domingo, 24 de janeiro de 2021

HISTÓRIA: O VELHO LOBO-DO-MAR (FRAGMENTO) - R.L. STEVENSON - COM GABARITO

 História: O velho lobo-do-mar (Fragmento)

               R. L. Stevenson

        O squire Trelawney, o Dr. Livesey e os outros cavalheiros tendo pedido para que eu escrevesse sobre a Ilha do Tesouro, lance por lance, do começo até o fim, não deixando nada de fora a não ser a localização da ilha, e isso apenas porque há nela um tesouro ainda não retirado, pego de minha pena no ano da graça de 17... e recuo até a época em que meu pai possuía a estalagem Almirante Benbow e em que o velho marinheiro moreno, com um corte de sabre, veio hospedar-se sob nosso teto.

        Lembro-me dele como se fosse ontem, de como foi aproximando-se devagar da porta da estalagem, de seu baú de marujo vindo atrás num carrinho de mão; um homem alto, forte, pesado, de pele amorenada; um rabo-de-cavalo seboso caía sobre os ombros de seu casaco azul manchado; as mãos, cheias de calos e cicatrizes, as unhas pretas e quebradas; o corte de sabre de um lado do rosto era de um branco lívido, sujo. Lembro-me dele olhando a enseada e assoviando para si mesmo, como costumava fazer, e súbito entoando aquela velha canção do mar que, depois, ele cantou tantas vezes:

        Quinze homens sobre o baú do morto

        Yo-ho-ho, e uma garrafa de rum! No mais alto de uma voz trêmula, velha, que parecia ter sido modulada e triturada nas barras do cabrestante. Então bateu na porta com um pedaço de vara igual a uma estaca que carregava e, quando meu pai apareceu, pediu com rispidez um copo de rum. Quando foi servido, bebeu lentamente, como um bom apreciador, demorando-se a saboreá-lo e olhando sempre à sua volta para os rochedos e espiando nossa tabuleta.

        -- É uma enseada jeitosa – disse, por fim. – E um boteco agradavelmente situado. Muita gente, companheiro?

        Meu pai disse-lhe que não, muito pouca gente, o que era mesmo uma pena.

        -- Bem – ele disse –, para mim isto é uma cabine. Você aí, camarada – gritou para o homem que empurrava o carrinho. – Traga meu baú para cá e o leve para dentro. Vou ficar aqui algum tempo – continuou. – Sou um homem simples; rum, bacon e ovos é tudo que quero e ficar vendo daqui de cima passar os navios. Como é que deve me chamar? Pode me chamar de capitão. Ah, já sei em que é que... está aqui. – E jogou na soleira três ou quatro moedas de ouro. – Pode me avisar quando eu já tiver gasto – disse, olhando ameaçadoramente como um comandante.

        E, de fato, apesar das roupas ruins e do jeito grosseiro de falar, não tinha a aparência de um simples marinheiro; parecia mais um capitão de navio, acostumado a ser obedecido ou a intimidar. O homem que trouxe o carrinho disse-nos que a diligência o deixara de manhã diante do Royal George; que ele perguntara sobre as estalagens que existiam ao longo da costa e ouvindo falar bem da nossa, suponho, que fora descrita como isolada, escolhera-a para sua residência. E isso foi tudo que pudemos saber sobre nosso hóspede.

