quarta-feira, 3 de agosto de 2022

PARÓDIA: CANÇÃO DO EXÍLIO - CENA 9 - FERNANDO BONASSI - COM GABARITO

 Paródia: Canção do exílio – Cena 9

                  Leia um capítulo que faz parte do conto “15 cenas de descobrimento de Brasis”, de Fernando Bonassi.

               Fernando Bonassi

        Minha terra tem campos de futebol onde cadáveres amanhecem emborcados pra atrapalhar os jogos. Tem uma pedrinha cor-de-bile que faz “tuim” na cabeça da gente. Tem também muros de bloco (sem pintura, é claro, que tinta é a maior frescura quando falta mistura), onde pousam cacos de vidro pra espantar malaco. Minha terra tem HK, AR15, M21, 45 e 38 (na minha terra, 32 é uma piada). As sirenes que aqui apitam, apitam de repente e sem hora marcada. Elas não são mais as das fábricas, que fecharam. São mesmo é dos camburões, que vêm fazer aleijados, trazer tranquilidade e aflição.

BONASSI, Fernando. 15 cenas de descobrimento de Brasis. In: MORICONI, Ítalo (Org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio Janeiro: Objetiva, 2000. p. 607.

             Fonte: Livro Língua Portuguesa – Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 123-4.

Entendendo a paródia:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Embarcado: colocado de bruços, de boca para baixo; despejado, tombado.

·        Cor-de-bile: esverdeado ou amarelado.

·        Frescura: gíria popular com o significado de coisa sem valor, dispensável.

·        Mistura: gíria popular indicando ingredientes para o almoço ou jantar (carne, verduras, legumes etc.).

·        Malaco: gíria com o significado de marginal, bandido, ladrão.

02 – Você acha possível alguém viver exilado em sua própria pátria ou em sua própria casa?

      Resposta pessoal do aluno.

03 – Por que motivos isso ocorreria nos dias de hoje?

      Resposta pessoal do aluno.

04 – Você já ouviu falar ou conhece alguma obra de Fernando Bonassi?

      Resposta pessoal do aluno.

05 – Esse texto dialoga diretamente com o poema “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. Fernando Bonassi fez uma paródia ou uma paráfrase desse poema? Justifique.

      Fez uma paródia da Canção do Exílio, de Gonçalves Dias. Em tom ufanista, o poema enaltece a natureza brasileira. O microconto de Bonassi, ao contrário, denuncia a realidade social das periferias urbanas do Brasil.

06 – Qual é o tema central desse microconto?

      A violência e a miséria.

07 – No caderno, registre falso ou verdadeiro para cada uma das alternativas a seguir:

a)   O texto de Bonassi dialoga com o noticiário policial. (Verdadeiro).

b)   A divisão em cenas – cena 9, por exemplo – remete à linguagem cinematográfica. (Verdadeiro).

c)   O autor denuncia o degredo de cidadãos brasileiros em solo pátrio. (Verdadeiro).

d)   Ele reafirma a visão ufanista do romântico Gonçalves Dias. (Falso).

08 – Explique no caderno as denúncias expressas em cada uma das seguintes passagens:

a)   Minha terra tem campos de futebol onde cadáveres amanhecem emborcados pra atrapalhar os jogos.

Chacinas, homicídios nos campos de futebol de várzea, nos morros e nas favelas.

b)   Tem uma pedrinha cor-de-bile que faz ‘tuim’ na cabeça da gente.

Tráfico e consumo de drogas, em particular de crack (“pedrinha cor-de-bile”).

c)   Tem também muros de bloco (sem pintura, é claro, que tinta é a maior frescura quando falta mistura), onde pousam cacos de vidro pra espantar malaco.

Moradias degradadas, carência alimentar, roubos, presença de marginais.

d)   [...] tem HK, AR15, M21, 45 e 38 (na minha terra, 32 é uma piada).

Uso de armas sofisticadas, importadas, potentes. Os números 45, 38 e 32 se referem ao calibre das armas.

e)   As sirenes [...] não são mais as das fábricas, que fecharam.

Fechamento de fábricas, desemprego.

f)    São mesmo é dos camburões, que vêm fazer aleijados, trazer tranquilidade e aflição.

Violência policial.

09 – A linguagem empregada nesse microconto está adequada? Explique.

      A linguagem está adequada a uma paródia, à aproximação com o noticiário policial, pela escolha das palavras e ao tom de crítica e de denúncia da violência na periferia urbana.

 

 

CONTO: O PERFUME - MIA COUTO - COM GABARITO

 Conto: O perfume

             Mia Couto

        – Hoje vamos ao baile!

