Conto: A
moça que pegou a serpente
Sia era a mais bonita da aldeia. Era tão alta
que nem precisava ficar na ponta dos pés para o azul do céu lhe afagar a
cabeça. Suas formas eram tão redondas que se poderia pensar que ela tinha
nascido da semente mágica de uma cabaça.
Todos os rapazes da aldeia sonhavam se
casar com ela. Todos haviam oferecido ao pai de Sia dinheiro, caules açucarados
de sorgo, amendoins inhames, milhete, voandzu... Mas Sia nunca escolhia: nenhum
dos rapazes lhe agradava o bastante...
Como todos os anos, chegou a chuva das
mangas, e os homens foram cuidar da sua lavoura. A tia de Sia lhe disse:
-- Vamos passear na selva que fica em
volta das nossas roças. Se encontrarmos um rapaz que queira lutar com você,
como é o costume, aceite. Se ele conseguir deitar você no chão, como uma
esposa, então você terá de se casar com ele.
Elas foram passear, a tia cantando:
Sia vem pra rir
e vai rir
Quem vai conseguir
derrubar Sia?
Largando a daba, os rapazes vieram um
depois do outro tentar derrubá-la no chão. Nenhum conseguiu derrotar a bela
Sia. Ou era comprida demais para os braços deles, ou redonda demais para as
mãos deles.
Numa roça havia um rapaz lindo,
lindíssimo, mas que escondia sua boniteza sob uma pele de leproso. O rapaz
parecia estar coberto de lepra, da ponta dos dedos das mãos à ponta dos dedos dos
pés. Ele tinha acabado de despertar de um cochilo quando Sia se aproximou com a
tia. O rapaz disse a ela:
-- Lapya, Sia. Sabe, tenho vontade de
te pegar, como um galo tem vontade de pegar um grão de milhete!
-- Para que ela seja sua, você tem que
ser mais forte que ela e conseguir deitá-la de costas no chão – respondeu a
tia, – Se for capaz, ela será sua esposa.
O rapaz levou Sia à sombra de uma
palmeira-de-leque, cuja folhagem eriçada e crespa murmurava sacudida pela
brisa. Sia e o leproso se engalfinharam, e o rapaz ganhou. Estendeu Sia por
inteiro na sombra que a palmeira fazia no chão.
-- Você venceu porque minha roupa me
atrapalhou. Espere aí, vamos lutar de novo.
Ela tirou a blusa comprida e o pagne.
Eles voltaram a lutar, e o rapaz outra vez deitou Sia de costas no chão.
-- Você ganhou por causa dos meus
enfeites que me atrapalharam. Espere aí, vamos lutar de novo.
Ela tirou as pulseiras dos pulsos e dos
tornozelos, assim como seus colares de contas brancas e o cinto de contas
vermelhos. Voltaram a lutar, e pela terceira vez foi o rapaz leproso que
venceu. Sia chorou tanto, que alguém até pensaria que as lágrimas escorriam não
só dos olhos, mas também das orelhas, da boca, do nariz e do coração.
-- O que está feito, feito está. Este
leproso será seu esposo.
A tia voltou sozinha para a concessão
e, pouco depois, Sia voltou à aldeia acompanhada do rapaz leproso, seu marido.
O tempo passou, mas nenhuma noite Sia
quis dormir junto do marido. Todas as noites ela punha entre sua esteira e a
dele uma porção de cabaças cheias d’água. Assim separada, ela podia dormir e
sonhar.
Quando preparava a comida ela fazia,
para ela e para algumas vizinhas, com farinha bem branca um lindo bolinho, bem
volumoso, com um belo buraco no meio para o molho. Para o marido, ela cozinhava
mais farelo que farinha, e servia numa cabaça rachada.
O marido leproso não dizia nada.
No dia da festa da aldeia, o marido de
Sia resolveu que tinha chegado a hora. Foi à tulha atrás da casa, tirou a pelo
de leproso e escondeu-a debaixo dos grãos de milhete. Feito isso, esgueirou-se
até um canto da selva eu conhecia bem. Lá chegando, acendeu uma bela fogueira.
As chamas num instante ficaram altas e ardentes. Então ele jogou no fogo uma
pedra que tinha escolhido, e logo a pedra se transformou num lindo cavalo.
O marido de Sia foi então até um pé de
farroba, trepou na árvore e sacudiu os galhos. Várias farrobas caíram e, ao
tocarem o chão, transformaram-se em jovens guerreiros, de zagaia em punho e
nádegas cobertas por uma bela pele de cabrito.
