quinta-feira, 2 de outubro de 2025

CONTO: NA CASA DOS PRONOMES - EMÍLIA NO PAÍS DA GRAMÁTICA - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: Na Casa dos Pronomes – Emília no país da gramática

           Monteiro Lobato

        — Chega de Adjetivos — gritou a menina. — Eu não sei por quê, tenho grande simpatia pelos PRONOMES, e queria visitá-los já.

        — Muito fácil — respondeu o rinoceronte. — Eles moram naquelas casinhas aqui defronte. A primeira, e menor, é a dos Pronomes PESSOAIS.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgJ6ZqZ0IUzKTgEZi-okg7HDykmU2GnkwNv3i8HIN07tPkssRsVc3K6wBT9XqO8pOCihhszvA_w_q8x2lR_PoWMKugUH95pSsjLYlCBKTZ3b3ePtRhLQTblgMBFXj8auqYna3qYu1WYOn7SW9gf2oJGcMtunq4mT2zIQ9xduZRY5jJa1O4MN0XpgOCSqOw/s320/picture0103.jpg


        — Ela é tão pequena... — admirou-se Emília.

        — Eles são só um punhadinho, e vivem lá como em república de estudantes.

        E todos se dirigiram para a casa dos Pronomes Pessoais enquanto Quindim ia explicando que os Pronomes são palavras que também não possuem pernas e só se movimentam amarradas aos VERBOS.

        Emília bateu na porta — toque, toque, toque.           

        Veio abrir o Pronome Eu.

        — Entrem, não façam cerimônia.                              

        Narizinho fez as apresentações.                                     

        — Tenho muito gosto em conhecê-los — disse amavelmente o Pronome Eu. — Aqui na nossa cidade o assunto do dia é justamente a presença dos meninos e deste famoso gramático africano. Vão entrando. Nada de cerimônias.

        E em seguida:

        — Pois é isso, meus caros. Nesta república vivemos a nossa vidinha, que é bem importante. Sem nós os homens não conseguiriam entender-se na terra.

        — Todas as outras palavras dizem o mesmo — lembrou Emília.

        — E nenhuma está exagerando — advertiu o Pronome Eu. — Todas somos por igual importantes, porque somos por igual indispensáveis à expressão do pensamento dos homens.

        — E os seus companheiros, os outros Pronomes Pessoais? —  perguntou Emília.

        — Estão lá dentro, jantando.

        À mesa do refeitório achavam-se os Pronomes Tu, Ele, Nós, Vós, Eles, Ela e Elas. Esses figurões eram servidos pelos Pronomes OBLÍQUOS, que tinham o pescoço torto e lembravam corcundinhas. Os meninos viram lá o Me, o Mim, o Migo, o Nos, o Nosco, o Te, o Ti, o Tigo, o Vos, o Vosco, o O, o A, o Lhe, o Se, o Si e o Sigo — dezesseis Pronomes Oblíquos.

        — Sim senhor! Que luxo de criadagem! — admirou-se Emília. — Cada Pronome tem a seu serviço vários criadinhos oblíquos...

        — E ainda há outros serviçais, os Pronomes de TRATAMENTO — disse Eu. — Lá no quintal estão tomando sol os Pronomes Fulano, Sicrano, Você, Vossa Senhoria, Vossa Excelência, Vossa Majestade e outros.

        — E para que servem os Senhores Pronomes Pessoais? —  perguntou a menina.

        — Nós — respondeu Eu — servimos para substituir os Nomes das pessoas. Quando a Senhorita Narizinho diz Tu, referindo-se aqui a esta senhora boneca, está substituindo o Nome Emília pelo Pronome Tu.

        Os meninos notaram um fato muito interessante — a rivalidade entre o Tu e o Você. O Pronome Você havia entrado do quintal e sentara-se à mesa com toda a brutalidade, empurrando o pobre Pronome Tu do lugarzinho onde ele se achava. Via-se que era um Pronome muito mais moço que Tu, e bastante cheio de si. Tinha ares de dono da casa.

        — Que há entre aqueles dois? — perguntou Narizinho. — Parece que são inimigos...

        — Sim — explicou o Pronome Eu. — O meu velho irmão Tu anda muito aborrecido porque o tal Você apareceu e anda a atropelá-lo para lhe tomar o lugar.

        — Apareceu como? Donde veio?

        — Veio vindo... No começo havia o tratamento Vossa Mercê, dado aos reis unicamente. Depois passou a ser dado aos fidalgos e foi mudando de forma. Ficou uns tempos Vossemecê e depois passou a Vosmecê e finalmente como está hoje — Você, entrando a ser aplicado em vez do Tu, no tratamento familiar ou caseiro. No andar em que vai, creio que acabará expulsando o Tu para o bairro das palavras arcaicas, porque já no Brasil muito pouca gente emprega o Tu. Na língua inglesa aconteceu uma coisa assim. O Tu lá se chamava Thou e foi vencido pelo You, que é uma espécie de Você empregada para todo mundo, seja grande ou pequeno, pobre ou rico, rei ou vagabundo.

        — Estou vendo — disse a menina, que não tirava os olhos de Você. — Ele é moço e petulante, ao passo que o pobre Tu parece estar sofrendo de reumatismo. Veja que cara triste o coitado tem...

        — Pois o tal Tu — disse Emília — o que deve fazer é ir arrumando a trouxa e pondo-se ao fresco. Nós lá no sítio conversamos o dia inteiro e nunca temos ocasião de empregar um só Tu, salvo na palavra Tatu. Para nós o Tu já está velho coroca.