        Justino assim se anunciou, estendendo em suas mãos um embrulho cor de presente. Glória, sua esposa, nem soube receber. Foi ele quem desatou os nós e fez despontar do papel colorido o vestido não menos colorido. A mulher, subvivente, somava tanta espera que já esquecera o que esperava. Justino guardava ferrovias, seu tempo se amalgava, fumo dos fumos, ponteiro encravado em seu coração. Entre marido e mulher o tempo metera a colher, rançoso roubador de espantos. Sobrara o pasto dos cansaços, desnamoros, ramerrames. O amor, afinal, que utilidade tem?

        De onde o espanto de Glória, deixando esparramejar o vestido sobre seu colo. Que esperava ela, por que não se arranjava? O marido, parecia ter ensaiado brincadeira. Que lhe acontecera? O homem sempre dela se ciumara, quase ela nem podia assomar à janela, quanto mais. Glória se levantou, ela e o vestido se arrastaram mutuamente para o quarto. Incrédula e sonambulenta, arrastou o pente pelo cabelo. Em vão. O desleixo se antecipara fazendo definitivas tranças. Lembrou as palavras de sua mãe: mulher preta livre é a que sabe o que fazer com o seu próprio cabelo. Mas eu, mãe: primeiro, sou mulata. Segundo, nunca soube o que é isso de liberdade. E riu-se: livre: Era palavra que parecia de outra língua. Só de a soletrar sentia vergonha, o mesmo embaraço que experimentava em vestir a roupa que o marido lhe trouxera. Abriu a gaveta, venceu a emperrada madeira. E segurou o frasco de perfume, antigo, ainda embalado. Estava leve, o líquido havia evaporado. Justino lhe havia dado o frasco, em inauguração do namoro, ainda ela meninava. Em toda a vida, aquele fora o único presente. Só agora se somava o vestido. Espremeu o vidro do cheiro, a ordenhar as últimas gotas. Perfumei o quê com isto, se perguntou lançando o frasco no vazio da janela.

        – Nem sei o gosto de um cheiro.

        Escutou o velho vidro se estilhaçar no passeio. Voltou à sala, vestido se desencontrando com o corpo. As bainhas do pano namoriscavam os sapatos. Temia o comentário do marido sempre lhe apontando ousadias. Desta vez, porém, ele lhe olhou de modo estranho, sem parecer crer. Puxou-a para si e lhe ajeitou as formas, arrebitando o pano, avespando-lhe a cintura. Depois, perguntou:

        – Então não passa um arranjo no rosto?

        – Um arranjo?

        – Sim, uma cor, uma tinta.

        Ela se assombrou. Virou as costas e entrou na casa de banho, embasbocada. Que doença súbita dera nele? Onde diabo parava esse bâton, havia anos que poeirava naquela prateleira? Encontrou-o, minúsculo, gasto nas brincadeiras dos miúdos. Passou o lápis sobre os lábios. Leve, uma penumbra de cor. Carregue mais, faça valer os vermelhos. Era o marido, no espelho. Ela ergueu o rosto, desconhecida.

        – Vamos ao baile, sim. Você não costumava dançar, antes?

        – E os meninos?

        – Já organizei com o vizinho, não se preocupa.

        E foram. Justino ainda teve que tchovar a carrinha. Ela, como sempre, desceu para ajudar. Mas o marido recusou. Desta vez, não. Ele sozinho empurrava, onde é que se vira?

        Chegaram. Glória parecia não dar conta da realidade. Se deixou no assento da velha carrinha. Justino cavalheirou, mão pronta, gesto preso abrindo portas. O baile estava concorrido, cheio pelas costuras. A música transpirava pelo salão, em tonturas de casais. Os dois se sentaram numa mesa. Os olhos de Glória não exerciam. Apenas sombreavam pela mesa, pré-colegiais.

        Então, se aproximou um homem, em boa postura, pedindo ao guarda-freio lhe desse licença de sua esposa para um passo respeitoso. Os olhos aterrados dela esperaram cair a tempestade. Mas não. Justino contemplou o moço e lhe fez amplo sinal de anuência. A esposa arguiu:

        – Mas eu preferia dançar primeiro com meu marido.

        – Você sabe que eu nunca danço…

        E como ela ainda hesitasse ele lhe ordenou quase em sigilo de ternura: Vá, Glorinha, se divirta!

