RELATO/BIOGRAFIA: A CASA
Não acredito que o futuro de quem quer
que seja possa estar escrito com antecedência na configuração das linhas da mão
ou dos astros do céu. Mas não posso deixar inteiramente de lado a ideia de o
local de meu nascimento ter influído nos rumos de minha vida. Pois nasci numa
livraria. Melhor dizendo, num quarto bem ao lado da Livraria, Papelaria e
Tipografia J.V. Guimarães. É o que diz a placa da loja do meu avô materno, em
cuja casa de Taquaritinga vim ao mundo no dia 22 de julho de 1926.
Não me lembro evidentemente desse dia.
Mas não deve ter sido diferente dos dias em que nasceram, anos depois, minhas
duas irmãs, Ernestina e Fernanda. Em dias assim, a rotina da casa patriarcal de
J. V. Guimarães mudava muito. As mulheres corriam apressadas de um lado para o
outro, cochichando misteriosamente entre si. As crianças eram mandadas cedo
para o quintal, advertidas de não fazer barulho para não incomodar minha mãe,
cujos gemidos de parturiente eu e meu primo Quinzinho ouvíamos de longe, meio
assustados.
Nesses dias remotos os bebês não
nasciam em hospitais. Nasciam em casa mesmo, pelas mãos de uma parteira ou de
um clínico geral amigo da família. Para cada um dos seus dois filhos e de suas
três filhas, meu avô mandava fazer um quarto. O de meus pais era o primeiro da
casa, ao lado da sala de visitas e logo atrás da livraria, cujas largas portas
de madeira, pintadas de azul, davam para a rua do Comércio. Mais tarde,
mudaram-lhe o nome para rua Prudente de Morais, receio que para desgosto do meu
avô. Ele não simpatizava muito com o regime republicano, porque exilara o velho
Imperador, a quem ele admirava. Tanto assim que havia um retrato da família
imperial pendurado em nossa sala de visitas, logo acima do piano alemão.
Meu avô era português, mas viera ainda
rapazola para o Brasil. Tivera uma vida meio aventurosa de bombeiro e soldado
nos tempos de Floriano Peixoto. Já era tipógrafo e dono de jornal em Ribeirão
Bonito, São Paulo, quando se casou com minha avó, Cândida Marçal, ou Dona
Zizinha, emérita contadora de histórias de sacis, bruxas e assombrações. Os
filhos do casal nasceram todos em Ribeirão Bonito. A família veio completa para
Taquaritinga quando meu avô resolveu para lá transferir seus negócios, menos o
jornal. [...]
[...] De meu pai, Paulo Artur Paes da
Silva, herdei o Paulo do meu nome; o José veio-me do avô paterno, conforme era
praxe nas famílias portuguesas. Meu pai era português de nascença e nunca
chegou a perder de todo o sotaque. Conheceu minha mãe em uma de suas passagens
de caixeiro-viajante por Taquaritinga e com ela se casou em 1925.
Embora tivesse apenas o curso primário,
era um homem inteligente, ativo, habilidoso. Foi dono de um semanário, A
Notícia, e de um escritório de contabilidade e corretagem de seguros. Mas
terminou seus dias como caixeiro-viajante. Gostava de ler: tinha no quarto uma
pequena biblioteca, na qual predominavam os romances policiais, por que era
fanático, e livros sobre maçonaria, de que era membro. Além de marceneiro
amador, era um excelente cozinheiro de fim de semana. Nos sábados e domingos,
apossava-se da cozinha para fazer um arroz de frango e umas iscas de bacalhau
simplesmente divinos. Uma festa culinária para a família toda, que nos outros
dias tinha de suportar a comida insossa de vovó Zizinha.
