domingo, 11 de agosto de 2019

CONTO: A MOÇA QUE PEGOU A SERPENTE - YVES PINGUILLY - COM GABARITO

Conto: A moça que pegou a serpente
      

     Yves Pinguilly

        Sia era a mais bonita da aldeia. Era tão alta que nem precisava ficar na ponta dos pés para o azul do céu lhe afagar a cabeça. Suas formas eram tão redondas que se poderia pensar que ela tinha nascido da semente mágica de uma cabaça.
        Todos os rapazes da aldeia sonhavam se casar com ela. Todos haviam oferecido ao pai de Sia dinheiro, caules açucarados de sorgo, amendoins inhames, milhete, voandzu... Mas Sia nunca escolhia: nenhum dos rapazes lhe agradava o bastante...
        Como todos os anos, chegou a chuva das mangas, e os homens foram cuidar da sua lavoura. A tia de Sia lhe disse:
        -- Vamos passear na selva que fica em volta das nossas roças. Se encontrarmos um rapaz que queira lutar com você, como é o costume, aceite. Se ele conseguir deitar você no chão, como uma esposa, então você terá de se casar com ele.
        Elas foram passear, a tia cantando:
                Sia vem pra rir
                e vai rir
                Quem vai conseguir
                derrubar Sia?
        Largando a daba, os rapazes vieram um depois do outro tentar derrubá-la no chão. Nenhum conseguiu derrotar a bela Sia. Ou era comprida demais para os braços deles, ou redonda demais para as mãos deles.
        Numa roça havia um rapaz lindo, lindíssimo, mas que escondia sua boniteza sob uma pele de leproso. O rapaz parecia estar coberto de lepra, da ponta dos dedos das mãos à ponta dos dedos dos pés. Ele tinha acabado de despertar de um cochilo quando Sia se aproximou com a tia. O rapaz disse a ela:
        -- Lapya, Sia. Sabe, tenho vontade de te pegar, como um galo tem vontade de pegar um grão de milhete!
        -- Para que ela seja sua, você tem que ser mais forte que ela e conseguir deitá-la de costas no chão – respondeu a tia, – Se for capaz, ela será sua esposa.
        O rapaz levou Sia à sombra de uma palmeira-de-leque, cuja folhagem eriçada e crespa murmurava sacudida pela brisa. Sia e o leproso se engalfinharam, e o rapaz ganhou. Estendeu Sia por inteiro na sombra que a palmeira fazia no chão.
        -- Você venceu porque minha roupa me atrapalhou. Espere aí, vamos lutar de novo.
        Ela tirou a blusa comprida e o pagne. Eles voltaram a lutar, e o rapaz outra vez deitou Sia de costas no chão.
        -- Você ganhou por causa dos meus enfeites que me atrapalharam. Espere aí, vamos lutar de novo.
        Ela tirou as pulseiras dos pulsos e dos tornozelos, assim como seus colares de contas brancas e o cinto de contas vermelhos. Voltaram a lutar, e pela terceira vez foi o rapaz leproso que venceu. Sia chorou tanto, que alguém até pensaria que as lágrimas escorriam não só dos olhos, mas também das orelhas, da boca, do nariz e do coração.
        -- O que está feito, feito está. Este leproso será seu esposo.
        A tia voltou sozinha para a concessão e, pouco depois, Sia voltou à aldeia acompanhada do rapaz leproso, seu marido.
        O tempo passou, mas nenhuma noite Sia quis dormir junto do marido. Todas as noites ela punha entre sua esteira e a dele uma porção de cabaças cheias d’água. Assim separada, ela podia dormir e sonhar.
        Quando preparava a comida ela fazia, para ela e para algumas vizinhas, com farinha bem branca um lindo bolinho, bem volumoso, com um belo buraco no meio para o molho. Para o marido, ela cozinhava mais farelo que farinha, e servia numa cabaça rachada.
        O marido leproso não dizia nada.
        No dia da festa da aldeia, o marido de Sia resolveu que tinha chegado a hora. Foi à tulha atrás da casa, tirou a pelo de leproso e escondeu-a debaixo dos grãos de milhete. Feito isso, esgueirou-se até um canto da selva eu conhecia bem. Lá chegando, acendeu uma bela fogueira. As chamas num instante ficaram altas e ardentes. Então ele jogou no fogo uma pedra que tinha escolhido, e logo a pedra se transformou num lindo cavalo.
        O marido de Sia foi então até um pé de farroba, trepou na árvore e sacudiu os galhos. Várias farrobas caíram e, ao tocarem o chão, transformaram-se em jovens guerreiros, de zagaia em punho e nádegas cobertas por uma bela pele de cabrito.
        Sia, que tinha deixado a festa da aldeia para dar um breve passeio na selva, tropeçou num toco de pau.