        E ela foi, vagarosa, espantalhada. Enquanto rodava ela fixava o seu homem sentado na mesa. Olhou fundo os seus olhos e viu neles um abandono sem nome, como esse vapor que restara de seu perfume. Então, entendeu: o marido estava a oferecê-la ao mundo. O baile, aquele convite, eram uma despedida. Seu peito confirmou a suspeita quando viu o marido se levantar e aprontar a saída. Ela interrompeu a dança e correu para Justino.

        – Onde vai, marido?

        – Um amigo me chamou, lá fora. Já volto.

        – Vou consigo, Justino.

        – Aquilo lá fora não é lugar das mulheres. Fique, dance com o moço. Eu já venho.

        Glória não voltou à dança. Sentada na reservada mesa, levantou o copo do marido e nele deixou a marca de seu bâton. E ficou a ver Justino se afastando entre a fumarada do salão, tudo se comportando longe. Vezes sem conta ela vira esse afastamento, o marido anonimado entre as neblinas dos comboios. Desta vez, porém, seu peito se agitou, em balanço de soluço. No limiar da porta, Justino ainda virou o rosto e demorou nela um último olhar. Com surpresa, ele viu a inédita lágrima, cintilando na face que ela ocultava. A lágrima é água e só a água lava tristeza. Justino sentiu o tropeço no peito, cinza virando brasa em seu coração. E fechou a noite, a porta decepando aquela breve desordem. Glória colheu a lágrima com dobra do próprio vestido. De quem, dentro dela mesma, ela se despedia?

        Saiu do baile, foi de encontro às trevas. Ainda procurou a velha carrinha. Ansiou que ela anda ali estivesse, necessitada de empurro. Mas de Justino não restava vestígio. Voltou a casa, sob o crepitar dos grilos. A meio do carreiro se descalçou e seus pés receberam a carícia da areia quente. Olhou o estrelejo nos céus. As estrelas são os olhos de quem morreu de amor. Ficam nos contemplando de cima, a mostrar que só o amor concede eternidades.

        Chegou a casa, cansada a ponto de nem sentir cansaços. Por instantes, pensou encontrar sinais de Justino. Mas o marido, se passara por ali, levara seu rastro. A Glória não lhe apeteceu a casa, magoava-lhe o lar como retrato de ente falecido. Adormeceu nos degraus da escada.

        Acordou nas primeiras horas da manhã, tonteando entre sono e sonho. Porque, dentro dela, em olfatos só da alma, ela sentiu o perfume. Seria o quê? Eflúvios do velho frasco? Não, só podia ser um novo presente, dádiva da paixão que regressava.

        – Justino?!

        Em sobressalto, correu para dentro da casa. Foi quando pisou os vidros, estilhaçados no sopé de sua janela. Ainda hoje restam, indeléveis pegadas de quando Glória estreou o sangue de sua felicidade.

COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 31-35.

      Fonte: Língua Portuguesa – Se liga na língua – Literatura, Produção de texto, Linguagem – 2 Ensino Médio – 1ª edição – São Paulo, 2016 – Moderna – p. 17-19.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Ramerrames: (palavra onomatopaica) rotinas, repetições fastidiosas;

·        Assomar: aparecer, surgir;

·        Passeio: calçada;

·        Casa de banho: banheiro;

·        Miúdos: crianças;

·        Tchovar: empurrar;

·        Carrinha: carro utilitário (caminhonete, perua);

·        Presto: rápido;

·        Guarda-freio: funcionário da estrada de ferro que checa e manobra os freios do trem;

·        Anuência: aprovação;

·        Arguiu: retrucou;

·        Comboios: vagões, trem;

·        Apeteceu: agradou;

·        Eflúvios: aromas;

·        Indeléveis: que não podem ser apagados.

02 – O que chamou sua atenção na linguagem utilizada por Mia Couto?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A mistura da linguagem neologismos e coloquialismos, desconstrói ditos populares, etc.

03 – O conto compõe a coletânea intitulada Estórias abensonhadas. Alguns escritores diferenciam estória (narrativa ficcional) de história (narrativa não ficcional). Relacione essa diferença ao neologismo abensonhada e explique o título dessa coletânea de Mia Couto.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O título sugere que a obra composta de contos ficcionais, inventadas (estórias); o adjetivo abensonhadas é uma fusão das palavras abensonhadas e sonhadas.

04 – Ainda que o narrador não tenha caracterizado os personagens diretamente, podemos inferir informações sobre o perfil psicológico deles. Descreva Justino e Glória com base nas informações do texto e em seu conhecimento de mundo.

