quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

CRÔNICA: A MENININHA E O GERENTE - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - COM GABARITO

 CRÔNICA: A MENININHA E O GERENTE

                        Carlos Drummond de Andrade


- Não, paizinho, não! Quero ir com você!

- Mas, meu bem, não posso levar você lá. O lugar não é próprio. Não vou demorar nada, só dez minutos. Seja boazinha, fique me esperando aqui.

- Não, não! – a garotinha soluçava. Agarrou-se à calça do pai como quem se agarra a uma prancha no mar. Ele insistia:

- Que bobagem, uma menina da sua idade fazendo um papelão desses!

- Você não volta!

- Volto, ora essa, juro que volto, meu amor.

Prometendo, ele passava o olhar pela rua, impaciente. Ela baixara a cabeça, chorando. Estavam diante da papelaria. O gerente assistia à cena. O homem aproximou-se dele:

- Faz-me o obséquio de tomar conta de minha filha por alguns instantes? Vou a um lugar desagradável e não posso levá-la comigo.

- Mas...

- Quinze minutos no máximo. É ali adiante. Muito obrigado, hein?

E sumiu. A garotinha continuava de olhos baixos, imóvel, dorso da mão esquerda junto à boca. O gerente passou-lhe a mão nos cabelos, de leve.

- Vem cá.

Ela não se mexeu.

- Como é que você se chama? Carmem? Luíza? Marlene?

Como não respondesse, o gerente foi desfiando nomes, sem esperança de acertar. Mas ao dizer “Estela”, a cabecinha moveu-se, confirmando.

- Estela, você sabe que está com um vestido muito bonito?

 

Estela tirou a mão dos olhos, examinou o próprio vestido e não disse nada.

Mas o gelo fora rompido. Daí a pouco o gerente mostrava-lhe a caixa registradora e autorizava-a a marcar uma venda de 200 cruzeiros.

- Olha um gatinho. Ele mora aqui?

- Mora.

- E que nome tem?

- Papel.

- Mentiroso!

- Então pergunte a ele.

O gato acordou, deixou-se afagar e tornou a dormir, desta vez nos braços de Estela.

O gerente olhou o relógio; tinham se passado quinze minutos, o homem não aparecia. “Bonito se ele não vier mais. O que eu vou fazer com esta garotinha, na hora de fechar?”

Tentou lembrar o rosto do desconhecido, impossível. Já pensava em telefonar para a polícia, quando Estela o puxou pela perna:

- Além da máquina e do gatinho, você não tem mais nada para me mostrar?

Ele abarcou com a vista a loja toda e achou-a mal sortida, pobre. “Eu devia ter aberto uma loja de brinquedos, pelo menos um bazar.” Experimentou com Estela o apontador de lápis, o grampeador. E o homem não vinha. “É, não vem mais.” Estela andava de um lado para o outro, dona do negócio. Ele, inquieto.

- Não mexa nas gavetas, filhinha.

- Não sou sua filhinha.

- Desculpe.

- Desculpo se você deixar eu abrir.

- Então deixo.

 

Dentro havia balões, estrelinhas, saldo do último Natal. E ele que não se lembrava daquilo. Estela riu de sua ignorância, e o homem não vinha. O movimento de fregueses declinava. Na calçada, as filas de lotação iam crescendo. Daí a pouco, a noite.

Estela soprou um balão, outro, quis soprar dois ao mesmo tempo. Um estourou. Ela assustou-se. Ele riu.

“Se o homem não aparecesse mais, que bom! Aliás, a cara dele era de calhorda. Ainda bem que me escolheu.” Levaria Estela para casa. A mulher ia estranhar, fariam dela uma filha – a filha que praticamente não tinham mais, pois casara e morava longe, no Peru. E se o pai reclamasse depois? Ora, quem entrega a filha a um estranho, diz que vai demorar quinze minutos, passa uma hora e não volta, merece ter uma filha?

O empregado arriava a cortina de aço quando apareceram duas pernas, um tronco inclinado, uma cabeça.

- Dá licença? Demorei mais do que pensava, desculpe. Muito obrigado ao senhor. Vamos, filhinha?

O gerente virou o rosto, para não ver, mas chegou até ele a despedida de Estela:

- Até logo, homem do balão!

E a filha mais longe ainda, no Peru.

 

(DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Para gostar de ler, v.3. São Paulo. Ática, 1979.)

Fonte: Livro: Português  5ª Série – Palavra Aberta – Isabel Cabral. Atual Editora,1995, p.187-190.

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Entendendo o texto

1.   Podemos dividir o texto em cinco partes. Leia a frase que resume os acontecimentos de cada parte e diga onde começa e onde termina cada uma.

1ª parte: O pai não pode levar a filha aonde vai.

Do início até “meu amor”.

         2ª parte: O pai deixa a filha com o gerente.

         De “Prometendo” até “sumiu”.

         3ª parte: O gerente tenta aproximar-se da menina.

        De “A garotinha” até “disse nada”.

       4ª parte: A menina e o gerente tornam-se bons companheiros.

        De “Mas o gelo” até “ter filha”.

       5ª parte: O pai retorna.

       De “O empregado” até o final.

2.   Quais são as personagens dessa história?

A menina, o gerente e o pai da menina.

3.   Dê as características da personagem gerente. Baseie-se em suas ações e em pensamentos mostrados pelo texto.

Honesto, sonhador, etc.

4.   Onde aconteceu a história?

Numa papelaria.

5.   Vamos observar o tempo da história.

a)   Essa história acontece nos dias de hoje ou em um passado mais distante? Por quê?

Nos dias de hoje. Existe a presença de elementos como “grampeador”, por exemplo.

b)   Quanto tempo, aproximadamente, a menina fica com o gerente? Algumas horas? Um dia? Vários dias?

Cerca de uma hora.

6.   O narrador da história também é personagem?

                 Não.

7.   O gerente “abarcou com a vista a loja toda e sentiu-a mal sortida, pobre”.

a)   A loja realmente era pobre ou o gerente considerou-a pobre por causa da menina?

Considerou pobre por causa da menina. Não havia artigos que pudessem interessar a uma criança.

b)   Com que coisas da loja Estela se distraiu?

Com o gato, o apontador, o grampeador, os balões e as estrelinhas.

c)   O gerente queria agradar Estela?

Sim.

8.   Um determinado fato preocupou o gerente.

a)   Que fato o preocupa?

O pai da menina começa a demorar.

b)   Podemos afirmar que, à medida que o tempo passa, a preocupação do gerente se transforma em desejo? Que desejo?

Sim. Ele começa a desejar que o pai da menina não volte para poder “adotá-la”.

9.   Quando o pai de Estela chegou para leva-la embora, o gerente ficou contente? Como ele se sentiu? Retire um trecho do texto que comprove a sua resposta.

             Não. Ele ficou triste, meio frustrado. “O gerente virou o rosto, para não ver [...]”.

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