        E mudando de assunto:

        — Diga-me uma coisa, Senhor Eu. Está contente com a sua vidinha?

        — Muito — respondeu Eu. — Como os homens são criaturas sumamente egoístas, eu tenho vida regalada, porque represento todos os homens e todas as mulheres que existem, sendo pois tratado dum modo especial. Creio que não há palavra mais usada no mundo inteiro do que Eu. Quando uma criatura humana diz Eu, baba-se de gosto porque está falando de si própria.

        — E fora os Pronomes Pessoais não há outros?

        — Há sim — disse Eu —, moram aqui na casa ao lado. Uns pobres coitados...

        Os meninos despediram-se do Pronome Eu para irem visitar os "coitados" da outra casa, muito admirados da petulância e orgulho daquele pronominho tão curto.

        — Parece que tem o presidente da República na barriga — comentou a boneca.

        E parecia mesmo...

        Na outra casa os meninos encontraram os Pronomes POSSESSIVOS — Meu, Teu, Seu, Nosso, Vosso e Seus com as respectivas esposas e com os plurais. Emília, que achava as palavras Meu e Minha as mais gostosas de quantas existem, agarrou o casalzinho e deu um beijo no nariz de cada uma, dizendo:

        — Meus amores!

        Depois encontraram os Pronomes DEMONSTRATIVOS — Este, Esse, Aquele, Mesmo, Próprio, Tal, etc, com as suas respectivas esposas e parentes. As esposas eram Esta, Essa, Aquela, Mesma, Própria, etc, e os parentes eram Essoutro, Estoutro, Aqueloutro, etc.

        — Muito bem — disse Narizinho. — Vamos adiante. Vejo alguns senhores muito conhecidos.

        De fato, mais adiante os meninos encontraram os Pronomes INDEFINIDOS, muito familiares a todos do bandinho. Eram eles: Algum, Nenhum, Outro, Todo, Tanto, Pouco, Muito, Menos, Qualquer, Certo, Vários, etc, com as suas respectivas formas femininas e os competentes plurais.

        — São umas palavrinhas muito boas, que a gente emprega a toda a hora — comentou Emília, sem entretanto beijar o nariz de nenhuma.

        Havia ainda os Pronomes RELATIVOS, quê servem para indicar uma coisa que está para trás. Eram eles: Que, Quem, O Qual, Cujo, Onde, etc, com as suas respectivas esposas e plurais. Quindim exemplificou:

        — O Visconde, cuja cartolinha sumiu, está danado. Nesta frase, o Pronome Cuja refere-se a uma coisa que ficou para trás.

        De fato, o Visconde havia perdido a sua cartolinha na aventura com as Palavras Obscenas. Deixara-a para trás.

        — Continue, Quindim — pediu Emília, e o rinoceronte continuou.

        — Temos, por fim, os Pronomes INTERROGATIVOS, que servem para fazer perguntas. Todos usam um Ponto de Interrogação no fim, para que a gente veja que são perguntativos.

        E os meninos viram lá os Interrogativos: Quê? Qual? Quanto? Quem?

        Emília gostou de conhecer aqueles Pronomes. Ela era a boneca que mais trabalho dava aos Senhores Pronomes Interrogativos.

OBRA INFANTO-JUVENIL DE MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.

Entendendo o conto:

01 – Como os Pronomes, assim como os Adjetivos, conseguem se movimentar no bairro, já que "não possuem pernas"?

      Eles só se movimentam amarrados aos VERBOS.

02 – Qual é a função essencial dos Pronomes Pessoais, de acordo com o Pronome 'Eu'?

      Eles servem para substituir os Nomes das pessoas. (Ex: Substituir o Nome Emília pelo Pronome Tu).

03 – Que Pronomes eram chamados de OBLÍQUOS, qual era a sua aparência física e que papel social eles desempenhavam na república?

      Eram os pronomes como Me, Mim, Migo, Te, Ti, Tigo, etc. Eles tinham o pescoço torto e pareciam corcundinhas. Desempenhavam o papel de serviçais (criadagem) dos Pronomes Pessoais.

04 – Cite três exemplos de Pronomes de Tratamento que estavam "tomando sol" no quintal da casa.

      Fulano, Sicrano, Você, Vossa Senhoria, Vossa Excelência, Vossa Majestade (Três exemplos são: Você, Vossa Senhoria, Vossa Majestade).

05 – Qual era a origem histórica (evolução) do Pronome 'Você', e qual Pronome ele estava ameaçando expulsar?

      'Você' veio do tratamento Vossa Mercê, que evoluiu para Vossemecê, depois Vosmecê e, por fim, Você. Ele estava ameaçando expulsar o Pronome Tu.

06 – Qual é a razão pela qual o Pronome 'Eu' afirma ter uma "vida regalada" e ser a palavra mais usada no mundo?

      Porque ele representa todos os homens e todas as mulheres que existem, e como os humanos são egoístas, eles "babam-se de gosto" ao falar de si próprios, usando o Eu constantemente.

07 – Quais eram os cinco grupos de Pronomes encontrados na casa vizinha à dos Pronomes Pessoais?

      Pronomes POSSESSIVOS, Pronomes DEMONSTRATIVOS, Pronomes INDEFINIDOS, Pronomes RELATIVOS e Pronomes INTERROGATIVOS.

08 – Qual a função dos Pronomes Possessivos e qual foi a reação de Emília ao ver os Pronomes 'Meu' e 'Minha'?