      Justino trabalha na ferrovia como guarda-freio e mantém com Glória um casamento marcado pelo tédio, pelo cansaço e pelo desânimo. Ele tem ciúme da esposa e a impede de ser livre, acusando-a de ousada. Glória é uma mulher sofrida que leva uma vida difícil, sem liberdade e sem sonhos, como o esposo. Vítima do imenso ciúme de Justino, parece ter perdido a vaidade: veste-se de maneira discreta, não usa maquiagens ou perfumes e não se relaciona com outros homens.

05 – No segundo parágrafo, o narrador dá informações importantes para o desenrolar do texto.

a)   Que ditado popular é citado pelo narrador?

O dito popular “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”.

b)   Esse ditado mantém o sentido em que é usualmente empregado? Explique.

Não. Esse dito popular aparecerá no conto com outro sentido: “Entre marido e mulher o tempo metera a colher”. O tempo, e não um terceiro, será responsável pelo “ranço”, pelo “cansaço”, pelos “desnamoros”, pelos “ramerrames” que caracterizam a relação entre Justino e Glória.

c)   A progressão textual é um processo pelo qual o texto é construído com o acréscimo de novos dados ligados àqueles que já haviam sido introduzidos. Explique como se dá a progressão textual no conto citando os elementos que comprovam o dito popular mencionado no segundo parágrafo pelo narrador.

O dito popular, ressignificado no conto como “Entre marido e mulher o tempo metera a colher”, será retomado de diferentes formas ao longo do texto e contribuirá para sua progressão. O tempo, “roubador de espantos”, provocará o afastamento gradual de Justino e Glória e “resfriará” o casamento deles. Além disso, fará com que Glória não saiba mais receber um presente do marido e será responsável também pelas “definitivas tranças” no cabelo de Glória, emperrará a madeira da gaveta, símbolo do esquecimento do perfume, evaporará o perfume “antigo”, produzirá “miúdos” que gastarão o batom em brincadeiras, transformará Glorinha em Glória e mudará o olhar de Justino.

06 – O perfume é peça importante para a construção do sentido do texto.

a)   Relacione as ações de Glória aos momentos em que ele é citado.

O perfume é citado no texto em quatro momentos: quando abre a gaveta e percebe que o líquido evaporou; quando ela quebra o vidro; quando, após o baile, a personagem acorda, entre “sono e sonho”, e sente o cheiro do perfume; e, quando fere os pés com o vidro estilhaçado.

b)   Que sentido metafórico o perfume tem em cada uma das passagens?

Na primeira passagem, a evaporação do perfume sugere que o amor de Glória também já se dissipou em um relacionamento desgastado pelo tempo. Na segunda, a personagem mostra-se irada com a percepção de que seu casamento nem sequer garantiu a ela “o gosto de um cheiro”. Na terceira passagem, a mulher já sabe que não mais terá o marido e percebe que seu amor por ele voltou em virtude de sua mudança de comportamento. Na quarta, quando Glória pisa nos cacos de vidro e corre para dentro, imprime as pegadas ensanguentadas no assoalho, que permanecem ali até o presente, como que marcando a estreia de uma nova vida.

c)   Explique como é possível Glória sentir o cheiro do perfume mesmo depois de evaporado seu líquido e estilhaçado seu frasco.

O perfume é, ao mesmo tempo, símbolo de amor / desamor / retomada do amor. A busca do perfume e a descoberta de sua evaporação sugerem a atual falta de cuidado que um dia, ainda que de maneira tímida, Justino teve com Glória. Entretanto, a generosidade mostrada pelo marido no episódio do baile – que abrange o vestido dado de presente, a maquiagem exigida, a licença para a esposa dançar com um homem de “boa postura” – faz Glória retomar seu amor perdido, o que justifica que ela sinta metaforicamente o agradável cheiro do perfume que Justino lhe deu de presente no início do namoro deles. Esse cheiro simboliza a “paixão que regressava” ao coração de Glória.

 

CONTO: PASSEI POR UM SONHO - JOSÉ EDUARDO AGUALUSA - COM GABARITO

 Conto: Passei por um sonho

            José Eduardo Agualusa.

        Começou com um sonho. Afinal, é como começa quase tudo. Justo Santana, enfermeiro de profissão, sonhou um pássaro.

        – Passei por um sonho – disse à mulher quando esta acordou –, e vi um pássaro.

        A mulher quis saber que espécie de pássaro, mas Justo Santana não foi capaz de precisar. Era um pássaro grande, grave, branco como um ferro incandescente, e com umas asas ainda mais brilhosas, que o dito pássaro usava sempre abertas, de tal maneira que fazia lembrar Jesus Cristo pregado na cruz.

