domingo, 24 de janeiro de 2021

CARTA: ANITA MALFATTI - MÁRIO DE ANDRADE - COM GABARITO

 Carta: Anita Malfatti


Mário de Andrade

S. Paulo 1-12-1924

        Anita do coração, estou pra te escrever faz dias dando-te os parabéns pela tua aceitação no Salão de Outono. Fiquei contentíssimo e consegui notícias no Jornal do Comércio e Correio Paulistano. No Estado não posso chegar. Inimigos. Mas soube pela tua mãi que reproduziram a notícia. Ainda bem. Apareceu alguma crítica? Também é tanta gente a concorrer ao Salão!... E teus quadros ficaram bem colocados? Morri de desejo de vê-los. E a estátua do Brecheret? Aquele animal não há meio de me escrever nem uma linha. Estou danado com ele. Por que não pede pra noiva, não? Quem tem uma noivinha boa como me dizem que é a dele, pode pedir a ela que escreva. Depois bota um abraço em baixo e pronto. Vi a fotografia da Porteuse de Parfums. Achei-a lindíssima. Que equilíbrio e que construção! Morri de desejos de vê-la também. Vivo morrendo por causa de vocês. Que amigos assassinos, puxa! Brecheret ao menos mandou fotografias. E tu nem isso! Pois si já me contaste que as fotografias foram tiradas, por que se fazer de rogada agora? Manda as fotografias in continente sinão me zango de verdade.

      Nós aqui bem. Eu como sempre de cangalha no pescoço. Mal posso me mexer. Antes-de-ontem caí do bonde. Um Horror! Assim: De bunda no trilho. Felizmente há um anjo-da-guarda pros malucos que tomam bonde andando. O caradura me pegou com as pernas e me atirou longe. Rolei no asfalto que nem uma bolinha de papel, disse um que viu. Felizmente não aconteceu nada. Escangalhei roupa, chapéu e botina. No corpo umas arranhaduras. Só que tudo me dói, pescoço, braços, joelhos, costas, tudo. Está sarando, não te assustes.

        Já te falei do baile futurista? Esteve estupendo. Um pintor russo de muito valor que mora agora aqui fez as decorações duma sala. Estupendas, nem imaginas. E esteve divertidíssimo até 6 horas da manhã.

        Não tenho mais nada pra te contar. Ando miquiado e saí de Ariel. São trezentos milréis de menos. Justamente o que te devo e não me esqueço. Dia virá. Espera. Dia virá, minha querida Anita. O “querida” não está aqui pra adoçar a tua espera. Está porque te quero bem. Até logo.

        O mais apertado dos abraços do Mário.

   Marta Rossetti Batista, org. Mário de Andrade – Cartas a Anita Malfatti. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989.

Fonte: Livro – Ler, entender, criar – Português – 6ª Série – Ed. Ática, 2007 – p.131-3.

Fonte da imagem - https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FAnita_Malfatti&psig=AOvVaw18_iIFEz4qlg4p4TBEXork&ust=1611610652312000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCMC6y-DDte4CFQAAAAAdAAAAABAD

Entendendo a carta:

01 – O texto acima é uma carta enviada pelo escritor Mário de Andrade à pintora Anita Malfatti. Onde e quando foi escrita essa carta?

      Em São Paulo, em 1/12/1924.

02 – Muitas das expressões usadas por Mário de Andrade em sua carta à amiga nos soam estranhas. No entanto, ela foi redigida em português, a mesma língua que falamos hoje. Como se explica essa estranheza?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Em mais de setenta anos, a língua – que não é algo rígido e imutável – se transformou: fixou-se de alguma forma a grafia de certas palavras que ainda era oscilante. Certos vocábulos deixaram de ser usados e outros foram incorporados, etc. Acrescentem-se a isso certas maneiras de grafar próprias de Mário de Andrade, que escrevia, por exemplo, mãi, sinão e si, em lugar de mãe, senão e se.

03 – Leia: “Pois si já me contaste que as fotografias foram tiradas, por que se fazer de rogada agora? Manda as fotos in continente sinão me zango de verdade”. Tanto em sua correspondência como em algumas obras, o escritor Mário de Andrade grafou certas palavras da forma como são pronunciadas, e não como estão registradas no dicionário. Identifique no trecho acima as palavras em que isso ocorre.

      Si e sinão (em lugar de se e senão).

04 – Pesquise no dicionário ou converse com pessoas mais velhas para descobrir o significado, no texto, de:

a)   Fazer-se de rogado;

Agir como pessoa que gosta que lhe peçam algo com insistência.

b)   In continente;

Imediatamente.

c)   De cangalha no pescoço;

Trabalhando bastante, sem tempo livre.

d)   Escangalhar;

Estragar.

e)   Estupendo;

Maravilhoso.

f)    Miquiado.

Sem dinheiro.

05 – Mário de Andrade grafou antes-de-ontem (com hifens) e milréis (em uma palavra só). Como essas palavras aparecem registradas hoje nos dicionários?

      Anteontem (ou antes de ontem); mil-réis.

06 – Releia: “Anita do coração, estou pra te escrever faz dias dando-te os parabéns pela tua aceitação no Salão de Outono”.

a)   Que pronome pessoal Mário de Andrade emprega para dirigir-se a sua interlocutora?

Tu.

b)   Como você chegou a essa conclusão?

Pelo emprego do pronome pessoal oblíquo te e do pronome possessivo tua.

07 – A carta de Mário de Andrade transmite certa jovialidade e revela a intimidade que havia entre os interlocutores. Essa impressão é causada pelo emprego de algumas expressões próprias da linguagem informal. Quais são elas?

      Entre outras, “pra”, “aquele animal”, “estou danado”, “puxa!”, “pros”, “que nem”, “pra adoçar a tua espera”.

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