        Ele era um homem silencioso por hábito. Passava os dias rondando a enseada ou sobre os rochedos, com um telescópio de metal; à noite, sentava-se a um canto da sala de estar perto do fogo e bebia rum forte misturado com água. Na maioria das vezes não respondia quando falavam com ele, apenas olhava de modo rápido e feroz, e a soprar pelo nariz como um fole; e nós e as pessoas que vinham à nossa casa logo aprendemos a deixa-lo a sós. Todo dia, quando voltava de seu passeio, perguntava se algum marinheiro tinha passado pela estrada. No início, pensamos que era o desejo de companhia de alguém de seu meio que o fazia perguntar, mas por fim começamos a desconfiar que ele desejava evita-los. Quando algum marujo parava no Almirante Benbow (como ainda hoje alguns fazem, tomando a estrada costeira para Bristol), ele o olhava através das frestas da porta antes de entrar na sala; e sempre mantinha-se calado como um rato quando havia alguém assim. Para mim, pelo menos, o caso já não tinha mais segredo, pois eu, de certo modo, partilhava de seus alarmes. Um dia chamou-me de lado e me prometeu uma moeda de prata de quatro pence no primeiro dia de cada mês se eu ficasse “de olho num marujo com uma perna só” e o avisasse quando ele aparecesse. Muitas vezes, quando chegava o primeiro dia do mês e eu lhe pedia meu pagamento, ele apenas soprava pelo nariz e me fazia baixar a vista; mas antes que a semana terminasse ele sempre mudava de ideia, dava-me a moeda de quatro pence e repetia suas ordens sobre “o marujo com uma perna só”.

        Como esse personagem assombrava meus sonhos, eu nem sei dizer-lhe. Nas noites de tempestade, quando o vento sacudia os quatro cantos da casa e a rebentação zoava ao longo da enseada e contra os rochedos, eu ficava a vê-lo de mil formas e com mil expressões diabólicas. Ora a perna era cortada até o joelho, ora até os quadris, ora era um tipo monstruoso de criatura que sempre tivera uma perna só, bem no meio de seu corpo. Vê-lo saltar e correr e perseguir-me entre as sebes e sobre o fosso era o pior dos pesadelos. E assim, no fim de contas, eu pagava muito caro pelos quatro pence mensais, sob a forma dessas fantasias abomináveis.

        Mas, embora eu tivesse aterrorizado com a ideia do marujo de uma perna só, era eu quem tinha menos medo do próprio capitão do que qualquer outro que o conhecia. Havia noites em que ele tomava bem mais rum com água do que sua cabeça podia aguentar; e aí algumas vezes sentava-se e cantava as suas velhas, perversas, rudes canções de marujo, sem ligar para ninguém; mas às vezes pedia copos para os outros e forçava seus trêmulos convivas a ouvir suas histórias ou a acompanha-lo, fazendo coro para sua cantoria. Ouvi muitas vezes a casa estremecer com seu “Yo-ho-ho, e uma garrada de rum!”; todos o acompanhavam por amor à vida, com medo de morrer ali mesmo, e cada um cantando mais alto que o outro, para evitar reprimendas. Pois nesses acessos ele era o mais tirânico companheiro que jamais se viu; dava murros na mesa para impor silêncio a todos; ficava tomado pela raiva a uma pergunta qualquer ou às vezes porque ninguém perguntava e, desse modo, julgava que sua plateia não estava seguindo a história. Nem permitia também que ninguém saísse da estalagem enquanto não estivesse caindo de bêbado e fosse cambaleando para a cama.

        Mas eram suas histórias o que mais assustava as pessoas. Eram terríveis histórias, essas; sobre enforcamentos e andar em cima da prancha e tempestades no mar e sobre Tortuga e façanhas selvagens e lugares nos mares da Espanha. Pelo que contava, devia ter passado sua vida entre alguns dos mais perversos homens que Deus colocava sobre o mar; e a linguagem em que contava essas histórias chocava nossa simples gente do campo quase tanto quanto os crimes que descrevia. Meu pai estava sempre dizendo que a estalagem iria arruinar-se, pois logo as pessoas deixariam de vir para não serem tiranizadas e humilhadas e irem para a cama tremendo; mas eu acreditava de fato que sua presença nos fazia bem. Na época, as pessoas estavam apavoradas, mas lembrando direito elas bem que gostavam daquilo; era uma bela excitação numa tranquila vida no campo; e havia até mesmo uma parte dos mais jovens que achava que o admirava, chamando-o de “um verdadeiro lobo-do-mar” e um “autêntico marinheiro da velha-guarda” e outros nomes assim, e dizendo que aquele era o tipo de homem que tinha tornado a Inglaterra temível nos mares.