        – Fui sonhado por ti – disse-lhe o pássaro – com o fim de esclarecer o espírito dos homens e de trazer a liberdade a este pobre país.

        0 discurso do pássaro assustou o enfermeiro, homem simples, tímido, avesso a confrontos, e sem qualquer vocação para a política.

        – Foi apenas um sonho – disse à mulher –, um sonho estúpido.

        Na noite seguinte, porém, o pássaro voltou a aparecer-lhe. Estava ainda mais branco, mais trágico, e parecia aborrecido com o desinteresse do enfermeiro:

        – Ordeno-te que vás por esse país fora e digas a todos os homens que se preparem para um mundo novo. Os brancos vão partir e os pretos ocuparão as casas, os palácios, as igrejas e os quartéis, e a liberdade há de reinar para sempre.

        Dizendo isto sacudiu as asas e as suas penas espalharam-se pelo quarto:

        – Com estas minhas penas hás de curar os enfermos – disse o pássaro –, e assim até os mais incrédulos acreditarão em ti e seguirão os teus passos.

        Quando Justo Santana despertou, o quarto brilhava com o esplendor das penas. Na manhã desse mesmo dia o enfermeiro serviu-se de uma delas para curar um homem com elefantíase e à tardinha devolveu a vista a um cego. Passado apenas um mês a sua fama de santo e milagreiro já se espalhara muito para além das margens do Rio Zaire e à porta da sua casa ia crescendo uma multidão de padecentes. Alguns tinham vindo de muito longe, a pé, ou em improvisadas padiolas, e chegavam cobertos por uma idêntica poeira vermelha – bonecos de barro à espera de um sopro divino.

        Justo Santana colocava na boca dos enfermes uma pena do pássaro, como se fosse uma hóstia, e estes imediatamente ganhavam renovado alento. Enquanto fazia isto o enfermeiro repetia os discursos do pássaro, incapaz de compreender a fúria daquelas palavras e o alcance delas. Todas as noites sonhava com a ave e todas as noites esta o forçava a decorar um discurso novo, após o que sacudia as asas, espalhando pelo ar morto do quarto as penas milagrosas.

        – Se esse pássaro continuar assim tão generoso – disse Justo Santana à mulher – ainda o veremos transformado numa alma despenada.

        Isto durou um ano. Então, numa manhã de cacimbo, apareceram quatro soldados à porta da casa, afastaram com rancor a multidão de desvalidos, e levaram Justo Santana. O infeliz foi acusado de fomentar o terrorismo e a sublevação, e desterrado para uma praia remota, em pleno deserto do Namibe, onde passou a exercer o ofício de faroleiro.

        Quando o encontrei, muitos anos depois, em Luanda, ele falou-me desse desterro com nostalgia:

        – Foi a melhor época da minha vida.

        Encontrei-o doente, estendido numa larga cama de ferro, sob lençóis muito brancos. No quarto havia apenas a cama e um pequeno crucifixo preso à parede. Na sala ao lado os devotos rezavam murmurosas ladainhas. Aquela era a sede da Igreja do Divino Espírito. Não tinha sido nada fácil chegar até junto do enfermeiro: os seus seguidores guardavam-no corno a uma relíquia – na verdade mantinham-no preso ali, naquele quarto, quase isolado do mundo, desde 1975.

        A melhor época da vida de Justo Santana terminou de forma trágica, numa noite de tempestade, quando um bando de aves migratórias caiu sobre o farol. Enlouquecidas pela luz, as avezinhas batiam contra o cristal até quebrarem as asas, sendo depois arrastadas pelo vento. Isto está sempre a acontecer. Milhares de aves migratórias morrem todos os anos traídas pelo fulgor dos faróis. Naquela noite, desrespeitando as normas, Justo Santana foi em socorro das aves e desligou o farol. Teve pouca sorte: um barco com tropas, de regresso à metrópole, perdeu-se na escuridão e encalhou na praia. Dessa vez o enfermeiro foi julgado, condenado a quinze anos de prisão, e enviado para o Tarrafal, em Cabo Verde. Foi solto com a Revolução de Abril e regressou a Angola.

        Quando o visitei, antes de me ir embora, quis saber se o pássaro ainda lhe frequentava os sonhos. Ele olhou em redor para se certificar de que estávamos sozinhos:

        – Estrangulei-o – segredou com um sorriso cúmplice –, mas enquanto eu for vivo não conte isto a ninguém.

José Eduardo Agualusa. Passei por um sonho. In: CHAVES, Rita (Sel. E org.). Contos Africanos dos países de língua portuguesa. São Paulo: Ática, 2009. p. 106-110. (Para gostar de Ler, v. 44).

