O
ENCANTADOR DE GOLFINHOS
A história do homem que se dedica a
estudar e preservar os golfinhos de Fernando de Noronha. Em troca, eles já
salvaram sua vida.
(…)
O primeiro encontro foi em
setembro de 1990. Era uma bela manhã ensolarada e José Martins já estava
observando Luíza, a distância, havia quase duas horas. Aproximou-se lentamente,
sem deixar transparecer o interesse. A menos de 2 metros de distância, percebeu
que ela tinha um peculiar sinal no ventre. Ficou ainda mais interessado. Quando
a olhou nos olhos, Luíza virou-lhe as costas e afastou-se. José Martins,
persistente, ainda tentou segui-la. Mas ela foi mais rápida e sumiu na
imensidão azul. Hoje, exatamente 13 anos mais tarde, José Martins está com 40
anos, é solteiro e sonha em ser pai. Luíza acabou de completar 18 anos e tem
dois filhos lindos: Ubiratan, de 10 anos, e Vera, 7. José Martins é o
oceanógrafo gaúcho que há mais de uma década dedica-se a estudar os golfinhos
rotadores de Fernando de Noronha. E Luiza é um dos animais que o trabalho de Zé
– como ele é mais conhecido – ajuda a proteger. A relação do pesquisador com os
golfinhos mudou completamente a sua vida e tem sido fundamental para a preservação
da espécie. O Brasil é um país único! Afinal, qual outro lugar no mundo carrega
tantas riquezas como o nosso? Mas nossos principais patrimônios são a
diversidade cultural e ambiental. E os responsáveis pela preservação de tudo
isso serão as crianças, os futuros adultos do amanhã. Desde janeiro de 1989, Zé
Martins vive em Fernando de Noronha. Todo seu trabalho é dedicado aos golfinhos
rotadores, seres que encantam a todos com suas acrobacias aéreas e aparência
dócil. Graças às suas pesquisas, tem-se hoje amplo conhecimento sobre como
vivem esses animais. O hábito de dar saltos extraordinários para fora da água,
girando em torno do próprio eixo – razão do nome “rotador” –, por exemplo, não
tem nada de exibicionismo. Quando fazem isso, os golfinhos estão comunicando
aos outros integrantes do grupo o que deve ser feito. “Cada salto corresponde a
uma determinada atividade, como aumentar a velocidade de deslocamento, agrupar
os bichos ou definir uma rota a ser percorrida”, explica Martins. “Quanto maior
o impacto do salto, mais intensa é a resposta dos outros animais.” Mas como os
outros golfinhos podem ver as manobras realizadas fora da água? Eles não podem.
A mensagem é traduzida por um sofisticado sistema de bio-acústica – semelhante
a um sonar –, que faz com que os animais “leiam” o que deve ser feito por meio
das bolhas d’água provocadas pelo impacto. Para chegar a essa conclusão, Zé
Martins precisou de mais de dois anos e centenas de mergulhos entre os bichos.
É nesse ambiente submarino que o pesquisador se sente mais à vontade. “O
silêncio, a riqueza da vida subaquática de Fernando de Noronha e a companhia
dos golfinhos são como uma terapia para mim”, diz. Mas foi também embaixo
d’água que Martins passou por alguns dos maiores sustos da sua vida. Certa vez,
ele estava mergulhando na Baia dos Golfinhos – local onde eles chegam pela
manhã para descansar, copular e cuidar dos filhotes – quando apareceu um
tubarão bico-fino, de 2 metros de comprimento. A fera partiu na direção do
pesquisador, de 1,63 metro de altura. De repente, Martins ouviu um som que já
lhe era bem familiar: o canto dos golfinhos. Cerca de dez animais que estavam a
100 metros de distância da cena perceberam o perigo que o cientista corria e
saíram em sua defesa. Juntos, espantaram o tubarão e ainda ficaram por perto
até o bicho sumir da área. “Foi uma das maiores emoções que tive durante todos
esses anos de convívio com eles”, conta.