        [...]

        A Ilha do Tesouro. São Paulo, Ática, 1997.

Fonte: Livro – Ler, entender, criar – Português – 6ª Série – Ed. Ática, 2007 – p.217-220.

Entendendo a história:  

01 – No texto lido, qual é o significado da expressão lobo-do-mar? A quem ela é atribuída?

      No texto, “lobo-do-mar” significa marinheiro experiente, que conhece bem todos os detalhes de sua profissão. A expressão é atribuída ao velho marinheiro que se intitula “capitão” e se hospeda na estalagem Almirante Benbow.

02 – Qual é o significado da expressão ano da graça? Por que existem reticências depois de 17?

      A expressão “ano da graça” tem origem religiosa e é utilizada para indicar um ano determinado depois do nascimento de Cristo. As reticências foram empregadas porque o narrador não quis precisar para o leitor o ano exato em que se passaram os fatos que pretende narrar.

03 – Faça uma lista de palavras e expressões cujo significado você desconhece. Se não puder deduzi-lo do próprio texto, pesquise num dicionário. Lembre que nos dicionários as palavras podem apresentar mais de um significado. Anote apenas o adequado para cada palavra ou expressão na frase em que ela aparece.

      Resposta pessoal do aluno.

04 – Quem narra a história da Ilha do Tesouro?

      O filho do dono da estalagem Almirante Benbow, que é um narrador-personagem.

05 – Quais aspectos físicos do marinheiro o narrador selecionou para descrevê-lo?

      Homem alto, forte, pesado, de pela amorenada; um rabo-de-cavalo seboso caído sobre os ombros; mãos calosas e com cicatrizes; unhas pretas e quebradas; um corte de sabre de um lado do rosto.

06 – Quais aspectos do modo de ser do marinheiro o narrador selecionou para descrevê-lo?

      Ríspido, autoritário, modo grosseiro de falar, silencioso, preferia o isolamento, desconfiado em relação aos desconhecidos. Gostava de cantar canções do mar e de contar histórias de terror numa linguagem rude, que despertava medo em seus interlocutores.

07 – A descrição do velho marinheiro permite ao leitor visualizá-lo? Leve em conta suas respostas às questões 5 e 6 para chegar a uma conclusão e comente sua resposta.

      Resposta pessoal do aluno.

08 – De seu ponto de vista, qual aspecto do marinheiro mais chamava a atenção dos que visitavam a estalagem e do narrador e pode despertar também a curiosidade do leitor?

      O seu gosto por contar histórias de terror. Essa característica do marinheiro pode criar no leitor a expectativa de que a história que vai ler certamente envolve aventuras e façanhas no mar.

09 – Quais fatos do texto permitem ao leitor imaginar que o marinheiro esperava alguém?

      Ele passava os dias rondando a enseada ou sobre os rochedos, com um telescópio de metal. Depois, ofereceu dinheiro para o filho do dono da estalagem (e narrador da história) para que ele o avisasse a respeito da chegada de um marujo com uma perna só.

10 – O marujo que talvez apareça na estalagem é amigo do “capitão” ou pode haver um conflito entre eles? Justifique sua resposta com elementos do texto.

      Pode haver um conflito entre eles. O fato de o “capitão” ter oferecido dinheiro para que o filho do dono da estalagem vigiasse a chegada desse marujo comprova a possibilidade de um conflito.

11 – Informe-se sobre o que é uma enseada e, em seu caderno, desenhe-a cercada de rochedos.

      Resposta pessoal do aluno.

12 – O texto que você leu é um trecho do 1° capítulo de um livro chamado A Ilha do Tesouro. Em sua opinião, este é um bom início? Comente um pouco sua resposta.

      Resposta pessoal do aluno.

 

 

     

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