     Fonte: Língua Portuguesa – Se liga na língua – Literatura, Produção de texto, Linguagem – 2 Ensino Médio – 1ª edição – São Paulo, 2016 – Moderna – p. 111-3.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Grave: notável.

·        Padecentes: doentes.

·        Padiolas: camas de lona portáteis, macas.

·        Alento: vigor, entusiasmo.

·        Cacimbo: névoa.

·        Fomentar: estimular.

·        Sublevação: revolta, rebeldia.

·        Desterrado: exilado.

·        Cristal: vidro.

·        Fulgor: brilho.

·        Metrópole: refere-se a Portugal.

02 – Que sonho Justo Santana relata à esposa?

      Justo relata haver sonhado com um pássaro “grande, grave, branco”, que, em sua interpretação, remetia à imagem de Jesus Cristo crucificado. Essa ave apresentava a ele um discurso relacionado à liberdade, à paz de seu país e ao “esclarecimento do espírito dos homens”.

03 – O que pretendia o pássaro do sonho do protagonista?

      Ordenar a Justo que dissesse a todos os homens de seu país que se preparassem para o surgimento de um “mundo novo”.

04 – No texto lido, elementos ficcionais se misturam à história de Angola, país africano que foi colônia de Portugal até 1975. Ao longo do século XX, organizações como o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita) estiveram em luta contra a metrópole. Explique de que modo essa informação histórica pode ser relacionada à seguinte passagem do conto:

        “– Ordeno-te que vás por esse país fora e digas a todos os homens que se preparem para um mundo novo. Os brancos vão partir e os pretos ocuparão as casas, os palácios, as igrejas e os quartéis, e a liberdade há de reinar para sempre.”

      O “mundo novo” referido pelo pássaro alude a uma Angola livre. Os “brancos” citados seriam os portugueses, e os “pretos” seriam os angolanos, que retomariam casas, palácios, igrejas e quartéis, tornando-se libertos de Portugal, o que ocorreu em 1975.

05 – Em sua opinião, o que simboliza o pássaro do sonho de Justo Santana?

      O pássaro simboliza o desejo de liberdade do povo angolano.

06 – Após ser acusado de “fomentar o terrorismo e a sublevação”, Justo é mandado para uma praia remota, onde passa a exercer o ofício de faroleiro. Que relação pode ser estabelecida entre a situação vivida pelo protagonista no episódio do desligamento do farol e aquela experimentada por ele no sonho?

      Em ambas as situações há a presença de pássaros e Justo auxilia uma coletividade. No episódio do sonho, ele atende ao pedido de uma ave divina e passa a ajudar os necessitados e a doutrina-los politicamente por meio dos discursos que lhe são transmitidos. Isso faz com que ele seja condenado ao desterro. No episódio do farol, por sua vez, Justo apaga a luz do local para socorrer as aves migratórias; com isso, causa um acidente com um “arco com tropas” e acaba condenado à prisão.

07 – O conto de Agualusa apresenta um final bastante simbólico, aberto a diferentes interpretações. Para você, por que Justo teria estrangulado o pássaro do sonho?

      Resposta pessoal do aluno.

CRÔNICA: CAPÃO PECADO - (FRAGMENTO) - FERRÉZ - COM GABARITO

 Crônica: Capão pecado – Fragmento

                Ferréz


        Capítulo um

        [...]

        Rael acordava sempre às cinco da manhã, horário que presenciava seu pai já arrumado e sentado na cadeira, tomando café, esperando alguns minutos para ir trabalhar. Sua mãe sempre lhe trazia café com leite na cama, e ele não sabia que essa era a época mais feliz da sua vida.

        Era véspera de Natal, os três em volta da árvore brilhante, se é que se pode chamar um cabo de vassoura em um pote de margarina com cimento e quatro varetas de bambu com pedaços de algodão na ponta de árvore de Natal. Rael perguntou por que Natal tem árvore de Natal e Papai Noel.

        – É porque com o passar do tempo, o homem foi esquecendo o espírito real do Natal, então fez essa invenção toda, meu fio.

        – Ah! sei. Foi mais um suspiro que uma demonstração de entendimento.

        E eram já vinte horas.

        O lugar dos presentes estava vazio. E era quase Natal.

        – Ó, Zé, tem alguém no portão! exclamou Dona Maria.

        Zé Pedro correu seguido por seu filho, por seu gato Raul e por seu cachorro Renato e mais algumas sombras.