        -- Ai! Ui! Toco, por que você machucou meu pé? Espere só, vou pegar um machado e vou te rachar no meio.
       -- Não faça isso! Sente aqui e escute bem. Sou um toco velho, não comprei minha sabedoria, aprendi tudo o que sei com a minha longa vida.
        Sia sentou-se e escutou.
        -- Se você espiar na tulha do seu marido, vai ver uma coisa que te deixará de boca aberta.
        Sia foi correndo ver. Descobriu a pele de leproso! Sem pensar duas vezes, correu para o meio da aldeia e atirou a pele na fogueira da festa. Foi então que reconheceu o marido. Ele dançava, mais lindo que o mais lindo dos lindos, no meio de uma roda de moças. Diante dele, seus guerreiros tomavam conta do seu cavalo. Ela o viu dançar de braço colado, de ombro colado, de corpo colado, com as mais bonitas moças da aldeia. Com os olhos arregalados de espanto, contemplou demoradamente a cena, sem dizer nada a ninguém, voltou para casa, para socar milhete e preparar uma farinha bem branquinha. Neste instante o marido, que continuava dançando, sentiu um punhado de cinzas bater em seu rosto. Eram as cinzas da sua pele de leproso, que tinha queimado. Bateu palmas para chamar seus guerreiros e seu cavalo.
        -- Vamos embora, conheço essas cinzas.
        Montou no cavalo e jogou seus guerreiros no ar. Eles caíram no pé de farroba e viraram de ovo belas farrobas. Chegando à sua cada, deixou o cavalo ir embora, oferecendo-lhe a liberdade de virar pedra de novo. Entrou em casa.
        -- Sia, minha mulher, estou com calor e com sede.
        Sem demora ela lhe serviu uma água bem fresquinha numa magnífica cabaça, toda envernizada e entalhada.
        -- Ué, agora você me serve água fresca numa bonita cabaça?
        Ele bebeu e indagou:
        -- Tem alguma coisa para comer aqui?
        Sia lhe ofereceu um delicioso bolo de mel e o bolinho de milhete numa cabaça novinha.
        -- Sua beleza não mudou, Sia, mas seus modos agora são outros.
        Uma estação das águas e uma estação da seca passaram.
        O marido da Sia, que era o mais bonito homem de todos os homens bonitos desde que tinha se livrado da pele de leproso, disse-lhe um belo dia:
        -- Agora vou aceitar o que você me pede há duas estações; como você mantém seus novos modos, vou aceitar ser um verdadeiro marido, com o qual você vai dormir todas as noites para ter filhos. Assim, nunca vão botar na sua cabeça e nos seus ombros as pedras brancas reservadas às mulheres cuja barriga não cresce. Mas...
        -- Mas?
        -- Tem uma condição. Primeiro você vai ter de ir na selva pegar uma cobra nova e botar na cabaça em que serve meu bolinho de milhete. É essa a sua prova!
        No dia seguinte, Sia foi para a selva, depois de preparar um bolo doce que carregou na cabeça, numa cesta. Não demorou a avistar, debaixo de uma pedra chata, uma bela cobra. A cobra estava sem dúvida de tocaia, esperando que algum rato do alagado se aventurasse por ali. De longe, Sia atirou um pedaço de bolo para a serpente. A serpente saboreou o pedaço inteiro. Como parecia gostar, Sia atirou o resto, e a cobra comeu tudo com prazer. Pouco depois a serpente dormia, acariciada pelo sol.
        Pé ante pé, Sia se aproximou. Enfiou cuidadosamente a mão debaixo da pedra chata e pegou a cobra, que era um pouco menos comprida e menos grossa que seu braço. Botou a cobra adormecida na cesta e voltou para casa, de modo a chegar antes do anoitecer.
        De noite, ela pôs a cobra na cabaça do marido. Quando o bolo e o molho ficaram prontos, ela cobriu com eles a cobra e, logo em seguida, seu marido jantou.
        Desde aquela noite, eles viveram perfeitamente unidos. Logo, logo a barriga de Sia inchou, como para imitar o redondo do sol; logo, logo um lindo menino saiu da barriga para descobrir o Céu e a Terra.
        -- Meu marido, você me causou muitos sofrimentos e muito medo, quando quis que eu pegasse uma cobra para a sua cabaça. Agora é você que tem de me escutar...
        -- Sim?
        -- Pegue a zagaia e mate um búfalo. Vamos comer a carne, e nosso filho vai dormir no couro bem seco do bicho. Se você fizer o que peço, nós dois vamos comer melhor o bolinho de lágrimas.
        O marido de Sia matou um búfalo, e o que Sia quis foi feito.
        Ela disse e redisse então às moças da aldeia:
        -- Mesmo se vocês acharem seu marido feio, nunca devem desprezá-lo.