      Eles indicam posse. Emília os achava os "mais gostosos" de quantos existem, então agarrou o casalzinho e deu um beijo no nariz de cada um.

09 – Qual é a função dos Pronomes Relativos, e qual o exemplo usado por Quindim para se referir ao Visconde?

      Servem para indicar ou se referir a uma coisa que está para trás (um termo já mencionado). O exemplo dado foi: "O Visconde, cuja cartolinha sumiu, está danado."

10 – Como as pessoas conseguem identificar que os Pronomes Interrogativos são "perguntativos"?

      Todos os Pronomes Interrogativos usam um Ponto de Interrogação (?) no fim.

 

 

CONTO: EMÍLIA NA CASA DO VERBO SER - EMÍLIA NO PAÍS DA GRAMÁTICA - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: Emília na casa do Verbo Ser – Emília no país da gramática

           Monteiro Lobato

        Emília teve uma grande ideia: visitar o Verbo Ser, que era o mais velho e graduado de todos os Verbos. Para isso imaginou um estratagema: apresentar-se no palácio em que ele vivia, na qualidade de repórter dum jornal imaginário.     — O Grito do Pica-Pau Amarelo.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjdljJFxwJDbq6JqHtiIHVjXwV7ickAY-_DIDxBFfzkjRPozoB-Gn2AT5Ip0Plbg3ZrH8r9neFcJVHBCu7zd_eC7o9G-i6hyoybF6hAfSS4lvXHxHXVgUVXDvEpr9K_BZBx6M_doma720D1f7JUQhqflwOee1StZqSqcbn-GUaf8m6UDOnkENzLsOKGC1A/s1600/Digitalizar0026.jpg


        — Meu caro senhor — disse ela ao porteiro do palácio —, eu sou redatora do Grito do Pica-Pau Amarelo, o mais importante jornal do sítio de Dona Benta, e vim cá especialmente para obter uma entrevista do grande e ilustre Verbo Ser. Será possível?

        O porteiro mostrou-se atrapalhado, porque era a primeira vez que aparecia por ali uma repórter daquela marca. A cidade da língua costumava ser visitada apenas por uns velhos carrancas, chamados filólogos, ou então por gramáticos e dicionaristas, gente que ganha a vida mexericando com as palavras, levantando o inventário delas, etc. Mas uma jornalista, e jornalista daquele tamanho, isso era novidade absoluta.

        — Vou ver se ele recebe a senhorita — respondeu o guarda.

        — Pois vá, e interesse-se pelo meu caso, que não perderá o tempo — disse Emília. — Mando-lhe lá do sítio uns bolinhos de Tia Nastácia, que são excelentes.

        O venerando Verbo Ser ouviu o guarda e estranhou o pedido de entrevista; mas como tivesse muito medo da imprensa, não pôde recusar-se a receber aquela repórter.

        Emília foi levada à presença dele e entrou muito tesa, com um bloquinho de papel debaixo do braço e um lápis sem ponta atrás da orelha. O venerando ancião estava sentado num trono, tendo em redor de si os seus sessenta e oito filhos — ou Pessoas dos seus Modos e Tempos. Parecia um velho de mil anos, com aquela cabeleira branca de Papai Noel.

          Salve, Serência! — exclamou Emília, curvando-se diante dele, com os braços espichados, à moda do Oriente. — O que me traz à vossa augusta presença é o desejo de bem servir aos milhares de leitores do Grito do Pica-Pau Amarelo, o jornal de maior tiragem do sítio de Dona Benta. Os coitados estão ansiosos por conhecer as ideias de Vossa Serência sobre mil coisas.

        — Suba, menina! — respondeu o Verbo Ser com voz trêmula.

        Emília subiu os degraus do trono, abrindo caminho a cotoveladas por entre a soldadesca atônita, e foi postar-se bem defronte do venerável ancião.

        — Fale, Serência, enquanto eu tomo notas — disse ela, e começou a fazer ponta no lápis com os dentes.

        O Verbo Ser tossiu o pigarro dos séculos e começou:

        — Eu sou o Verbo dos Verbos, porque sou o que faz tudo quanto existe ser. Se você existe, bonequinha, é por minha causa. Se eu não existisse, como poderia você existir ou ser?

        — Está claro — disse Emília escrevendo uns garranchos. — Vá falando.

        Ser tossiu outro pigarro e continuou:

        — Muitos gramáticos me chamam VERBO SUBSTANTIVO, como quem diz que eu sou a substância de todos os demais Verbos. E isso é verdade. Sou a Substância! Sou o Pai dos Verbos! Sou o Pai de Tudo! Sou o Pai do Mundo! Como poderia o mundo existir, ou ser, se não fosse eu? Responda!

        — Não tem resposta, Serência. É isso mesmo — disse Emília, escrevendo. — Os leitores do Grito vão ficar tontos com a minha reportagem. O diabo é este lápis sem ponta. Não haverá por aí algum canivete ou faca que não seja de mesa, Serência?

        Não havia canivete, nem faca, nem nenhum instrumento cortante naquela cidade de palavras, de modo que Emília só podia contar com os seus dentes. Mas tanto roeu o lápis, sem conseguir boa ponta, que ele foi diminuindo, diminuindo, até virar um toquinho inútil. Acabou-se o lápis — e foi essa a verdadeira causa de o Grito do Pica-Pau Amarelo (jornal que aliás nunca existiu) não haver publicado a mais sensacional reportagem que ainda foi feita no mundo.

        O Verbo Ser falou muita coisa de si, contando toda a sua vida desde o começo dos começos. Disse que já havia morado na cidade das palavras latinas, hoje morta.

