CONTO: TELEVISÃO PARA DOIS
Fernando Sabino
Ao
chegar, ele via uma luz que se coava por baixo da porta para o corredor às
escuras. Era enfiar a chave na fechadura e a luz se apagava. Na sala, punha a
mão na televisão, só para se certificar: quente, como desconfiava. Às vezes,
ainda pressentia movimento na cozinha:
— Etelvina, é você? A
empregada aparecia, esfregando os olhos: — Ouvi o senhor chegar… Quer um
cafezinho? Um dia, ele abriu o jogo:
— Se você quiser ver
televisão quando eu não estou em casa, pode ver à vontade.
— Não precisa não, doutor.
Não gosto de televisão.
— E eu muito menos.
Solteirão, morando sozinho, pouco parava em casa. A pobre da cozinheira metida
lá no seu quarto o dia inteiro, sozinha também, sem ter muito o que fazer… Mas
a verdade é que ele curtia o seu futebolzinho aos domingos, o noticiário todas
as noites e mesmo um ou outro capítulo da novela, “só para fazer sono”, como
costumava dizer:
— Tenho horror de televisão.
Um dia, Etelvina acabou concordando:
— Já que o senhor não se incomoda…
Não sabia que ia se arrepender tão cedo: ao chegar da rua, a luz azulada sob a
porta já não se apagava quando introduzia a chave na fechadura. A princípio,
ela ainda se erguia da ponta do sofá onde ousava se sentar muito erecta:
— Quer que eu desligue,
doutor? Com o tempo, ela foi deixando de se incomodar quando o patrão entrava,
mal percebia a sua chegada. E ele ia se refugiar no quarto, a que se reduzira
seu espaço útil dentro de casa. Se precisava vir até a sala para apanhar um
livro, mal ousava acender a luz:
— Com licença… . Nem ao
menos tinha mais liberdade de circular pelo apartamento em trajes menores, que
era o que lhe restava de comodidade, na solidão em que vivia: a cozinheira lá
na sala a noite toda, olhos pregados na televisão. Pouco a pouco, ela se punha
cada vez mais à vontade, já derreada no sofá, e se dando mesmo ao direito de só
servir o jantar depois da novela das oito. Às vezes, ele vinha para casa mais
cedo, especialmente para ver determinado programa que lhe haviam recomendado,
ficava sem jeito de estar ali olhando ao lado dela, sentados os dois como
amiguinhos. Muito menos ousaria perturbá-la, mudando o canal, se o que lhe
interessava estivesse sendo mostrado em outra estação. A solução do problema
lhe surgiu um dia, quando alguém, muito espantado que ele não tivesse televisão
em cores, sugeriu-lhe que comprasse uma:
— Etelvina, pode levar essa
televisão lá para o seu quarto, que hoje vai chegar outra para mim.
— Não precisava, doutor! —
disse ela, mostrando os dentes, toda feliz. Ele passou a ver tranquilamente o
que quisesse na sua sala, em cores, e o que era melhor, de cuecas.
— quando não inteiramente
nu, se bem o desejasse. Até que, uma noite, teve a surpresa de ver a luz por
debaixo da porta, ao chegar. Nem bem entrara e já não havia ninguém na sala,
como antes
— a televisão ainda quente.
Foi à cozinha a pretexto de beber um copo d’água, esticou um olho para o quarto
na área: a luz azulada, a empregada entretida com a televisão certamente
recém-ligada.
— Não pensa que me engana,
minha velha — resmungou ele. Aquilo se repetiu algumas vezes, antes que ele
resolvesse acabar com o abuso: afinal, ela já tinha a dela, que diabo. Entrou
uma noite de supetão e flagrou a cozinheira às gargalhadas com um programa
humorístico.
— Qual é, Etelvina? A sua
quebrou? Ela não teve jeito senão confessar, com um sorriso encabulado:
— Colorido é tão mais
bonito…
Desde então, a dúvida se
instalou no seu espírito: não sabe se despede a empregada, se lhe confia o novo
aparelho e traz de volta para a sala o antigo, se deixa que ela assista a seu
lado aos programas em cores. O que significa praticamente casar-se com ela,
pois, segundo a mais nova concepção de casamento, a verdadeira felicidade
conjugal consiste em ver televisão a dois.
Fernando Sabino. Melhores contos de
Fernando Sabino.
Rio de Janeiro: Recorde, 1980.
1ª QUESTÃO: Marque a
informação equivocada sobre o Texto:
A - ( ) No decorrer do texto, o comportamento
da empregada tirou a liberdade do patrão.
B - (X) A aquisição da televisão a cores,
resolveu, definitivamente, o problema de falta de privacidade do patrão.
C - ( ) Etelvina não se satisfez
plenamente com a tevê em preto e branco que ganhara do patrão.
D - ( ) O patrão, no desfecho do texto,
mostra-se indeciso quanto ao fato de manter ou demitir a empregada.
E - ( ) No decorrer do texto, tanto a
empregada quanto seu patrão demonstraram que, de fato, gostavam de assistir à
televisão.
Após a leitura atenta do
Texto, realize as questões propostas.
2ª QUESTÃO: “— Qual é,
Etelvina? A sua quebrou?” A fala do dono da casa, neste trecho, só não
demonstra:
A – ( ) irritação.
B – ( ) impaciência.
C – (X) tolerância.
D – ( ) desagrado.
E – ( ) repreensão.
3ª QUESTÃO: “Um dia, ele
abriu o jogo…” A expressão grifada foi empregada no sentido conotativo.
Tendo em vista o contexto em que foi usada, ela só não se explica
denotativamente com a seguinte afirmativa:
A – ( ) Deixou claro que estava ciente
de que a empregada o enganava.
B – ( ) Fez a empregada saber que não
era incômodo para ele o fato de ela usar a tevê.
C – ( ) Mostrou à empregada que sabia
que ela assistia à tevê escondido dele.
D – ( ) Revelou à empregada que ela
poderia assistir à televisão enquanto ele não estivesse em casa.
E – (X) Demonstrou seu desapontamento à empregada pelo fato de ela estar
usufruindo de um bem material dele.
4ª QUESTÃO: Marque a
passagem cujo verbo em destaque não transmite ideia de ação:
A – ( ) “ — Ouvi o senhor chegar… Quer
um cafezinho?”
B – ( ) “— Quer que desligue, doutor?”
C – ( ) “... tinha mais liberdade de
circular pelo apartamento…”
D – ( ) “ … especialmente para ver
determinado programa…”
E – (X) “— Colorido é tão mais bonito…”
5ª QUESTÃO: Tanto a
doméstica quanto o patrão fizeram uma declaração não muito verdadeira a
respeito da televisão. Observe:
“Não gosto de televisão.”
“— Tenho horror de televisão.”
Podemos estabelecer, entre as declarações
feitas, uma relação de:
A – ( ) adversidade.
B – (X) analogia.
C – ( ) superioridade.
D – ( ) inferioridade.
E – ( ) antagonismo.
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