Sia, que tinha deixado a festa da
aldeia para dar um breve passeio na selva, tropeçou num toco de pau.
-- Ai! Ui! Toco, por que você machucou
meu pé? Espere só, vou pegar um machado e vou te rachar no meio.
-- Não faça isso! Sente aqui e escute
bem. Sou um toco velho, não comprei minha sabedoria, aprendi tudo o que sei com
a minha longa vida.
Sia sentou-se e escutou.
-- Se você espiar na tulha do seu
marido, vai ver uma coisa que te deixará de boca aberta.
Sia foi correndo ver. Descobriu a pele
de leproso! Sem pensar duas vezes, correu para o meio da aldeia e atirou a pele
na fogueira da festa. Foi então que reconheceu o marido. Ele dançava, mais
lindo que o mais lindo dos lindos, no meio de uma roda de moças. Diante dele,
seus guerreiros tomavam conta do seu cavalo. Ela o viu dançar de braço colado,
de ombro colado, de corpo colado, com as mais bonitas moças da aldeia. Com os
olhos arregalados de espanto, contemplou demoradamente a cena, sem dizer nada a
ninguém, voltou para casa, para socar milhete e preparar uma farinha bem
branquinha. Neste instante o marido, que continuava dançando, sentiu um punhado
de cinzas bater em seu rosto. Eram as cinzas da sua pele de leproso, que tinha
queimado. Bateu palmas para chamar seus guerreiros e seu cavalo.
-- Vamos embora, conheço essas cinzas.
Montou no cavalo e jogou seus
guerreiros no ar. Eles caíram no pé de farroba e viraram de ovo belas farrobas.
Chegando à sua cada, deixou o cavalo ir embora, oferecendo-lhe a liberdade de
virar pedra de novo. Entrou em casa.
-- Sia, minha mulher, estou com calor e
com sede.
Sem demora ela lhe serviu uma água bem
fresquinha numa magnífica cabaça, toda envernizada e entalhada.
-- Ué, agora você me serve água fresca
numa bonita cabaça?
Ele bebeu e indagou:
-- Tem alguma coisa para comer aqui?
Sia lhe ofereceu um delicioso bolo de
mel e o bolinho de milhete numa cabaça novinha.
-- Sua beleza não mudou, Sia, mas seus
modos agora são outros.
Uma estação das águas e uma estação da
seca passaram.
O marido da Sia, que era o mais bonito
homem de todos os homens bonitos desde que tinha se livrado da pele de leproso,
disse-lhe um belo dia:
-- Agora vou aceitar o que você me pede
há duas estações; como você mantém seus novos modos, vou aceitar ser um
verdadeiro marido, com o qual você vai dormir todas as noites para ter filhos.
Assim, nunca vão botar na sua cabeça e nos seus ombros as pedras brancas
reservadas às mulheres cuja barriga não cresce. Mas...
-- Mas?
-- Tem uma condição. Primeiro você vai
ter de ir na selva pegar uma cobra nova e botar na cabaça em que serve meu
bolinho de milhete. É essa a sua prova!
No dia seguinte, Sia foi para a selva,
depois de preparar um bolo doce que carregou na cabeça, numa cesta. Não demorou
a avistar, debaixo de uma pedra chata, uma bela cobra. A cobra estava sem
dúvida de tocaia, esperando que algum rato do alagado se aventurasse por ali.
De longe, Sia atirou um pedaço de bolo para a serpente. A serpente saboreou o
pedaço inteiro. Como parecia gostar, Sia atirou o resto, e a cobra comeu tudo
com prazer. Pouco depois a serpente dormia, acariciada pelo sol.
Pé ante pé, Sia se aproximou. Enfiou
cuidadosamente a mão debaixo da pedra chata e pegou a cobra, que era um pouco
menos comprida e menos grossa que seu braço. Botou a cobra adormecida na cesta
e voltou para casa, de modo a chegar antes do anoitecer.
De noite, ela pôs a cobra na cabaça do
marido. Quando o bolo e o molho ficaram prontos, ela cobriu com eles a cobra e,
logo em seguida, seu marido jantou.
Desde aquela noite, eles viveram
perfeitamente unidos. Logo, logo a barriga de Sia inchou, como para imitar o
redondo do sol; logo, logo um lindo menino saiu da barriga para descobrir o Céu
e a Terra.
-- Meu marido, você me causou muitos
sofrimentos e muito medo, quando quis que eu pegasse uma cobra para a sua
cabaça. Agora é você que tem de me escutar...
-- Sim?
-- Pegue a zagaia e mate um búfalo.