        — Naquele tempo eu me chamava Esse. Depois que a cidade latina começou a decair, mudei-me para as cidades novas que se foram formando por perto, e em cada uma assumi forma especial. Aqui nesta tomei esta forma que você está vendo e que se escreve apenas com três letras. Na cidade de Galópolis virei Ètre. Em Italópolis virei Essere. Em Castelópolis sou como aqui mesmo.

        — Então foi em Roma que Vossa Serência nasceu?

        — Não, menina. Sou muito mais velho que Roma. Antes de mudar-me para lá eu já existia na cidade das palavras sânscritas; e antes de ir para a cidade das palavras sânscritas, eu já vinha não sei de onde. Perdi a memória do lugar e do tempo em que nasci, embora esteja convencido de que nasci junto com o mundo.

        — Pois olhe — disse Emília —, está bem rijinho para a idade... Dona Benta, com sessenta e oito anos apenas, não chega aos pés de Vossa Serência.

        — Nós, palavras, vivemos muito mais do que as criaturas humanas.

        — Mas também morrem — observou Emília, apontando para o cemitério que se avistava através da janela.

        — Sim. Morrem certas palavras que não são de boa raça. Um Verbo como eu não morre nunca. Muda de aspecto apenas, e emigra duma cidade para outra. Eu nunca hei de morrer.

        — Assim seja, Serência! — disse Emília. — Porque se Vossa Serência cai na asneira de morrer, como iremos nós nos arranjar lá tiú mundo? Ninguém mais poderá ser coisa nenhuma...

        Pela janela aberta via-se um trecho de rua, onde o Visconde estava a passear de braço dado a uma palavra esquisita.

        — Quem é aquele figurão? — perguntou Ser, franzindo os sobrolhos.

        — Pois é o nosso grande Visconde de Sabugosa, um verdadeiro sábio da Grécia. Gosta muito de Arcaísmos e outras velharias. Juro que a palavra que está com ele é coroca.

        — Não é, não. Já foi coroca; hoje está remoçada. Aquela palavra é a tal Paredro, que em Roma conheci sob a forma latina Paredrus. Emigrou para cá comigo, mais ninguém quis saber dela. Os homens não a chamavam nunca para coisa alguma, e por fim a coitada teve de desocupar o beco e ir viver no bairro dos Arcaísmos. Pois sabe o que aconteceu? Um belo dia um deputado brasileiro, que era o grande romancista Coelho Neto, teve a ideia de requisitá-la para a meter num discurso. Já lhe mandamos a palavra requisitada, ainda cheia de pó e teias de aranha como se achava. Paredro entrou no discurso do deputado, fez sucesso e voltou rejuvenescida. Desde então passou a receber frequentes chamados e acabou vindo morar de novo aqui no centro, em companhia das palavras vivas. Casos como esse, porém, são raríssimos. Em geral, quando uma palavra morre, morre duma vez.

        A conversa de Emília com o Verbo Ser durou bastante tempo. Um velho velhíssimo como aquele tem muito que contar. Por fim acabaram amigos, e Emília pediu-lhe que a acompanhasse numa visitinha aos Advérbios, espécie de palavras que ela ainda não conhecia.

        — Pois não. Com muito prazer — disse o venerável velho, e tomando-lhe a mãozinha saiu com ela do palácio.

OBRA INFANTO-JUVENIL DE MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.

Entendendo o conto:

01 – Qual foi o estratagema que Emília usou para conseguir uma entrevista com o Verbo Ser?

      Ela se apresentou no palácio na qualidade de repórter do jornal imaginário "O Grito do Pica-Pau Amarelo", o suposto "mais importante jornal do sítio de Dona Benta".

02 – Por que a visita de Emília foi considerada uma "novidade absoluta" pelo porteiro do palácio?

      Porque a cidade da língua costumava ser visitada apenas por velhos filólogos, gramáticos e dicionaristas (gente que "mexerica com as palavras"), e nunca por uma jornalista, muito menos uma "jornalista daquele tamanho" (uma boneca).

03 – Por que o Verbo Ser é chamado de "o Verbo dos Verbos" e "Verbo Substantivo"?

      Ele é chamado assim porque é o que faz tudo quanto existe ser (a substância de todos os demais Verbos). Ele se autoproclama "a Substância" e "o Pai dos Verbos" (e do Mundo).

04 – Qual foi o motivo real que fez com que a reportagem sensacional de Emília para o "Grito do Pica-Pau Amarelo" não fosse publicada?

      O motivo foi a falta de ponta no lápis. Emília tanto roeu o lápis com os dentes, sem conseguir uma boa ponta, que ele diminuiu até virar um "toquinho inútil", acabando com o instrumento de trabalho da repórter.

05 – Qual era a forma do Verbo Ser na antiga cidade das palavras latinas, e quais formas ele assumiu em Galópolis (francês) e Italópolis (italiano)?

      Na cidade das palavras latinas (hoje morta), ele se chamava Esse. Em Galópolis, virou Être, e em Italópolis, virou Essere.

06 – Qual foi a história da palavra Paredro, e como ela conseguiu "rejuvenescer" e retornar ao convívio das palavras vivas, depois de morar no bairro dos Arcaísmos?

      Paredro era uma palavra antiga (latina Paredrus) que foi esquecida e se mudou para o bairro dos Arcaísmos. Ela foi "requisitada" por um deputado brasileiro, o romancista Coelho Neto, para ser usada em um discurso. O sucesso no discurso a fez rejuvenescer e voltar a receber chamados no centro da cidade.