        O carteiro, com a carta na mão, esperava pacientemente, imaginando mais uma caixinha. Zé não deu, Zé não tinha, pegou a carta rapidamente e entrou.

        – O que que é veio? perguntou Dona Maria, abalada.

        – É da Metalco! respondeu Seu Zé, reconhecendo o símbolo da empresa onde trabalhava.

        – Abre veio, abre.

        – Abre, abre, abre, gritavam mãe e filho em coro com o latido do cachorro. O gato estava atento.

        O conteúdo do envelope era um cartão de Natal.

        Todos pensaram juntos, a firma se importa com o Zé, com certeza ele é muito especial.

        Seu Zé colocou o cartão na árvore e foi dormir, acompanhado de toda a família. A cama de solteiro era apertada para os três, mas eles sempre davam um jeito, o problema mesmo era a coberta, que não dava pra cobrir os pés e a cabeça.

        Mas Rael era muito curioso, e não conseguia dormir. Algo o incomodava. Levantou-se lentamente, acendeu a luz, foi até à árvore, pegou o cartão e resolveu ler, pois quando seu pai olhava o cartão, ele só estava fingindo entender o escrito, pois tinha vergonha de ficar dizendo que era analfabeto.

        Rael leu o cartão:

        “Um Feliz Natal e que seja feliz, você e toda a família, é o que nós da METALCO desejamos a todos nossos funcionários, Amor & Paz!”

        E Rael continuou a observar o cartão, notou que atrás havia letrinhas minúsculas, e, curioso, as leu.

        “Cartão comprado de associações beneficentes com efeito de abate no imposto de renda”.

        Era Rael sábio e entendeu aquilo.

        Era Zé Pedro humilde e dormia tranquilo.

        Era mais uma família comum.

        Era um Natal de paz.

        Rael carregou aquilo consigo, mas com o tempo isso se tornou algo insignificante. Suas perdas eram constantes e aparentemente intermináveis: o primeiro amigo a morrer lhe causou um baque e tanto, mas a morte dos outros dois fora menos desgastante, afinal Rael estava crescendo. A necessidade de roupas e de um material melhor para a escola o fez começar a trabalhar numa padaria. Nos finais de semana, ele fazia curso de datilografia no mutirão cultural.

        Naquele quinto dia do mês foi seu pagamento, seu primeiro pagamento. Ele chegou em casa todo orgulhoso, e já havia separado a parte de sua mãe, mas ela não se encontrava na cozinha, isso era sinal de que já estava dormindo. Rael foi conferir, e estava certo, Dona Maria dormia, enrolada na única coberta da casa. Também, o descanso naquela hora era mais do que merecido, pois trabalhava em casa de família como diarista e ainda realizava o serviço de casa. Rael voltou para a cozinha, pegou a chaleira, pegou um copo e derramou o pouco de café que tinha em seu interior. Bebeu o café meio enojado, pois o líquido negro estava gelado; procurou fósforo para acender o fogão, mas não achou, e se lembrou que seu pai sempre esquecia as caixas de fósforo nos bares quando já estava de fogo. Ficou nervoso com a lembrança das bebedeiras de seu pai e foi dormir.

FERRÉZ. Capão pecado. 2. ed. São Paulo: Labortexto Editorial, 2000. p. 27-30.

             Fonte: Livro Língua Portuguesa – Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 117-9.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado da palavra caixinha?

      Gorjeta; dinheiro (além do devido) com que se gratifica um pequeno serviço prestado por alguém.

02 – Nesse primeiro capítulo, o narrador apresenta o protagonista. Pelos fatos narrados, ações, sentimentos e falas de uma personagem, é possível inferir suas características. Com base nisso, trace o perfil de Rael.

      Rael é filho único, amoroso, tem pais pobres e analfabetos, é morador da periferia, perde amigos, deseja superar a violência por meio do estudo e do trabalho, sofre com o alcoolismo do pai. É sensível, respeitoso, trabalhador, esforçado, estudioso, orgulhoso do trabalho, grato e solidário com a família.

03 – As ações, a sequência dos fatos e dos acontecimentos são elementos que compõem as narrativas. As personagens estão sempre envolvidas em algum acontecimento.

a)   Qual é a situação vivida inicialmente pela personagem?

O cotidiano familiar aparentemente calmo em um dia de véspera de Natal.

b)   Que sequência de fatos gera mudanças na vida da personagem?

A chegada de um cartão de Natal revela a fragilidade do pai, analfabeto, o que faz com que Rael tome consciência das consequências do analfabetismo. A partir daí, ele perde amigos, começa a trabalhar e a fazer cursos nos finais de semana. Recebe o primeiro salário. Sente-se desconfortável com o alcoolismo do pai.

