Crônica: Palavreado
Luís Fernando Veríssimo
Gosto
da palavra “fornida”. É uma palavra que diz tudo o que quer dizer. Se você lê
que uma mulher é “bem fornida”, sabe exatamente como ela é. Não gorda mas
cheia, roliça, carnuda. E quente. Talvez seja a semelhança com “forno”. Talvez
seja apenas o tipo de mente que eu tenho.
Não
posso ver a palavra “lascívia” sem pensar numa mulher, não fornida mas magra e
comprida. Lascívia, imperatriz de Cântaro, filha de Pundonor. Imagino-a
atraindo todos os jovens do reino para a cama real, decapitando os incapazes
pelo fracasso e os capazes pela ousadia.
Um
dia chega a Cântaro um jovem trovador, Lipídio de Albornoz. Ele cruza a Ponte
de Safena e entra na cidade montado no seu cavalo Escarcéu. Avista uma mulher
vestindo uma bandalheira preta que lhe lança um olhar cheio de betume e
cabriolé. Segue-a através dos becos de Cântaro até um sumário – uma espécie de
jardim enclausurado -, onde ela deixa cair a bandalheira. É Lascívia. Ela sobe
por um escrutínio, pequena escada estreita, e desaparece por uma porciúncula. Lipídio
a segue. Vê-se num longo conluio que leva a uma prótese entreaberta. Ele entra.
Lascívia está sentada num trunfo em frente ao seu pinochet, penteando-se.
Lipídio, que sempre carrega consigo um fanfarrão (instrumento primitivo de sete
cordas), começa a cantar uma balada. Lascívia bate palmas e chama:
–
Cisterna! Vanglória!
São
suas escravas que vêm prepará-la para os ritos do amor. Lipídio desfaz-se de
suas roupas – o sátrapa, o lúmpen, os dois fátuos – até ficar só de reles.
Dirige-se para a cama cantando uma antiga minarete. Lascívia diz:
–
Cala-te, sândalo. Quero sentir o seu vespúcio junto ao meu passe-partout.
Atrás
de uma cortina, Muxoxo, o algoz, prepara seu longo cadastro para cortar a
cabeça do trovador.
A
história só não acaba mal porque o cavalo de Lipídio, Escarcéu, espia pela
janela na hora em que Muxoxo vai decapitar seu dono, no momento entregue aos
sassafrás, e dá o alarme. Lipídio pula da cama, veste seu reles rapidamente e
sai pela janela, onde Escarcéu o espera.
Lascívia
manda levantarem a Ponte de Safena, mas tarde demais. Lipídio e Escarcéu já
galopam por motins e valiums, longe da vingança de Lascívia.
“Falácia”
é um animal multiforme que nunca está onde parece estar. Um dia um viajante
chamado Pseudônimo (não é o seu verdadeiro nome) chega à casa de um criador de
falácias, Otorrino. Comenta que os negócios de Otorrino devem estar indo muito
bem, pois seus campos estão cheios de falácias. Mas Otorrino não parece muito
contente. Lamenta-se:
–
As falácias nunca estão onde parecem estar. Se elas parecem estar no meu campo
é porque estão em outro lugar.
E
chora:
–
Todos os dias, de manhã, eu e minha mulher, Bazófia, saímos pelos campos a
contar falácias. E cada dia há mais falácias no meu campo. Quer dizer, cada dia
eu acordo mais pobre, pois são mais falácias que eu não tenho.
–
Lhe faço uma proposta – disse Pseudônimo. – Compro todas as falácias do seu
campo e pago um pinote por cada uma.
–
Um pinote por cada uma? – disse Otorrino, mal conseguindo disfarçar o seu
entusiasmo. – Eu devo não ter umas cinco mil falácias.
–
Pois pago cinco mil pinotes e levo todas as falácias que você não tem.
–
Feito.