07 – O que Emília pediu ao Verbo Ser no final da conversa, e para onde eles foram juntos?

      Emília pediu que ele a acompanhasse numa visitinha aos Advérbios (uma espécie de palavra que ela ainda não conhecia). O Verbo Ser, o ancião venerável, aceitou e saiu do palácio de braço dado com a boneca.

 

POEMA: O TEMPO PASSA? NÃO PASSA - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - COM GABARITO

 Poema: O tempo passa? Não passa

             Carlos Drummond de Andrade

O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiJbpOqMJwPdUCFIVVotO0POUVkdLGfEGr1GpM4U1TZdowrami1P3sVzBnRENKMBo7qEYnME81jbTsm8jhr-CbVA4vYBO80fYUZ4GHvZUJTAmCVwncJfNq4FRYUQrnul6eBZzy0QLPxgdyrVyj-oBQqL66zp3ERVDXEWlNbUSGTon-8OdbUInEkkkJDSsE/s320/TEMPO.jpg



O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama escutou
o apelo da eternidade.

Amar se aprende amando. Rio de Janeiro, Record, 1985.

Fonte: Português – 1º grau – Descobrindo a gramática 8. Gilio Giacomozzi; Gildete Valério; Cláudia Reda Fenga. São Paulo. FTD, 1992. p. 156.

Entendendo o poema:

01 – De acordo com o poema, o tempo realmente passa?

      Segundo o poema, o tempo não passa "no abismo do coração". Isso sugere que, para o eu-lírico, o tempo cronológico não afeta a essência do amor e dos sentimentos.

02 – Como o poeta descreve o efeito do tempo sobre o relacionamento do casal?

      Em vez de separá-los, o tempo os "aproxima cada vez mais, [os] reduz a um só verso e uma rima", simbolizando a união e a perfeita sintonia entre os dois.

03 – Que tipo de tempo o eu-lírico considera o mais importante?

      O poeta afirma que o "tempo é todo vestido de amor e tempo de amar", indicando que o tempo só tem valor quando é dedicado ao amor.

04 – Na penúltima estrofe, o que o poeta quer dizer com a frase "São mitos de calendário / tanto o ontem como o agora"?

      Essa frase sugere que as marcações do tempo (como dias, semanas e anos) são ilusões. O que realmente importa é a presença e a eternidade do amor, que faz com que cada momento seja um "nascer toda hora".

05 – Qual é a relação entre o amor e a eternidade para o eu-lírico?

      Para o poeta, o amor não tem idade e transcende o tempo, pois ele é a única coisa que permite ao ser humano "escutar o apelo da eternidade".

 

 

CRÔNICA: A PRIMEIRA NAMORADA - FERNANDO SABINO - COM GABARITO

 Crônica: A primeira namorada

             Fernando Sabino

        Conheceu Letícia num passeio de bicicleta. Marcou encontro para de noite. Letícia foi. Perto da casa dela, que era perto da Rádio Emissora. Passou a encontrar-se toda noite com ela — dizia, em casa, que ia à Rádio Emissora.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh7xENFROq6kUhWrjWMCL99FnAQHoo5XCw-abSYMbZaxKs7nZX5Mz9ZAFu5yTaH6Os3At9x0VTBYFwpzg4ZWP0YhFE6A_F0XZBfRg_1FfHYA0IUQUyVAdQSjiZXabQ42aRZGtLrCU8_A0AB34N4YJqwEKUb9E1F9ZCGf5wgOFy0egnoHKixNa-XEd5Ufu0/s320/BICICLETA.jpg


        — O que é que esse menino tanto faz na Rádio Emissora? — inquietava-se a mãe. Em vez de estudar, toda noite...

        Acabou indo mesmo à Rádio, em companhia de Letícia, para assistir aos programas. Depois, saía com ela de mãos dadas — beijo, não, ela não deixava, ele não insistia. Letícia era diferente, Eduardo amava Letícia.

        — Eu te amo para o resto da vida.

        — Eu também.

        — Então escreve isso aqui, na minha caderneta.

        Letícia escrevia: "eu te amo...

        — Eternamente.

        — ... eternamente para o resto da minha vida".

        — Agora assina.

        Letícia assinou.

        — Olha minha mãe na janela.

        Eduardo tinha medo, queria fugir. Mas a mãe de Letícia acenava para eles.

        — Não tenha medo.

        A mãe de Letícia era diferente, falava umas coisas engraçadas, deixava que a filha namorasse. Eduardo fazia planos para o futuro.

        — Quando eu crescer, vou ser artista.

        — Artista de quê?

        — Não sei: artista.                                 

Fernando Sabino. O encontro marcado. Rio de Janeiro, Record, 1984.

Fonte: Português – 1º grau – Descobrindo a gramática 8. Gilio Giacomozzi; Gildete Valério; Cláudia Reda Fenga. São Paulo. FTD, 1992. p. 157.

Entendendo a crônica:

01 – Como Eduardo e Letícia se conheceram?

      Eles se conheceram durante um passeio de bicicleta.

02 – O que Eduardo dizia em casa para justificar seus encontros noturnos com Letícia?

      Ele dizia à mãe que ia para a Rádio Emissora.

03 – Qual era a principal diferença entre o relacionamento deles e um namoro convencional da época, de acordo com o texto?

      O texto menciona que eles andavam de mãos dadas, mas não se beijavam, pois ela não permitia.

04 – O que Letícia escreveu na caderneta de Eduardo?