                                          Yves Pinguilly. Contos e Lendas da África. São Paulo: Companhia das letras, 2005. p. 177-187.
Fonte: Livro - Para Viver Juntos - Português - 6º ano - Ensino Fundamental- Anos Finais - Edições SM - p.64/65/66/67.
Entendendo o conto:
01 – Qual é o problema de Sia no começo da história?
      Ela não consegue encontrar um pretendente que lhe agrade para se casar.

02 – Para que Sia se case, sua tia a orienta a seguir um costume da aldeia:
a)   Qual é esse costume?
Um pretendente deve lutar com a mulher com a qual queira se casar; se ele conseguir deitá-la de costas no chão, ela se torna sua esposa.

b)   Por que um dos pretendentes precisou repetir o ritual (o costume) três vezes?
Porque o pretendente venceu Sia, porém ela não queria se casar com ele, que, aparentemente, era leproso; então, ela propôs outras duas lutas.

03 – No conto, há três situações importantes em que as personagens fazem exigências. Copie a ação e complete-as com essas exigência.
·        Sia se casará com quem...: Lutar com ela e deitá-la no chão.

·        Para Sia ter o belo rapaz como marido, ela terá de...: Capturar uma serpente nova e coloca-la dentro de uma cabaça.

·        Para que Sia e o marido vivam bem, ela pede a ele que...: Mate um búfalo para que eles comam a carne e usem o couro para o filho dormir.

04 – O rapaz que consegue se casar com Sia apresenta algumas características comuns às personagens de contos populares. Que características são essas?
      Ele apresenta poderes mágicos, usa um disfarce, é muito belo, tem um lindo cavalo e conquista uma bela esposa.

05 – Quais ações do rapaz demonstraram que ele tem poderes especiais?
      Ele se disfarça de leproso, joga pedras na fogueira e as transforma em um cavalo, transforma farrobas em guerreiros.

06 – A narrativa se passa em uma aldeia próxima a plantações e a uma floresta na África. Transcreva um trecho em que se pode perceber isso.
      “[...] os homens foram cuidar da sua lavoura” / “Numa roça havia um rapaz lindo [...]” / “—Vamos passear na selva que fica em volta das nossas roças”.

07 – Releia os seguintes marcadores de tempo presentes no conto lido.
I – “Como todos os anos, chegou a chuva das mangas [...]”.
II – “Uma estação das águas e uma estação da seca passaram [...]”
        Que informações esses marcadores fornecem a respeito do espaço em que fica a aldeia? Consulte o glossário para responder à questão.
      Os marcadores fornecem características das estações do ano da região: chuvosa e seca.

08 – Leia o significado das palavras a seguir:
·        Cabaça: fruto da cabaceira que serve de recipiente para alimentos e água.
·        Sorgo: planta parecida com o milho.
·        Lapya: expressão equivalente a “bom dia!”.
·        Tulha: depósito de cereais.
·        Milhete: tipo de cereal.
·        Voandzu: alimento parecido com o amendoim.
·        Pagne: pedaço de tecido que se amarra à cintura, canga.
·        Zagaia: azagaia, lança de madeira.

Como essas palavras ajudam a caracterizar o espaço onde se passa a história?
      Elas ajudam a caracterizar o espaço, pois descrevem aspectos culturais próprios do lugar em que as personagens vivem, no caso, a África.

09 – Ao final do conto, há um ensinamento de Sia.

a)   Qual é esse ensinamento e a quem é dirigido?
O ensinamento é “Mesmo se vocês acharem seu marido feio, nunca devem desprezá-lo” e dirige-se as moças da aldeia.

b)   O que levou Sia a concluir tal ensinamento?
Tudo que Sia viveu ao longo da narrativa a levou a perceber que havia errado em desprezar seu marido por causa das aparências.

c)   Você conhece outras histórias que trazem algum ensinamento? Cite uma.
Resposta pessoal do aluno.

10 – Há alguma relação entre o ensinamento transmitido pelo conto “A moça que pegou a serpente” e o cotidiano que você vive? Justifique sua resposta.
      Resposta pessoal do aluno.

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