Vamos comer a carne, e nosso filho vai dormir no couro bem seco do bicho. Se
você fizer o que peço, nós dois vamos comer melhor o bolinho de lágrimas.
O
marido de Sia matou um búfalo, e o que Sia quis foi feito.
Ela disse e redisse então às moças da
aldeia:
-- Mesmo se vocês acharem seu marido
feio, nunca devem desprezá-lo.
Yves
Pinguilly. Contos e Lendas da África. São Paulo: Companhia das letras, 2005. p.
177-187.
Fonte: Livro - Para Viver
Juntos - Português - 6º ano - Ensino Fundamental- Anos Finais - Edições SM -
p.64/65/66/67.
Entendendo o conto:
01 – Qual é o problema de Sia no começo da história?
Ela não consegue
encontrar um pretendente que lhe agrade para se casar.
02 – Para que Sia se case,
sua tia a orienta a seguir um costume da aldeia:
a)
Qual é esse costume?
Um pretendente deve lutar com a mulher com a qual queira se casar;
se ele conseguir deitá-la de costas no chão, ela se torna sua esposa.
b)
Por que um dos pretendentes precisou repetir
o ritual (o costume) três vezes?
Porque o pretendente venceu Sia, porém ela não queria se casar com
ele, que, aparentemente, era leproso; então, ela propôs outras duas lutas.
03 – No conto, há três
situações importantes em que as personagens fazem exigências. Copie a ação e
complete-as com essas exigência.
·
Sia se casará com quem...: Lutar com ela e deitá-la no chão.
·
Para Sia ter o belo rapaz como marido, ela
terá de...: Capturar uma serpente nova e coloca-la
dentro de uma cabaça.
·
Para que Sia e o marido vivam bem, ela pede a
ele que...: Mate um búfalo para que eles comam a carne
e usem o couro para o filho dormir.
04 – O rapaz que consegue se
casar com Sia apresenta algumas características comuns às personagens de contos
populares. Que características são essas?
Ele apresenta poderes mágicos, usa um disfarce, é muito belo,
tem um lindo cavalo e conquista uma bela esposa.
05 – Quais ações do rapaz
demonstraram que ele tem poderes especiais?
Ele se disfarça
de leproso, joga pedras na fogueira e as transforma em um cavalo, transforma
farrobas em guerreiros.
06 – A narrativa se passa em
uma aldeia próxima a plantações e a uma floresta na África. Transcreva um
trecho em que se pode perceber isso.
“[...] os homens
foram cuidar da sua lavoura” / “Numa roça havia um rapaz lindo [...]” / “—Vamos
passear na selva que fica em volta das nossas roças”.
07 – Releia os seguintes
marcadores de tempo presentes no conto lido.
I – “Como todos os anos, chegou a chuva das mangas [...]”.
II – “Uma estação das águas e uma estação da seca passaram [...]”
Que informações esses marcadores
fornecem a respeito do espaço em que fica a aldeia? Consulte o glossário para
responder à questão.
Os marcadores
fornecem características das estações do ano da região: chuvosa e seca.
08 – Leia o significado das
palavras a seguir:
·
Cabaça:
fruto da cabaceira que serve de recipiente para alimentos e água.
·
Sorgo:
planta parecida com o milho.
·
Lapya:
expressão equivalente a “bom dia!”.
·
Tulha:
depósito de cereais.
·
Milhete:
tipo de cereal.
·
Voandzu:
alimento parecido com o amendoim.
·
Pagne:
pedaço de tecido que se amarra à cintura, canga.
·
Zagaia:
azagaia, lança de madeira.
Como
essas palavras ajudam a caracterizar o espaço onde se passa a história?
Elas ajudam a
caracterizar o espaço, pois descrevem aspectos culturais próprios do lugar em
que as personagens vivem, no caso, a África.
09 – Ao final do conto, há
um ensinamento de Sia.
a)
Qual é esse ensinamento e a quem é dirigido?
O ensinamento é “Mesmo se vocês acharem seu marido feio, nunca devem
desprezá-lo” e dirige-se as moças da aldeia.
b)
O que levou Sia a concluir tal ensinamento?
Tudo que Sia viveu ao longo da narrativa a levou a perceber que
havia errado em desprezar seu marido por causa das aparências.
c)
Você conhece outras histórias que trazem
algum ensinamento? Cite uma.
Resposta pessoal do aluno.
10 – Há alguma relação entre
o ensinamento transmitido pelo conto “A moça que pegou a serpente” e o
cotidiano que você vive? Justifique sua resposta.
Resposta pessoal
do aluno.
obg
ResponderExcluirNossa esse siteee é muito bommm 💖😎
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