      Ela escreveu a frase "eu te amo... eternamente para o resto da minha vida".

05 – Qual foi a reação da mãe de Letícia ao ver o casal na janela?

      A mãe de Letícia acenou para eles e disse a Eduardo para não ter medo, demonstrando uma atitude compreensiva.

06 – Que planos para o futuro Eduardo fez para si mesmo?

      Ele planejava ser "artista", mas sem saber qual tipo de artista.

07 – Qual a principal característica da mãe de Letícia, que a diferenciava do que seria esperado?

      Ela era descrita como "diferente", falava "coisas engraçadas" e, ao contrário do que se esperava, deixava a filha namorar.

 

POESIA: ISSO SIM QUE É VIDA BOA - PEDRO BANDEIRA - COM GABARITO

 Poesia: Isso Sim Que é Vida Boa

              Pedro Bandeira

Eu queria ser de circo.

Ai, que vida original!

Trabalhar todas as noites, 

Divertindo o pessoal.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh21SQ87UC8WPf9UALUZu7w_HERLCRM9yhg2H-qEVctGum7Tf0xhXGCqlJsVIiiKnkd6vqjPwP8f-tcQvjxAc75EBJH6Sv2VpRNWEIMhXx0k8659NhrnrerKRFc9LrSHRzFep6plI2vXAaLObUm0CvfhB9_ZvCPLsRj52dUAnSa7VJ1e2sM_BxnvU6NCjY/s320/circo.jpg


Os aplausos da plateia, 

toda aquela vibração, 

sempre novas gargalhadas, 

sempre mais animação!

 

Eu queria ser de circo, 

conhecer os bastidores, 

que a plateia nunca vê, 

ver de perto os domadores, 

dar comida ao chimpanzé, 

ver a cama do anão, 

ver as focas adestradas, 

ver a jaula do leão, 

ver a cara do palhaço, 

sem pintura e fantasia, 

e ver se a mulher barbada 

faz a barba todo dia.

 

Lá no circo, eu imagino, 

mal termina a função, 

os artistas vão comer, 

sem pagar nenhum tostão, 

a pipoca que quiserem, 

quanto for que os contente, 

um montão de algodão-doce, 

guaraná e cachorro-quente.

Pedro Bandeira. Cavalgando o arco-íris. São Paulo, Moderna, 1984.

Fonte: Português – 1º grau – Descobrindo a gramática 8. Gilio Giacomozzi; Gildete Valério; Cláudia Reda Fenga. São Paulo. FTD, 1992. p. 137.

Entendendo a poesia:

01 – Qual é o desejo principal do eu-lírico no poema?

      O eu-lírico deseja ser de circo.

02 – Que tipo de trabalho o eu-lírico gostaria de ter no circo e qual é a sua motivação?

      Ele gostaria de trabalhar divertindo as pessoas todas as noites, motivado pelos aplausos e a animação da plateia.

03 – Além de ver o espetáculo, o que mais o eu-lírico tem curiosidade de conhecer sobre a vida no circo?

      Ele tem curiosidade sobre os bastidores, as coisas que a plateia não vê, como a cama do anão, a jaula do leão e o rosto do palhaço sem maquiagem.

04 – O que o eu-lírico quer saber sobre a mulher barbada?

      Ele quer saber se a mulher barbada faz a barba todos os dias.

05 – De acordo com o poema, o que acontece com os artistas do circo depois que a apresentação termina?

      O eu-lírico imagina que, após o espetáculo, os artistas podem comer o que quiserem sem pagar, como pipoca, algodão-doce, guaraná e cachorro-quente.

06 – Qual é a visão do eu-lírico sobre a vida no circo, de acordo com o título do poema?

      O título "Isso Sim Que é Vida Boa" sugere que o eu-lírico vê a vida de um artista de circo como uma vida ideal, cheia de diversão e alegria.

07 – Cite três exemplos de animais de circo mencionados no texto.

      Os animais mencionados são o chimpanzé, as focas e o leão.

 

 

 

CONTO: UMA NOVA INTERJEIÇÃO - EMÍLIA NO PAÍS DA GRAMÁTICA - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: Uma nova Interjeição – Emília no país da gramática

            Monteiro Lobato   

        Houve um rebuliço de pânico lá dentro, e logo depois surgiram, a fugir pelas janelas, mais filólogos e gramáticos e dicionaristas do que fogem ratazanas duma despensa quando o gatão aparece. A casa da velha ficou completamente vazia.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiZYoJ_Pw5RNtRxJJK9vTfTpJrHMZfqROhF8cAw5iZRDpaE4bDRHCu3aG50GUxm_Rvf154v0XhOkSXJbhE58hG8BJm0YdghcCa9au_04qivmPFytp5uG3mCEA-qO5tlke8kiykU6LKZt3v4Fnwb9mnzUTQD4cLvPcm956kSA-7niS2BlU6Ksc0n4E17Zkk/s320/INTERJEI%C3%87%C3%83O.jpg

        — Sim, senhor! O seu berro, Quindim, é que nem Flit, e merece ir para a Casa das Interjeições com um letreiro novo: Interjeição espantativa de gramáticos...

        Desimpedida que ficou a casa da velha, entraram todos, menos o rinoceronte, que não cabia na porta. Toparam a Etimologia intrigadíssima com aquele Muuu!... som jamais ouvido na zona.

        — Não conheço essa interjeição — declarou ela, assim que os meninos a rodearam. — Só conheço o Mu! dos bois, mas este que ouvi não me parece nada bovino.