Minha mãe, que se chamava Diva
Guimarães Paes, completara apenas o primário, mas redigia com correção e certo
apuro literário, numa letra bonita, as cartas que me escrevia toda semana
quando fui estudar fora. Era uma mulher baixinha e vivaz, sempre risonha
(raríssimas vezes a vi triste), de uma bondade e de uma solicitude a toda
prova. Com meu avô aprendera rudimentos de arte tipográfica e chegara a
imprimir um jornalzinho seu. Era uma leitora voraz dos romances água-com-açúcar
da coleção das Moças e dos folhetins de capa e espada assinados pela minha avó,
que os recebia semanalmente pelo correio e os encadernava em grossos volumes.
Para a criançada ainda analfabeta da casa, os folhetins de Dona Zizinha não
interessavam. Interessavam, sim, as histórias de assombração por ela contadas
numa voz de arrepiar, cheia de efeitos sonoros.
Nos dias da minha infância
interioriana, havia uma separação nítida entre o mundo dos adultos e o mundo
das crianças. Ficávamos o menos possível dentro de casa, pois ali estávamos sob
o olhar vigilante e autoritário dos mais velhos. Em especial da tia Aglai, que
supervisionava a arrumação da casa. Ela nos dava bons pitos quando, vindos do
quintal, sujávamos o seu chão de tábuas lavadas, que mais tarde passaram a ser
enceradas a capricho. Durante as refeições na grande mesa de abrir – meu avô
ocupava a cabeceira e eu tinha o privilégio de sentar-me à sua direita –, tia
Aglai me chamava a atenção toda vez que eu apoiava o cotovelo para segurar a
cabeça numa das mãos, enquanto comia enfastiadamente com a outra: “Tem medo que
a sua cabeça caia dentro do prato, é?”
Longe dos pitos dos adultos, o quintal
era a pátria da liberdade que nos pertencia quase por inteiro. Quase, porque,
se bem pudéssemos trepar pelas árvores de fruta e nos empanturrar de mangas,
laranjas, tangerinas, jabuticabas e uvaias, os canteiros de verduras plantadas
pelo meu avô e os canteiros de flores ciumentamente cuidados pela minha avó
eram-nos zona proibida. Quem se atrevesse a passar-lhes a fronteira estava
sujeito a um puxão de orelhas. O meu companheiro de brinquedos era o primo
Quinzinho, seis meses mais novo que eu e hoje um veterano endodontista e, São
José do Rio Preto.
Para a nossa imaginação inflamada pelas
aventuras dos seriados das matinês de sábado e domingo, o quintal se
transformava, com a maior facilidade do mundo, em deserto árabe, selva africana
ou faroeste bravio. Tínhamos um gosto especial por inventar esconderijos e
passagens secretas. Quando meu tio Arnóbio, pai de Quinzinho, construiu casa
própria e para ela se mudou, eu ia às vezes brincar no seu pomar. Ali ajudei
meu primo a escavar uma passagem secreta sob o muro da frente, por onde nos
esgueirávamos para a rua quando nos dava na telha. O diabo foi que, com a primeira
chuva, um pedaço do muro desabou sobre o buraco sorrateiramente escavado, para
surpresa do tio Arnóbio, que nunca conseguiu descobrir a verdadeira causa do
desastre.
Quem, eu? – Um poeta
como outro qualquer. São Paulo, Atual, 1996.
Fonte: Livro – Ler, entender, criar – Língua Portuguesa,
6ª série- Editora Ática – São Paulo, 2003 – p.108-112.
Fonte da imagem acima:https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fmyloview.com.br%2Ffotomural-desenho-de-esboco-da-antiga-casa-entre-o-pomar-no-11C239&psig=AOvVaw0xijOgcVlXiQVQEQxMsiCk&ust=1610929117935000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCOitiunYoe4CFQAAAAAdAAAAABAD
Entendendo o relato:
01 – Nesse texto o autor nos
conta um pouco de sua infância. Converse com seus colegas: que pessoas e fatos
marcaram sua infância? Você se lembra de suas brincadeiras, de seus
companheiros?
Resposta pessoal
do aluno.
02 – Mesmo que você não
conheça algumas palavras empregadas no texto, provavelmente conseguiu entender
o significado pelo contexto. Se ainda for necessário, consulte o dicionário.
·
Avultar: aumentar, acentuar.