Otorrino
e Bazófia arrebanharam as cinco mil falácias para Pseudônimo. Este abre o seu
comichão e começa a tirar pinotes invisíveis e colocá-los na palma da mão
estendida de Otorrino.
–
Não estou entendendo – diz Otorrino. – Onde estão os pinotes?
–
Os pinotes são como as falácias – explica Pseudônimo. – Nunca estão onde
parecem estar. Você está vendo algum pinote na sua mão?
–
Nenhum.
– É
sinal de que eles estão aí. Não deixe cair.
E
Pseudônimo seguiu viagem com cinco mil falácias, que vendeu para um frigorífico
inglês, o Filho and Sons. Otorrino acordou no outro dia e olhou com satisfação
para o seu campo vazio. Abriu o besunto, uma espécie de cofre, e olhou os
pinotes que pareciam não estar ali!
Na
cozinha, Bazófia botava veneno no seu pirão.
*
“Lorota”,
para mim, é uma manicura gorda. É explorada pelo namorado, Falcatrua. Vivem
juntos num pitéu, um apartamento pequeno. Um dia batem na porta. É Martelo, o
inspetor italiano.
–
Dove está il tuo megano?
–
Meu quê?
–
Il fistulado del tuo matagoso umbráculo.
– O
Falcatrua? Está trabalhando.
–
Sei. Com sua tragada de perônios. Magarefe, Barroco, Cantochão e Acepipe.
Conheço bem o quintal. São uns melindres de marca maior.
–
Que foi que o Falcatrua fez?
–
Está vendendo falácia inglesa enlatada.
– E
daí?
–
Daí que dentro da lata não tem nada. Parco manolo!
ENTENDENDO O TEXTO
01. Qual é a sensação
transmitida pela palavra "fornida" na perspectiva do autor?
a) Magrez
b) Cheiura e roliçez
c) Freeza
d) Delicadeza
02. Como o autor descreve a
personificação da palavra "lascívia" na crônica?
a) Uma rainha reclusa
b) Uma princesa audaciosa
c) Uma imperatriz atraente
d) Uma condessa impiedosa
03. Qual é o nome do jovem
trovador que chega ao Cântaro na crônica?
a) Lipídio de Albornoz
b) Muxoxo
c) Escarcéu
d) Pundonor
04. O que salva Lipídio da
vingança de Lascívia na crônica?
a) Sua habilidade em cantar
b) A intervenção de Escarcéu, seu cavalo
c) O silêncio arrependido de Lascívia
d) A chegada de Muxoxo
05. Qual é a relação entre
"falácia" e "pseudônimo" na segunda parte da crônica?
a) Pseudônimo é o criador de falácias
b) Pseudônimo é um viajante que compra
falácias
c) Pseudônimo é o algoz de Otorrino
d) Pseudônimo é o cavalo de Lipídio
06. O que Otorrino recebe em
troca das falácias vendidas a Pseudônimo?
a) Dinheiro
b) Pinotes
c)Verdade
d) Mais falácias
07. Como Pseudônimo explica a
Otorrino a natureza dos pinotes?
a) São visíveis e tangíveis
b) Nunca estão
onde parecem estar
c) São como falácias, sempre no campo
d) Representam uma riqueza verdadeira
08. Qual é a relação entre
"lorota" e "Falcatrua" na terceira parte da crônica?
a) São rivais em negócios
b) São parceiros em um esquema de venda
c) São parentes distantes
d) São inimigos declarados
09. Quem é Martelo na crônica e
quem ele acusa Falcatrua de fazer?
a) Um inspetor italiano; vender falácia
inglesa enlatada
b) Um comerciante local; explorar lorota
c) Um trovador; cantar para Lascívia
d) Um cavalheiro; salvar Lipídio
10. Qual é o desfecho da
situação envolvendo Falcatrua e a acusação de Martelo?
a) Falcatrua é presa
b) Lorota é expulsa
c) Falcatrua escapa ileso
d) Falcatrua e Lorota se casam
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