        — Este é rinocerontino, minha senhora!  — explicou Emília, com toda a sapequice. — Veio da África. A senhora conhece a África?

        A Etimologia não conhece as coisas; só conhece as palavras que designam as coisas. De modo que, ao ouvir aquela pergunta, julgou que a boneca se referisse à palavra África, e respondeu:

        — Sim, é uma palavra de origem latina, ou melhor, puramente latina, porque não mudou. A propósito...

        — Espere — interrompeu Emília. — A história da palavra África não nos interessa. Preferimos conhecer a história de outras palavras mais importantes, como, por exemplo, Boneca.

        A velha riu-se da presunção da criaturinha e respondeu:

        — Boneca, minha cara, é o feminino de Boneco, palavra que veio do holandês Manneken, homenzinho. Houve mudança do M para B — duas letras que o povo inculto costuma confundir. A palavra Manneken entrou em Portugal transformada em Banneken, ou Bonneken, e foi sendo desfigurada pelo povo até chegar à sua forma de hoje, Boneco. Dessa mesma palavra holandesa nasceu para o português uma outra — Manequim.

        — Mas então o povo, isto é, os ignorantes ou incultos, influi assim na língua? — disse Pedrinho.

        — Os incultos influíram e ainda influem muitíssimo na língua — respondeu à velha. — Os incultos formam a grande maioria, e as mudanças que a maioria faz na língua acabam ficando.

        — Engraçado! Está aí uma coisa que nunca imaginei...

        — É fácil de compreender isso — observou a velha. — As pessoas cultas aprendem com professores e, como aprendem, repetem certo as palavras. Mas os incultos aprendem o pouco que sabem com outros incultos, e só aprendem mais ou menos, de modo que não só repetem os erros aprendidos como perpetram erros novos, que por sua vez passam a ser repetidos adiante. Por fim há tanta gente a cometer o mesmo erro que o erro vira Uso e, portanto, deixa de ser erro. O que nós hoje chamamos certo, já foi erro em outros tempos. Assim é a vida, meus caros meninos.

        Tomemos a palavra latina Speculum — continuou a velha. — Essa palavra emigrou para Portugal com os soldados romanos, e foi sendo gradativamente errada até ficar com a forma que tem hoje — Espelho.

        — E os ignorantes de hoje continuam a mexer nela — observou Narizinho. — A gente da roça diz Espeio.

        — Muito bem lembrado — concordou a velha. — Essa forma Espeio é hoje repelida com horror pelos cultos modernos, como a forma Espelho devia ter sido repelida com horror pelos cultos de dantes. Mas como os cultos de hoje aceitam como certo o que já foi erro, bem pode ser que os cultos do futuro aceitem como certo o erro de hoje. Eu, que sou muito velha e tenho visto muita coisa, de nada me admiro. O homem é um animal comodista. Daí a sua tendência a adotar os erros que exigem menor esforço para a pronúncia. Espelho exige menor esforço do que Speculum, e por isso venceu. Espeio exige menor esforço do que Espelho. Quem nos diz que não acabará vencendo nestes mil ou dois mil anos?

        Hoje está mais difícil a ação dos ignorantes sobre a língua, por causa do grande número de livros e jornais que existem e fixam a forma atual das palavras. Mas antigamente quem fazia a língua era justamente o ignorante.

        Dona Etimologia tomou fôlego e bebeu um golinho de chá. Emília foi cheirar a xícara para saber se era chá-da-índia ou de erva-cidreira...

        — Mas qual a sua principal ocupação nesta cidade, minha senhora? — perguntou o menino.

        — Eu ensino a origem e a formação de todas as palavras.

        — Pois então nos conte a origem de algumas.

        Dona Etimologia bebeu mais um golinho de chá (enquanto Emília cochichava para Narizinho: "É de cidreira!") e começou:

        — As palavras desta cidade nova, onde estamos, vieram quase todas da cidade velha, que fica do outro lado do mar. Lá na cidade velha, porém, essas palavras levaram uns dois mil anos para se formarem.

        — Como foi isso? Explique.

        — Nos começos, as terras em redor dessa cidade haviam sido ocupadas pelos soldados romanos, que só falavam latim.

        Esses soldados moravam em acampamento (ou Castra, como se dizia em latim), de modo que foi em redor dos acampamentos que a língua nova começou a surgir.

        — Que língua nova?

        — A portuguesa. Os moradores das terras ocupadas pelos romanos, ou Aborígines, eram bárbaros incultíssimos, que foram aprendendo o latim lá à moda deles — isto é, estropiadamente, todo errado e com muita mistura de termos e modos de falar locais. Tanto estropiaram o pobre latim, que ele virou um Dialeto ou uma variante do latim puro. Depois os romanos se retiraram, mas o dialeto ficou vivendo a sua vidinha, e foi evoluindo, ou mudando, até tornar-se o que chamamos hoje língua portuguesa.

        — Então a língua portuguesa não passa dum dialeto do latim?

        — Perfeitamente. E também a língua francesa, a espanhola e a italiana não passam de outros tantos dialetos do mesmo latim. No começo, esses dialetos eram muito pobres em palavras e modos de dizer. Com o tempo, entretanto, as palavras foram aumentando enormemente e também foram aparecendo novos jeitos de combinar entre si as palavras. E desse modo essas línguas enriqueceram-se.

        — Mas as palavras foram aumentando como? Donde vinham? Quem era o fabricante? — quis saber a menina.

        — Umas nasciam lá mesmo, inventadas pelo povo; outras eram criadas pelos eruditos, que são os sabidões; outras eram importadas dos países estrangeiros.