PROBLEMAS NO PARAÍSO → Depois de tantos
anos de intenso relacionamento, pesquisador e pesquisados parecem se conhecer
muito bem. Zé Martins não tem dúvidas de que os bichos o reconhecem. Golfinhos
se aproximarem de mergulhadores é natural. Mas, com Martins, a relação vai mais
fundo. Os animais cercam o cientista gaúcho, não demonstram incômodo com sua presença
e costumam encará-lo, olhando-o nos olhos – o que é raríssimo. Não seria
exagero dizer que existe uma certa amizade. O convívio com Luíza – a fêmea que
abre esta reportagem – é o melhor exemplo. Poucas pessoas no mundo já tiveram o
privilégio de ver uma fêmea de rotador amamentando em ambiente natural. Zé
Martins é uma delas. Luíza não só permitiu que ele se aproximasse como ficou
tranquila e acalmou o filhote, preocupado com a presença humana. O momento
rendeu uma das fotos que Martins considera especiais. Engana-se, porém quem
pensa que é tudo azul na vida desse encantador de golfinhos. Em 1997, ele teve
sua licença de pesquisa cassada e foi proibido de dar sua palestra semanal no
auditório do Ibama, em Fernando de Noronha. As punições duraram um ano e meio e
foram motivadas pelos protestos que Zé Martins estava fazendo contra exploração
com dinamite de uma pedreira na ilha principal do arquipélago, a apenas 5
metros da área onde começa o Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha. As
autoridades do lugar tinham liberado as obras e não gostaram da intervenção do
cientista. “Foram tempos bastante difíceis”, recorda. Para não interromper o
trabalho, Martins passou a pesquisar fora dos limites do parque, onde as
condições não são tão favoráveis para o estudo dos bichos como na Baía dos
Golfinhos. Para complicar ainda mais, o dinheiro acabou. Amigos e familiares o
aconselharam a sair da ilha. “Eles diziam que, depois de sete anos de total
dedicação, eu não podia aceitar ser tratado daquela forma”, conta Zé Martins. O
pesquisador persistiu e foi ajudado por um amigo ilustre em julho de 1997, o
francês Jacques Mayol, o primeiro homem a descer a mais de 100 metros de
profundidade sem oxigênio, depositou na conta bancária de Martins o que chamou
de “uma pequena ajuda”: 100 mil dólares. A ajudinha foi suficiente para
financiar os trabalhos da equipe do projeto Golfinhos Rotador (três
pesquisadores, dois educadores ambientais, um administrador e uma advogada
ambiental) durante os 18 meses do castigo.
PATRIMÔNIO NATURAL → A influência dos
estudos de Martins na preservação de Fernando de Noronha e, sobretudo, na vida
dos golfinhos é nítida. Com o apoio do Ibama, ele tem conseguido excelentes
resultados. O texto enviado à Unesco, solicitando que o arquipélago recebesse o
título de Patrimônio Natural da Humanidade, foi escrito por Zé Martins e o
pedido, acatado pela Unesco. Em 1990, o pesquisador criou o projeto Golfinho
Rotador, destinado ao estudo e à conservação da espécie. Há quatro anos, ele
obteve mais uma vitória na defesa dos golfinhos. Desde dezembro de 1999, não é
mais permitido mergulhar entre os animais, como centenas de turistas costumavam
fazer próximo ao porto da ilha. Por tudo isso, a Baía dos Golfinhos é hoje o
lugar mais provável do mundo para ver esses mamíferos oceânicos em grandes
quantidades. Os números comprovam. Até 1995, a maior quantidade de animais
avistados simultaneamente, na Baía dos Golfinhos era de 750 bichos. Em 2001,
foram mais de 2 mil num só dia.
(…)
CIÚME DOS BICHOS → Ainda há muito a ser
descoberto sobre os golfinhos. Sabe-se, por exemplo, que eles têm o cérebro
maior que o dos humanos e com 50% a mais de neurônios. No entanto, o modo pelo
qual toda essa fabulosa massa encefálica trabalha é pergunta ainda sem resposta.
O idioma dos golfinhos, elaborado com base nos sons que eles emitem, tampouco
foi traduzido pela ciência. Por tudo isso, as pesquisas de Zé Martins não devem
se esgotar tão cedo. Seus planos são de continuar trabalhando e vivendo na ilha
com os golfinhos, mas ele não esconde de ninguém o desejo de assumir a chefia
do Parque Nacional de Fernando de Noronha. “Conheço este lugar como poucos e
sei que posso ajudar ainda mais”, afirma. A obstinação desse oceanógrafo gaúcho
pelos golfinhos e por Noronha é tamanha, que afeta diretamente sua vida
pessoal. Desde que chegou à ilha, teve quatro relacionamentos sérios. Todas as
mulheres tinham ciúme dos golfinhos. O namoro mais longo, com uma médica
paulistana, durou cinco anos. O trabalho de Zé Martins tomava muito o seu tempo
e a relação foi, digamos assim, por água abaixo. Hoje, a médica está casada com
outro e vive no Recife. Martins prossegue com seus estudos com os golfinhos,
entre análises em seu apertado escritório na ilha e mergulhos na mar
azul-turquesa de Noronha. Numa das últimas vezes que mergulhou na Baía dos
Golfinhos, encontrou sua velha amiga Luíza. Ela parecia feliz, acompanhada
pelos dois filhotes e por outros oito animais. Zé Martins estava sozinho. Mas
nem por isso menos feliz.