·
Emérita: sábia, conhecedora.
·
Endodontista: profissional que pratica endodontia.
·
Esgueirar-se: escapulir, safar-se.
·
Parturiente: mulher que está prestes a parir.
·
Patriarcal: que se refere ao pai.
03 – Logo no início do texto
o autor afirma não acreditar que o futuro de alguém possa estar escrito nas
linhas da mão ou na configuração dos astros.
a)
Você concorda com a opinião dele?
Resposta pessoal do aluno.
b)
Releia o boxe “Conheça o autor”. Qual a
profissão de José Paulo Paes?
Escritor.
c)
Que fato passado ele acredita que o
influenciou na escolha de sua profissão?
O fato de ter nascido em uma casa vizinha a uma livraria.
04 – Quando e onde o autor
do texto nasceu?
Em 22 de julho de
1926, em Taquaritinga.
05 – Releia:
“...
As mulheres corriam apressadas de um lado para o outro, cochichando
misteriosamente entre si. As crianças eram mandadas cedo para o quintal,
advertidas de não fazer barulho para não incomodar minha mãe, cujos gemidos de
parturiente eu e meu primo Quinzinho ouvíamos de longe, meio assustados.”
Essa cena é descrita do ponto de vista de uma criança ou de um adulto?
Justifique sua resposta.
Do ponto de vista de uma criança. Os
meninos viam as mulheres correrem e não eram informados sobre o que estava
acontecendo; mandados para o quintal, ouviam gemidos cuja natureza não
identificavam e que, por isso, assustavam.
06 – José Paulo Paes conta
como foi escolhido seu nome: a partir dos nomes do avô paterno, José, e do pai,
Paulo, como era costume nas famílias portuguesas. E o seu nome, como foi
escolhido? Se não souber, converse com seus pais e familiares sobre isso e
anote suas observações. Traga-as para a classe e comente-as com seus colegas.
Resposta pessoal
do aluno.
07 – Forma dupla com um
colega para responder às questões:
a)
Na sua opinião, o leitor desse texto fica
conhecendo alguns aspectos da época em que o autor viveu? Por quê?
Sim, em geral, ao ler o relato da vida de uma pessoa, o leitor entra
também em contato com a cultura da época em que essa pessoa viveu.
b)
Que semelhanças e diferenças há entre os
costumes descritos no texto e os que existem em sua região hoje em dia, no que
se refere a relações familiares, atividades ou profissões dos adultos e
atividades e brincadeiras das crianças?
Resposta pessoal do aluno.
08 – Ao longo do texto, o
autor vai caracterizando os familiares com os quais conviveu na infância: o
pai, a mãe, o avô, a avó, a tia Aglai, o primo Quinzinho. Descreva oralmente
cada um deles. Na sua opinião, qual o mais interessante? Por quê?
Resposta pessoal do aluno.
09 – Releia um trecho em que
o autor fala sobre sua mãe: “Era uma leitora voraz dos romances água-com-açúcar da coleção das
Moças e dos folhetins de capa e
espada assinados pela minha avó [...]”.
a)
Qual o significado das expressões destacadas
no trecho acima?
A expressão água-com-açúcar significa “romântico, piegas, ingênuo”; “romances
água-com-açúcar” são histórias de amor ingênuas e adocicadas. Folhetins de capa
e espada eram os fragmentos de romances de aventuras cavalheirescas publicadas
nos jornais, dia a dia ou semanalmente.
b)
Perguntes a algumas pessoas idosas de sua
família ou conhecidas que livros elas costumavam ler no passado. Elas conhecem
as leituras mencionadas no texto? Anote no caderno as informações recolhidas e
comente-as com os colegas.
Resposta pessoal do aluno.
10 – A avó do autor gostava
muito de ler e era grande contadora de histórias. Converse com seus colegas:
alguém contava ou ainda conta histórias para você? Você gosta dessa atividade?
Que lembranças você tem de sua infância em relação a ouvir histórias?
Resposta pessoal
do aluno.
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