
1) A forma como se inicia um conto pode ser fundamental para prende
a atenção do leitor ou para fazê-lo desistir de ler. Observe o
primeiro parágrafo desse conto: ele prende nossa atenção de imediato? Explique
por quê.
Sim.
Porque fala de uma fase da vida.
2) O narrador não participa dos acontecimentos, mas ele conta a história
como se visse os fatos pelos olhos do menino e sentisse tudo o que ele sente.
a) Copie do texto um exemplo
que mostra que o narrador conhece os sentimentos do menino.
Adolescência mesmo, que
eu me lembro, não tive.
b) O fato do narrador “entrar
na pele” do menino reflete a linguagem usada por ele – cheia de termos
coloquiais – para contar a história. Retire do texto exemplos deste modo de
falar.
Eta, guri. Se continuar
desse feito vai acabar General.
3) O menino tem um conceito negativo sobre as pessoas adultas que
conhece. Copie do texto uma passagem que comprove esta afirmação.
Os donos das
vidraçarias tinham ódio do moleque-sem-vergonha.
4) Desfecho é o encerramento, a conclusão de um conto, de um romance.
Comente o desfecho deste conto. Que outro desfecho você daria para ele?
Resposta pessoal.