04 – Leia:

O narrador de terceira pessoa pode ser:

• narrador-observador, que presencia os acontecimentos, assim como as reações das personagens, e relata o que vê;

• narrador onisciente, que sabe o que as personagens sentem e pensam e conhece o seu destino – os acontecimentos do presente, do passado e do futuro.

Agora releia o trecho a seguir e, com base nele, identifique e explique o tipo de narrador de Capão pecado.

        “[...] e ele não sabia que essa era a época mais feliz da sua vida.”

      O narrador é de terceira pessoa, onisciente. Por meio desse comentário, ele antecipa que haverá mudança na situação inicial da personagem Rael, que vai enfrentar dificuldades.

05 – Qual é a relação entre os trechos a seguir?

• Todos pensaram juntos, a firma se importa com o Zé, com certeza ele é muito especial.

• [...] notou que atrás havia letrinhas minúsculas, e, curioso, as leu: ‘Cartão comprado de associações beneficentes com efeito de abate no imposto de renda’. Era Rael sábio e entendeu aquilo.

      Apesar da expectativa inicial em relação à deferência da empresa à família, Rael descobriu a real intenção da firma ao enviar o cartão de Natal: ter desconto no imposto de renda.

06 – Em uma narrativa, os fatos podem ser narrados em ordem cronológica e linear, isto é, em sequência (passado, presente e futuro), e em ordem não linear, na qual o narrador pode, aleatoriamente, lembrar fatos do passado, voltar ao presente e avançar no tempo.

a)   Qual é a organização temporal desse texto?

Ordem cronológica.

b)   É possível determinar com precisão o tempo cronológico? Explique.

Não, mas, considerando os fatos narrados, é possível dizer que se passou pelo menos um período longo. Exemplo: “[...] mas com o tempo isso se tornou algo insignificante.”.

07 – Releia:

        “[...] o primeiro amigo a morrer lhe causou um baque e tanto, mas a morte dos outros dois fora menos desgastante, afinal Rael estava crescendo.”

        Relacione esse trecho à teoria determinista que não acredita no acaso e afirma que todos os acontecimentos estão ligados entre si por rígidas relações de causalidade.

      Pode-se relacionar essa passagem ao determinismo ambiental, em que se afirma que a violência acaba naturalizada.

08 – Explique o uso do pretérito imperfeito do indicativo neste trecho:

        “Rael acordava sempre às cinco da manhã, horário que presenciava seu pai já arrumado e sentado na cadeira, tomando café, esperando alguns minutos para ir trabalhar. Sua mãe sempre lhe trazia café com leite na cama [...].”

      Esse tempo verbal indica fatos habituais vividos no passado.

TEXTO: PREFÁCIO DE CAPÃO PECADO - (FRAGMENTO) - COM GABARITO

Texto: Prefácio de Capão pecado – Fragmento

           Ferréz

        Há uma pequena árvore na porta de um bar, todos passam e dão uma beliscada na desprotegida árvore. Alguns arrancam folhas, alguns só puxam e outros, às vezes, até arrancam um galho. O homem que vive na periferia é igual a essa pequena árvore, todos passam por ele e arrancam-lhe algo de valor. A pequena árvore é protegida pelo dono do bar, que põe em sua volta uma armação de madeira; assim, ela fica segura, mas sua beleza é escondida. O homem que vive na periferia, quando resolve buscar o que lhe roubaram, é posto atrás das grades pelo sistema. Tentam proteger a sociedade dele, mas também escondem sua beleza. [...]

FERRÉZ. Capão pecado. 2. ed. São Paulo: Labortexto Editorial, 2000. p. 15.

             Fonte: Livro Língua Portuguesa – Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 116-7.

Entendendo o texto:

01 – Prefácio é o texto introdutório ou de apresentação de um livro. Ele pode ser escrito pelo próprio autor, por um crítico ou por um especialista. No prefácio, comenta-se sobre o autor e/ou a obra. 

a)   Qual é o tema do prefácio de Capão Pecado, escrito por Ferréz?

A discriminação contra as pessoas que vivem na periferia, sem proteção e sem o reconhecimento de sua cidadania. 

b)   Explique o recurso da analogia usado no prefácio.

O homem que vive na periferia é comparada a uma árvore desprotegida, que é atacada o tempo todo por quem passa por ela.

c)   Que a armação de madeira colocada em torno da árvore simboliza?

A prisão, a exclusão social, a separação, a discriminação.