Klester Cavalcanti. In: Os caminhos da
Terra, ano 12, n.137. São Paulo: Peixes, setembro/ 2003.
Vocabulário:
•
copular → manter relação sexual.
• simultaneamente → ao mesmo tempo.
- massa encefálica → massa do cérebro.
A partir da leitura do Texto , realize as questões propostas.
1 - “Para chegar a essa conclusão, Zé Martins precisou de mais de dois anos…”
O pronome demonstrativo grifado acima
refere-se à conclusão de que os golfinhos:
A – ( ) gostam de exibir-se dando saltos
giratórios.
B – (X) usam os saltos como uma forma de
comunicação com os outros animais de sua espécie.
C – ( ) ao verem os saltos dados fora da
água por um companheiro, compreendem a mensagem transmitida.
D – ( ) comunicam-se através dos sons
que emitem quando dão saltos.
E – ( ) saltam para demonstrar o quanto
são agressivos e perigosos.
2 - “O texto enviado à
Unesco, solicitando, que o arquipélago recebesse o título de Patrimônio Natural
da Humanidade, foi escrito por Zé Martins e o pedido, acatado pela Unesco.”
O vocábulo grifado só não indica que o pedido foi:
A – ( ) aceito.
B – ( ) obedecido.
C – ( ) atendido.
D – (X)
rejeitado.
E – ( ) considerado.
3 - “A obstinação desse
oceanógrafo gaúcho pelos golfinhos e por Noronha é tamanha, / que afeta
diretamente sua vida pessoal.” Pode-se estabelecer entre as orações acima a
respectiva relação de:
A – ( ) fato e causa.
B – ( ) fato e finalidade.
C – (X) fato e
consequência.
D – ( ) fato e condição.
E – ( ) fato e solução.
4 - A reportagem relata algo
que o cientista gaúcho, Zé Martins, ainda ambiciona. Identifique-o:
A – ( ) Dar ao arquipélago de Fernando
de Noronha o título de Patrimônio Natural da Humanidade.
B – (X) Ser
chefe do Parque Nacional de Fernando de Noronha e também pai.
C
– ( ) Ter a velha amiga Luíza como seu animal de estimação.
D
– ( ) Casar-se com uma advogada ambiental.
E – ( ) Justificar o nome “rotador”
atribuído aos golfinhos daquela região.
5 - “…a relação foi, digamos
assim, por água abaixo.”
A expressão grifada só não indica que a relação:
A – ( ) desfez-se.
B – ( ) acabou.
C – (X) solidificou-se.
D – ( ) dissolveu-se.
E – ( ) fracassou.
6 - “Engana-se, porém, quem
pensa que é tudo azul na vida desse encantador de golfinhos.”
Identifique a opção que não exemplifica um problema enfrentado
por Zé Martins em sua estada em Fernando de Noronha:
A – ( ) Por um período, faltou dinheiro
para manter o trabalho do projeto Golfinho Rotador.
B
– ( ) Ter, temporariamente, sua licença de pesquisa suspensa.
C – ( ) Ser proibido por um ano e meio a
dar palestras semanais no auditório do Ibama.
D – ( ) O tempo dedicado ao trabalho com
os golfinhos causava ciúmes nas mulheres com as quais Zé se relacionava.
E – (X) Tornou,
possivelmente, a Baía dos Golfinhos o lugar em que há maior aglomeração de
golfinhos no mundo.
7 - Só não se pode provar a amizade especial de
Zé Martins e os golfinhos rotadores com a seguinte afirmativa:
A – ( ) Os golfinhos olham nos olhos de
Zé Martins.
B – ( ) Zé Martins teve o privilégio de
ver Luíza, um golfinho fêmea, amamentando.
C – ( ) Os golfinhos cercam o
oceanógrafo quando está na água.
D – ( ) A presença do cientista gaúcho
não incomoda os golfinhos.
E – (X) Os golfinhos expuseram o
mergulhador ao ataque de um tubarão de dois metros de comprimento.
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