        — Mas o povo? Como é que o povo forma palavras?

        — Muito simplesmente. O povo combina entre si palavras já existentes e forma novas.

        — Isso lá no sítio se chama "tirar cria" — lembrou Pedrinho.

        — Em Gramática se chama DERIVAÇÃO, querendo dizer que uma palavra sai de outra, ou deriva de outra. Neste processo de Derivação há umas certas palavrinhas, sem sentido próprio, que possuem uma função muito importante. São os PREFIXOS e SUFIXOS. Os prefixos grudam-se no começo da palavra, e os sufixos grudam-se no fim. Estes constituem verdadeiros rabinhos, que por si nada dizem, mas que, pregados a outras palavras, servem para dar-lhes uma forma nova e um sentido novo.

        — Espere! — gritou Emília. — Conheço um rabinho desses muito usado na fabricação de Advérbios — o tal Mente. Basta pregá-lo no traseiro dum Adjetivo para aparecer um lindo Advérbio novo. É Sufixo o tal Mente?

        — Sim, bonequinha — respondeu a velha, admirada da esperteza da Emília. — Mente é um sufixo só de uso para fazer Advérbios. Existem inúmeros outros, como Ária, Ado, Agem, Ume, etc. Este Ária, por exemplo, é um Sufixo precioso, que permitiu a formação de grande número de Substantivos novos. Ária em si não quer dizer coisa nenhuma, não passa dum simples rabinho. Mas, ligado a uma palavra, cria outra nova, com ideia de quantidade. Ligado ao Substantivo Cavalo, por exemplo, dá Cavalaria, que quer dizer muitos cavalos.

        — Não, senhora — protestou Emília. — Cavalo com o Ária atrás vira Cavaloaria, e não Cavalaria.

        A velha riu-se da exigência daquele espirro de criatura.

        — Bom, minha filha — respondeu ela pachorrentamente —, confesso que errei. Eu devia ter explicado que, antes de colocar um desses rabinhos, é necessário primeiro cortar a DESINÊNCIA da palavra. Senão o Sufixo não pega, ou não solda. Cada palavra se divide em duas partes — a RAIZ e a DESINÊNCIA. Raiz é a parte fixa da palavra; Desinência é a parte final, mudável. Reparem que, em todas as palavras formadas de Cavalo, a Raiz é Cavai, e notem que essa Raiz nunca muda. Cavaleiro, Cava-laria, Caval-gadura, Caval-hada...

        — Caval-ência — ajuntou Emília.

        — Essa palavra eu não conheço — disse a velha, com expressão de surpresa nos olhos.

        — É minha! — berrou a boneca. — Foi inventada por mim com a invençãozinha que Deus me deu. Faz parte dos meus "neologismos".

        A velha fez uma careta igual à de Tia Nastácia lá no sítio, quando pendurava o beiço e dizia — Credo!...

OBRA INFANTO-JUVENIL DE MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.

Entendendo o conto:

01 – Qual foi o efeito do berro ("Muu!") de Quindim no início do capítulo, e que nome Emília sugere para essa "nova Interjeição"?

      O berro causou um rebuliço de pânico, fazendo com que os filólogos, gramáticos e dicionaristas fugissem da casa da Etimologia. Emília sugere o nome "Interjeição espantativa de gramáticos" para o som.

02 – Qual é a origem da palavra "Boneca", de acordo com a Senhora Etimologia?

      A palavra "Boneca" (feminino de "Boneco") veio do holandês "Manneken" (homenzinho). Ela entrou em Portugal como "Banneken" ou "Bonneken" e foi desfigurada pelo povo (troca do M para B) até chegar à forma atual.

03 – Qual é o papel do povo inculto (os ignorantes) na evolução da língua, segundo a Etimologia?

      Os incultos influíram e ainda influem muitíssimo na língua porque formam a grande maioria. As mudanças e erros cometidos por eles, ao serem repetidos por muitas pessoas, acabam se tornando Uso e, consequentemente, deixam de ser erro e passam a ser considerados a forma correta.

04 – Qual é a origem da língua portuguesa segundo a explicação da Etimologia?

      A língua portuguesa não passa de um Dialeto do latim (falado pelos soldados romanos). Os moradores originais (aborígines) aprenderam o latim de forma errada e com misturas locais, o que fez com que ele evoluísse, através dos séculos, até se tornar o que hoje é o português (assim como o espanhol, o francês e o italiano).

05 – O que o processo de formação de palavras chamado Derivação representa, e quais são as "palavrinhas" (sem sentido próprio) que possuem uma função importante nele?

      Derivação é o processo em que uma palavra "tira cria", ou sai de outra já existente. As palavrinhas importantes nesse processo são os Prefixos (que grudam no começo da palavra) e os Sufixos (que grudam no fim).

06 – O que é a Raiz e a Desinência de uma palavra, e por que é necessário cortar a Desinência ao juntar um Sufixo?

      A Raiz é a parte fixa e imutável da palavra (ex: Caval-). A Desinência é a parte final, mudável. É necessário cortar a Desinência antes de colocar um Sufixo, pois, se não for feito, o Sufixo "não pega, ou não solda".

07 – Que neologismo (palavra nova) Emília afirma ter inventado, e como a Senhora Etimologia reagiu a essa nova palavra?

      Emília inventa o neologismo "Caval-ência". A Senhora Etimologia reage com surpresa por não conhecer a palavra e, ao descobrir que foi uma invenção de Emília, faz uma careta de espanto ou descrença.